Por Vânia Dias
Querino foi o primeiro intelectual brasileiro a registrar a contribuição de povos africanos para a cultura brasileira
Uma das personalidades mais importantes da história da Bahia e do Brasil, o escritor, jornalista, historiador, político, desenhista, músico e pintor, Manuel Querino completa este ano 182 anos do seu nascimento. O intelectual afrodescendente é um personagem muito importante do século XIX, professor abolicionista, cronista, Querino foi por muito tempo invisibilizado da história brasileira. Nascido em Santo Amaro da Purificação, em 28 de julho de 1851, vindo a falecer em Salvador, em 1923, este ano completa um século da sua morte.
Um importante defensor de ideias abolicionistas, no final do período escravocrata no Brasil, tornou-se um pioneiro nos registros antropológicos e na valorização da cultura africana na Bahia. Manuel Raimundo Querino, esse destacado intelectual negro, foi aluno fundador do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e da Escola de Belas Artes. Sócio da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), do Montepio dos Artistas e do Montepio dos Artífices, sócio fundador do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), membro da Irmandade dos Homens Pretos. São tantas as importâncias e atuações desse antropólogo autodidata que é de estranhar a invisibilidade do seu nome, por tanto tempo, nos registros da história do país.
“Embora ele só tenha começado a ficar um pouco mais conhecido por nós, pela história brasileira, recentemente, ele foi um personagem muito importante da segunda metade do século XIX. Um homem, como ele mesmo se dizia ‘mulato’, nascido depois do fim do tráfico de escravizados, no Recôncavo da Bahia”, conta a historiadora Wlamyra Albuquerque.
Ela explica que a infância Querino foi marcada por uma epidemia de cólera que o deixou órfão e fez com que fosse criado por um tutor. Essa experiência foi definidora na vida desse intelectual e fez com que ele se aproximasse de um grupo de políticos liberais, liderados pelo conselheiro Dantas.
Albuquerque relata que a proximidade com esse agrupamento político, de homens importantes da República, a grande maioria deles de deputados e presidente da província, fez com que o trânsito e as possibilidades de pensar esse mundo político fossem dados para Querino. Com o diferencial de que, à frente do seu tempo, ele era alguém que também circulava em outros círculos e ambientes políticos, como a Irmandade do Rosário dos pretos, a SPD.
“Ele é um personagem muito especial pra gente entender essa habilidade, essa forma de fazer política. Em que ele podia circular em ambientes dominados por grandes senhores da política liberal, as sociedades abolicionistas, as conferências – que aconteceram nas salas da Faculdade de Medicina –, mas também circular em ambientes em que quase exclusivamente eram frequentados por homens negros”, destaca a historiadora.
A historiadora Wlamyra Albuquerque estuda e admira a obra desse importante intelectual brasileiro / Adilton Venegeroles
Um grande negociador
Para Wlamyra, isso ganha ainda mais força, ao se pensar sobre a trajetória e as bandeiras políticas dele. Tempos depois da sua morte, ela aponta que muitas das estratégias usadas por ele continuam a ser úteis para a população negra. Se por um lado ele denunciava, por outro, também constituía alianças e procurava saídas dentro da lógica institucional do Estado republicano para fazer valer as suas pautas.
“Eu acho que Querino ocupa uma posição muito destacada nessa maneira de, por um lado, denunciar e gritar e, por outro lado, fazer aliança, discutir e fazer acordos. Eu não tenho dúvida de que ele foi um grande negociador, mas nem por isso deixou de lado pautas que eram centrais. Então, quando a gente lê, por exemplo, Manuel Querino, que foi também um grande cronista, foi um grande etnólogo, a gente percebe a maneira como ele foi importante para mostrar a força e o valor das populações africanas no Brasil”, afirma Wlamyra.
Em sua atuação como jornalista, Querino fundou os jornais A Província e O Trabalho, e também contribuiu com artigos para a Gazeta da Tarde. Nas primeiras décadas do século passado, quando a literatura negra era artefato raro, ele escreveu obras importantes como A Raça Africana e os seus costumes na Bahia; A Arte Culinária na Bahia; O Colono Preto como fator da Civilização Brasileira e A Bahia de Outrora, entre outras.
A historiadora Albuquerque pontua que Manuel Querino também era versátil na escrita e lembra de um de seus textos em que defende o africano colonizou o Brasil. Segundo ela, esse africano é um termo genérico que Querino estava usando, naquela época, para mostrar que conhecia e dominava muito bem as categorias de hierarquia das populações, consideradas raças humanas, naquele momento. E para elevar as nações africanas a um lugar muito destacado na organização do mundo ocidental.
“A gente está falando de um cara que foi um político habilidoso, foi um intelectual muito sofisticado e, ao mesmo tempo, foi também um cronista das ruas da cidade. Então, Querino conta pra gente sobre o que eram as rodas de viola e de capoeira no Terreiro de Jesus, ele conta pra gente o que eram as festas tradicionais da Bahia naquela época, como se fazia para estabelecer as formas de sociabilidade no espaço urbano, as comidas tradicionais, as festas”, reforça.
Wlamyra que lê com muito entendimento os passos dessa personalidade que atuou em muitas frentes da sociedade brasileira, em um momento crucial em que a escravidão, como instituição, entra em falência, mas que era preciso lutar para garantir algum lugar de cidadania para as pessoas negras.
Atual e Contemporâneo
Hoje, um século depois da sua morte, o pensamento, a habilidade, a forma de fazer política e a atuação vanguardista de Querino seguem contemporâneos e atuais. Wlamyra evidencia, com admiração, a presença dele na criação do Partido Operário na Bahia. “Isso é impressionante. A gente está falando do final do século XIX, dos primeiros anos da República. Então, a gente está falando de um sujeito político que está muito antenado com tudo o que tem sido discutido e com todas as suas expectativas e as demandas da população negra e dos trabalhadores”, reforça a pesquisadora.
Ela lembra que, naquele momento de profunda transformação na ordem social, Querino já se utilizava do termo “trabalhadores nacionais”. “É o momento em que o escravismo acaba. É o momento em que o Império abre espaço para a estrutura republicana e, nesse mesmo cenário, ele está pensando sobre formas mais justas de garantir direitos para os trabalhadores e as populações negras no Brasil. É realmente um personagem dos mais admiráveis que temos no Brasil do século XIX. Viva Querino!”, exalta Wlamyra.
Edição: Gabriela Amorim
Fonte: Brasil de Fatos Bahia