Livro de João Roberto Faria detalha engajamento da classe teatral brasileira contra o cativeiro ao longo do século 19
Texto: Luiz Prado – Terça, 23 de janeiro de 2023
Arte: Guilherme Castro
A função social da arte é assunto para encher bibliotecas. Dentro do conjunto de opções oferecidas para quem faz da criatividade matéria-prima, está a atraente – e necessária e urgente, sublinhemos – escolha pela contestação do status quo. O famoso dedo na ferida. Alguns podem até pensar diferente, mas a arte que realmente conta, sendo sincero, é essa que desafia a ordem estabelecida, escancara injustiças e disputa o poder das elites.
Essa maneira de enxergar e colocar em prática a arte é mais antiga nas praias brasileiras do que podemos acreditar. Ela esteve em voga, por exemplo, nos tempos do Imperador. Ao longo do século 19, livros e palcos serviram para autores e artistas defenderem uma causa que hoje parece óbvia em sua humanidade, mas que precisou de décadas para ganhar mentes e corações pelo país. Trata-se da luta que o teatro brasileiro travou contra a escravidão. Uma passagem pouco conhecida e estudada na historiografia das artes brasileiras e que merecia ter sido narrada há muito tempo.
Pois agora esse atraso começa a ser remediado pelo trabalho de João Roberto Faria, crítico, historiador e professor sênior da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Faria acaba de lançar pela Editora Perspectiva o livro Teatro e escravidão no Brasil, uma extensa pesquisa que cobre 50 anos de atividades teatrais no Brasil Império, de 1838 até a decretação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.
A partir da análise de textos dramatúrgicos, anúncios, notícias e críticas de jornais, o pesquisador reconstitui cronologicamente o engajamento de dramaturgos, atores e empresários teatrais no combate à escravidão. O estudo revela como a atuação desses agentes passou da publicação e encenação de peças nas quais surgiam ainda tímidas críticas aos costumes escravocratas até a realização de obras explicitamente abolicionistas, nas quais a liberdade do “elemento servil” – eufemismo caro à época para se referir aos escravos – ganhava o centro do enredo.
“Minha intenção foi demonstrar que o teatro brasileiro colaborou intensamente para a formação de uma consciência antiescravista nos espectadores, bem como atuou na linha de frente do abolicionismo no decênio de 1880, dando inestimável contribuição à causa humanitária da libertação das pessoas escravizadas”, escreve Faria na introdução do volume.
Conforme o próprio autor explica, para analisar e interpretar as peças nas quais o negro e o escravo aparecem como personagens e a escravidão surge como tema – central ou secundário – dois procedimentos foram utilizados. O primeiro tratou de situar as obras no pano de fundo histórico, político e social em que foram produzidas, para compreendê-las como expressão de um pensamento crítico sobre a escravidão. Já o segundo envolveu o resgate da recepção que esses trabalhos tiveram na imprensa da época.
De 1838, ano de estreia da primeira comédia de Martins Pena, na qual aparece a questão da escravidão, até a Lei Áurea, Faria encontrou mais de 100 peças escritas, publicadas e encenadas nas quais se pode identificar críticas ao regime escravocrata. São trabalhos que incluem tanto autores consagrados, como José de Alencar, Castro Alves e Artur de Azevedo, até dramaturgos de ocasião e grupos amadores. Uma lista caudalosa e demonstrativa do vigor com que o tema se movimentou pela cena artística brasileira.
Conquistando corações e mentes
O recorte cronológico assumido por Faria permite acompanhar o fortalecimento das críticas à escravidão e a progressiva adesão à causa abolicionista presente nas peças. Nas produções das décadas de 1830 a 1850, quando o regime escravocrata ainda era amplamente aceito pela sociedade, a abordagem dos dramaturgos se fazia em críticas pontuais. Inseridas de maneira secundária nos enredos, denunciavam, por exemplo, os maus-tratos e a violência física que os senhores infligiam aos escravizados. O tráfico ilegal foi outro problema observado por esses autores pioneiros e levado para condenação nos palcos.
Com a efetiva interrupção do tráfico em 1850, a partir da Lei Eusébio de Queirós, as peças passaram a incorporar também também a defesa do trabalho livre em substituição à mão de obra escrava. Essa sintonia e engajamento dos autores no combate à escravidão também seria encontrada por ocasião da Lei do Ventre Livre, de 1871.
Com a deflagração da campanha abolicionista no parlamento em 1879, intensifica-se a produção de peças que são divulgadas nos jornais como “dramas abolicionistas”. São produções cujo argumento central é o fim da escravidão, com a verba de suas apresentações frequentemente revertida para a compra de cartas de alforria, distribuídas em cena.
“Nossos dramaturgos estiveram atentos às discussões e em algumas peças colocaram personagens defendendo o trabalho livre, a emancipação gradual, a Lei do Ventre Livre, ao mesmo tempo que puseram em cena um dado da realidade que não sofreu qualquer alteração: o hábito dos senhores de surrar os negros, por qualquer motivo banal”, escreve o professor. “O abuso do castigo físico, geralmente por meio de açoites, tanto nas fazendas quanto nas cidades, foi denunciado em dezenas de peças. Não são poucas as personagens chicoteadas nos bastidores, e algumas vêm morrer no palco, diante dos olhos dos espectadores, comovendo-os e fazendo-os ver de perto a violência do sistema escravocrata”.
Um dos temas que mais interessou aos dramaturgos foi o crime sexual cometido pelos senhores. O estupro de mulheres escravizadas, seguido de gravidez e venda dos próprios filhos, foi o argumento central de diversas peças produzidas ao longo destes 50 anos. “Crianças bastardas, nascidas fora do casamento, foram abundantes em nossa sociedade escravista”, aponta Faria. “Dezenas de peças exploraram as diferentes possibilidades de enredo a partir de um mesmo ponto de partida: uma escrava de pele clara tem um filho ou uma filha de seu senhor”.
Conforme indica o professor, além da denúncia da voracidade sexual dos proprietários de escravos, os dramaturgos buscaram também levar aos palcos as consequências terríveis dessa prática. A mais explorada pelos autores foi o preconceito social que atingia escravos e libertos, fossem eles brancos ou de pele mais escura. Contudo, Faria salienta que há um aspecto incômodo nesse repertório dramático.
“As escravas ou libertas postas em cena para sensibilizar o espectador com sua triste situação são sempre brancas, com raríssimas exceções. Quando se trata de mostrar o sofrimento de uma menina ou de uma mocinha, o protagonismo é preferencialmente dado a uma filha do senhor branco com uma escrava de pele clara, nunca a uma escrava negra. Em peças escritas para criticar o preconceito, essa recorrência é, no mínimo, contraditória”.
Outras estratégias utilizadas pelos dramaturgos para condenar a escravidão incluíram a sátira dos senhores escravocratas, para divertir os espectadores. No sentido oposto, os autores abusaram também, na tentativa de comover o público, da presença do “escravo fiel”. Um personagem bondoso, resignado, com fortes valores cristãos, leal ao senhor e que servia para mostrar à plateia as virtudes do escravizado, justificadoras de sua libertação. Além destes temas, a venda em separado de pais e filhos ou marido e esposa foi outra fonte de sofrimento para os escravos que mereceu destaque nos palcos.
“Acredito que a contribuição da dramaturgia brasileira para a crítica da escravidão e a defesa da abolição não foi pequena. A maior parte dessas mais de cem peças, representadas ou apenas publicadas, atingiu um público enorme, que riu ou se emocionou com elas, que refletiu acerca dos problemas que apresentaram a respeito da escravidão em nosso país”, analisa Faria. “Embora seja impossível medir o real alcance que tiveram junto a espectadores e leitores, é de se crer que não tenha sido desprezível, se levarmos em conta que chegaram a centenas de milhares de espectadores, como se depreende da leitura dos jornais da época. Alguma parcela da consciência antiescravista e abolicionista que tomou conta da população brasileira deve ser creditada ao teatro e à sua grande capacidade de conquistar corações e mentes”.
Martins Pena: o pioneiro
Precursor da comédia nos palcos brasileiros, Martins Pena já colocava em cena os problemas da escravidão em O juiz de paz da roça, de 1838. Mesmo sem ocupar o centro da trama, era posta a questão dos meias-caras – africanos escravizados que deveriam ser livres por conta da lei de 7 de novembro de 1831. Decretada pela Regência e fruto de um acordo com a Inglaterra, a lei impunha o fim do tráfico e garantia liberdade para os africanos que chegassem ao Brasil via contrabando. Exemplo de “lei para inglês ver”, seu conteúdo só foi efetivamente aplicado quase vinte anos depois, em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós. Nesse intervalo, foram comuns as práticas de subornos e acordos para que os meias-caras continuassem sustentando a base escravocrata do país.
CLEMÊNCIA: Seja lá o que for; agora que tenho em casa, ninguém mo arrancará. Morrendo algum outro escravo, digo que foi ele.
FELÍCIO: E minha tia precisava deste escravo, tendo já tantos?
CLEMÊNCIA: Tantos? Quanto mais, melhor. Ainda eu tomei um só. E os que tomam aos vinte e aos trinta? Deixa-te disso, rapaz.
Trecho de Os dois ou o inglês maquinista, peça de Martins Pena representada em 1845 na qual aparece a questão dos meias-caras. “A visão crítica de Martins Pena vai além, quando escancara a mentalidade escravista da personagem Clemência e dos brasileiros dispostos a tudo para se beneficiar com a a exploração dos africanos livres”, escreve Faria.
Segundo o professor, Martins Pena esteve mais preocupado em reproduzir os costumes das camadas médias e populares do Rio de Janeiro e de suas cercanias nos anos 1830 e 1840 do que apresentar um retrato completo da escravidão. Contudo, a necessidade imposta pelo Romantismo de imprimir “cor local” em suas produções possibilitou que a escravidão aparecesse como um pano de fundo nada desprezível nos trabalhos do dramaturgo, graças às suas capacidades de observação e crítica.
Por conta disso, Faria aponta a necessidade de uma leitura atenta das comédias de Martins Pena para encontrarmos sua visão da escravidão. “Se por um lado ele não a condenou vigorosamente, por outro fez denúncias pontuais de certos costumes dos escravocratas e da conivência das autoridades com o tráfico ilícito”, escreve Faria. “Não é pouco, se pensarmos que a escravidão era, na época, uma sólida instituição, aceita pacificamente pela grande maioria da população brasileira”.
CLEMÊNCIA:Não vale a pena mandar fazer vestidos de chita pelas francesas, pedem sempre tanto dinheiro! (Esta cena deve ser toda muito viva. Ouve-se dentro bulha como de louça que se quebra.) O que é isto lá dentro? (Voz, dentro: “Não é nada, não senhora.”). Nada? O que é que se quebrou lá dentro? Negras! (A voz, dentro: “Foi o cachorro.”) Estas minhas negras! … Com licença. (Clemência sai.)
EUFRÁSIA: É tão descuidada esta nossa gente!
JOÃO DO AMARAL: É preciso ter paciência. (Ouve-se dentro bulha como de bofetadas e chicotadas.) Aquela pagou caro…
EUFRÁSIA (gritando): Comadre, não se aflija.
JOÃO: Se assim não fizer, nada tem.
EUFRÁSIA: Basta, comadre, perdoe por esta. (Cessam as chicotadas). Estes nossos escravos fazem-nos criar cabelos brancos. (Entra Clemência arranjando o lenço do pescoço e muito esfogueada.)
CLEMÊNCIA: Os senhores desculpem, mas não se pode… (Assenta-se e toma respiração.) Ora veja só! Foram aquelas desavergonhadas deixar mesmo na beira da mesa a salva com os copos pra o cachorro dar com tudo no chão! Mas pagou-me!
EUFRÁSIA: Lá por casa é a mesma cousa. Ainda ontem a pamonha da minha Joana quebrou duas xícaras.
CLEMÊNCIA: Fazem-me perder a paciência. Ao menos as suas não são tão mandrionas.
EUFRÁSIA: Não são? Xi! Se eu lhe contar não há de crer. Ontem, todo o santo dia a Mônica levou a ensaboar quatro camisas do João.
CLEMÊNCIA: É porque não as esfrega.
EUFRÁSIA: É o que a comadre pensa.
CLEMÊNCIA: Eu não gosto de dar pancadas. Porém, deixemo-nos disso agora. A comadre ainda não viu o meu africano?
Excerto de Os dois ou o inglês maquinista.“Com essa cena, Martins Pena ratifica o que todos os seus espectadores já sabiam: a violência física contra o escravo era habitual e rotineira. Há aí claramente uma crítica à escravidão e não apenas um registro dos costumes da época”, destaca Faria.
Machado de Assis: censor da sociedade escravocrata?
Um gosto da solidez que a escravidão desfrutava no seio da sociedade e uma mostra de suas implicações para o teatro são abordadas por Faria na análise dos pareceres emitidos pelo Conservatório Dramático Brasileiro. Criado em 15 de janeiro de 1843 na capital do Império, era uma instituição de censura, responsável por realizar a leitura prévia das peças teatrais e decidir quais poderiam ir aos palcos e quais deveriam ser proibidas.
Ativa durante dois períodos – de 1843 a 1864 e de 1871 a 1897 – a organização contou com a participação de escritores e intelectuais de prestígio entre seus quadros. Machado de Assis, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Martins Pena foram alguns dos nomes que atuaram como censores, seguindo as determinações de presar pelo decoro, os costumes, a religião, as autoridades políticas, a moral e a decência.
“O Conservatório Dramático zelava pela manutenção do status quo escravista”, escreve Faria. “Não admitia que fossem representadas peças que criticavam o tráfico ou a escravidão, considerada como instituição legal no país, e pautava-se por preconceitos raciais e sociais no julgamento”.
Exemplo dos trabalhos desempenhados pelo Conservatório, o parecer de 1859 de Victorino de Barros a respeito de O doutor Fabiano – tradução da dramaturgia francesas Le docteur noir, de Auguste Anicet Bourgeois e Philippe Dumanoir – é revelador da sociedade escravista brasileira e de seu racismo. Abordando o casamento de um negro liberto com a filha branca de uma marquesa, o texto de Bourgeois e Dumanoir foi proibido de ser encenado no Rio de Janeiro, considerado de extrema periculosidade para a sociedade brasileira.
“Quero o bem dos negros como o de todos os indivíduos de outras cores; desejo-os felizes, mas o que não quero é o caos, a anarquia, a desmantelação dos costumes. Mostrar que o casamento de um negro com uma branca, seja de que hierarquia for, é um escândalo, principalmente na sociedade brasileira, não é perseguir o negro, ofendê-lo, nem condená-lo ao celibato. Há belezas em todas as cores; casem-se os pretos com as pretas; é isto muito mais conforme com as leis da natureza e sobretudo com as consuetudinárias, que regem os povos cultos.”
Até mesmo Machado de Assis não escapou dos preconceitos de seu tempo em seus julgamentos. Tendo atuado como censor de março de 1862 a março de 1864, o bruxo do Cosme Velho emitiu dezesseis pareceres, proibindo três peças por ofensa à moral e sugerindo a uma outra diversas alterações para permitir a liberação. Sobre esta última, Mistérios Sociais, drama do português Augusto César de Lacerda, que se encerra com o casamento de Lucena, um liberto, e uma baronesa, Machado escreveu:
“A teoria filosófica não reconhece diferença entre dois indivíduos que como aqueles tinham as virtudes no mesmo nível; mas nas condições de uma sociedade como a nossa, este modo de terminar a peça deve ser alterado. Dois expedientes se apresentam para remover a dificuldade: o primeiro, é não efetuar o casamento; mas neste caso haveria uma grande alteração no papel da baronesa, supressão de cenas inteiras, e até a figura da baronesa se tornaria inútil no correr da ação. Julgo que o segundo expediente é melhor e mais fácil: o visconde, pai de Lucena, teria vendido no México sua amante e seu filho, pessoas livres; este traço tornaria o ato do visconde mais repulsivo; Lucena dar-se-ia sempre como legalmente escravo. Este expediente é simples.”
Para Faria, não há como negar que Machado compactuou com a sociedade escravista de sua época ao impedir que o casamento entre um liberto e uma nobre viesse aos palcos. Contudo, o pesquisador acredita que tal posicionamento se deveu mais ao conservadorismo do Conservatório Dramático do que às convições pessoais de Machado. “Diante de um parecer anterior que condenava Mistérios Sociais, ele deve ter ponderado que um mal menor seria sugerir mudanças para que a peça pudesse ser representada”, pondera Faria. “Não podemos esquecer que, nesse início da década de 1860, o jovem escritor militava no jornalismo liberal, contratado pelo Diário do Rio de Janeiro, e que, como crítico teatral, desde 1859, vinha elogiando e aplaudindo peças brasileiras que criticavam a escravidão”.
Um outro José de Alencar
O Conservatório Dramático, contudo, não foi capaz de impedir que dezenas de peças contra a escravidão chegassem aos palcos. É o que Faria mostra ao revirar o repertório romântico e realista, com contribuições tanto de autores consagrados quanto dos obscuros, que escreveram, publicaram e levaram à cena seus trabalhos no Rio de Janeiro e nas províncias do Império.
Nestes trabalhos, duas maneiras de representar o escravo se destacam. A abordagem romântica privilegiou a apresentação dos escravizados como criaturas repletas de virtude, dignas da pena do público e, por isso mesmo, merecedoras da liberdade. Já a perspectiva realista pintava um ser infeliz e miserável, tragado para o vício ou o crime por culpa exclusiva do cativeiro. Aqui, as consequências desastrosas da instituição da escravidão eram os argumentos para sua própria condenação.
Coube a José de Alencar a primeira peça teatral brasileira protagonizada por um escravo. Trata-se de O demônio familiar, que estreou no palco do Teatro Ginásio Dramático do Rio de Janeiro em 5 de novembro de 1857. Concebida como uma comédia de costumes, a obra apresenta as confusões causadas pelo jovem escravo doméstico, Pedro, que desestabilizam a família de seu senhor.
Com um desfecho surpreendente para a época, Pedro é libertado ao final da peça, causando alvoroço em parte do público, que considerava injusta a liberdade de um escravo tão mal-criado. Para outros, contudo, a peça trazia uma “lição profunda”, como o próprio Machado de Assis escreveu.
“O demônio familiar abriu caminho para uma discussão sobre as inconveniências da escravidão doméstica e como acabar com ela”, anota Faria. “Para os contemporâneos de Alencar, era o bastante para enxergar na peça um conteúdo antiescravista”.
“Todos devemos perdoar-nos mutuamente; todos somos culpados por havermos acreditado ou consentido no fato primeiro, que é a causa de tudo isto. O único inocente é aquele que não tem imputação, e que fez apenas uma travessura de criança, levado pelo instinto de amizade. Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (A Pedro) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes.”
Desfecho de O demônio familiar, no qual o médico Eduardo liberta o escravo Pedro. Para José de Alencar, a escravidão terminaria espontaneamente, através de uma revolução dos costumes, como o gesto de Eduardo, e não por força de atos governamentais.
O autor voltaria ao tema com vigor em Mãe, drama que estreou em 24 de março de 1860 e contava a história de uma mulher escravizada pelo próprio filho, que desconhecia sua origem. Sendo aclamada pela crítica, a peça atravessou as décadas do século 19 e voltou aos palcos ao longo dos anos 1870 e 1880, já no contexto do aumento das críticas à escravidão e do surgimento da luta abolicionista. Nada mal para um autor lembrado por sua postura conservadora da maturidade, que se opôs à Lei do Ventre Livre e ganhou de Joaquim Nabuco a alcunha de “dramaturgo escravagista”.
Diante do debate acerca da postura de Alencar, Faria defende a existência de significados antiescravistas em suas peças. Para o professor, elas tiveram repercussão na formação da opinião pública de seu tempo e foram, inclusive, vistas como aliadas à causa do fim do cativeiro. “Não foi desprezível a contribuição do escritor para o debate acerca da emancipação dos escravos, a despeito da posição conservadora do homem político, na segunda metade da década de 1860 e início da seguinte”.
Castro Alves e a dramaturgia abolicionista
Castro Alves é outro nome consagrado da literatura brasileira que aparece no livro. O poeta dos escravos, incontestavelmente abolicionista, é o autor de Gonzaga ou a revolução de Minas, uma livre releitura dos acontecimentos da inconfidência mineira, trespassadas pelas questões abolicionistas.
“Não, pobre cativa, tu não gemerás até a morte. Não, tu não irás como tuas companheiras atirar-te um dia nas lagoas, crendo que vais reviver em tua pátria. Não, infeliz! Em breve, sob estas selvas gigantescas da América, a família brasileira se assentará como nos dias primitivos… Não mais escravos! Não mais senhores. Todas as frontes livres poderão mergulhar o pensamento nos infinitos azulados, todos os braços livres hão de sulcar o seio da terra brasileira. (A Luís) Luís, pobre desgraçado! Deve ser um dia sublime aquele em que as crianças souberem o nome de seus pais, porque suas mães serão esposas e não meretrizes… em que as virgens murmurarem sem pejo o nome de seus amantes, porque não serão mais poluídas pelo beijo dos senhores devassos… em que os velhos sentados à beira dos túmulos abençoarem sua geração, porque a túnica da ignomínia deixará de acompanhá-los através dos séculos como o ferrete do judeu maldito!…”
No trecho acima, retirado de Gonzaga ou a revolução de Minas, o protagonista declama um discurso fortemente abolicionista que denuncia uma das práticas mais comuns e perversas da escravidão: o abuso sexual de escravas pelos senhores, que geravam filhos não-reconhecidos.
“Ao longo da década de 1880, em todo o Brasil, o ‘poeta dos escravos’ foi lembrado por seus poemas abolicionistas, inúmeras vezes declamados em saraus e espetáculos teatrais, e também por Gonzaga ou a revolução de Minas, seja pela leitura, seja pelas representações”, indica Faria. Não é sem razão que a posteridade consagrou Castro Alves como nosso escritor mais identificado com a luta pelo fim da escravidão no Brasil”.
Com o início da campanha abolicionista em 1879, a década seguinte veria um crescimento de peças abertamente combativas. Enquanto os anos anteriores, conta Faria, produziram obras críticas à escravidão – algumas com sugestões de emancipação gradual dos negros, seja pela benevolências dos proprietários, seja por leis que não confrontavam diretamente a instituição do cativeiro – a década de 1880 seria marcada por dramaturgias mobilizadas como instrumento de luta pela abolição imediata da escravidão.
“Em todo o Brasil, dramaturgos, artistas profissionais ou amadores e empresários teatrais apoiam o fim da escravidão”, escreve o professor. “Espetáculos com renda revertida para a compra de cartas de alforria tornam-se um recurso para a propaganda abolicionista, adquirindo evidente contorno político, sobretudo quando as pessoas escravizadas eram libertadas em cena aberta. As peças escritas e representadas defendem a extinção do cativeiro ostensivamente, correspondendo aos anseios da maioria da população. No Rio de Janeiro, as associações emancipadoras promovem matinês com música, declamação de poemas, representações teatrais e discursos de líderes abolicionistas como José do Patrocínio e Joaquim Nabuco, entre muitos outros”.
Um dos autores mais comprometidos com a causa abolicionista foi Artur de Azevedo. Um exemplo de seu engajamento é a peça O Liberato, de 1881, e dedicada ao próprio Nabuco. Sem jamais aparecer em cena, o personagem-título é um escravo enfermo em torno do qual as personagens discutem suas posições favoráveis e contrárias à abolição.
ROSINHA (voltando da janela): O senhor viu por aí primo Ramiro?
MOREIRA (muito sério): Vi, minha senhora, vi, e também vi seu tio!
ROSINHA (interessada): Onde?
MOREIRA: Na tal conferência!
ROSINHA: Que conferência?
MOREIRA: Pois não sabe que se trama entre nós uma grande conspiração contra a propriedade particular?
ROSINHA: Uma grande conspiração?
MOREIRA: Que meia dúzia de rapazolas inconsequentes, que nada tem que perder, que não possui um moleque ou uma negrinha para remédio, arvorou-se em defensora da emancipação dos escravos, empunhou o facho da discórdia, e ainda a proclamar urbi et orbi – pelos botequins, pelas gazetas e até pelos teatros – a dilapidação da fortuna particular?!
ROSINHA: Deveras?
MOREIRA: Em outra qualquer parte que não fosse o Rio de Janeiro, isto seria uma quadrilha de ladrões; aqui chama-se a isto o Partido Abolicionista! (Erguendo-se, e percorrendo a cena, de muito mau humor.) Pois não! Uma gente sem eira nem beira, nem ramo de figueira: uns pobres diabos, carregados de esteiras velhas, que se ralam de inveja, quando veem um cidadão prestante como eu, que possuo cinquenta escravos, ganhos com o suor do meu rosto! (Surpreendendo um sorriso de Rosinha.) Sim, senhora: ganhei-os com o suor do meu rosto, a trabalhar (Gesto como se tirasse suor da testa com o polegar.), e não a dizer baboseiras no teatro…
ROSINHA: E foi no teatro que se encontrou com primo Ramiro?
MOREIRA: No teatro, sim, senhora: agora há comédias também de dia. E seu primo dava palmas, e gritava: – Bravo! – àquela caterva de desmiolados que desejam a ruína do país.
ROSINHA: Oh!
MOREIRA: Do país, sim, que depositou na grande lavoura as suas esperanças. – E seu tio, o Doutor Lopes, um homem formado, que deve ter juízo, nem sequer repreendia o filho!
ROSINHA: Modere-se, Senhor Moreira!
MOREIRA (esbravejando): A ruína do país ainda não é nada!… Mas o aniquilamento da riqueza particular? E o meu dinheiro?
ROSINHA: Vejo que o senhor é um patriota…
MOREIRA: Patriotismo é isto (bate no ventre), e isto! (Sinal de dinheiro.) Já não bastava a famosa lei de 28 de setembro, que me obriga a educar moleques que não são meus filhos, e que, se são meus filhos, não são meus escravos! Canalha! (Muito exaltado, e ameaçando com os punhos cerrados, a porta da rua.) Canalha!
Excerto de O Liberato, de Artur de Azevedo. Segundo Faria, “[a personagem Moreira] considera a luta abolicionista uma conspiração contra proprietários de escravos, que se verão privados de seus bens particulares, chama os militantes do abolicionismo de ladrões, que querem a ruína do país, bate na tecla conservadora de que a lavoura será fortemente prejudicada com o fim da escravidão, critica a lei de 28 de setembro – a Lei do Ventre Livre – com um argumento perverso: lamenta que os filhos que eventualmente teve com escravas, depois de 1871, não são seus escravos”.
Teatro e escravidão no Brasil, de João Roberto Faria, Editora Perspectiva, 416 páginas, R$ 104,90.
Fonte: Jornal USP