Sábado, 1 de abril de 2023
Um “reinado” mundial no futebol, a extraordinária marca de 1.283 gols e um carisma inigualável dentro e fora do campo podem criar um novo herói da pátria. A homenagem a Edson Arantes do Nascimento, o rei Pelé, consta de dois projetos que perpetuam a memória do ex-jogador, morto em dezembro de 2022, aos 82 anos.
— Dono de um talento raro, Pelé quebrou recordes, ganhou reconhecimento nacional e internacional e se transformou no maior nome da história do esporte mais popular do mundo. Foi reconhecido como o atleta do século 20 pelo Comitê Olímpico Internacional e foi o brasileiro que mais projetou o nome do Brasil no planeta Terra — disse o senador Jorge Kajuru (PSB-GO), autor do PL 78/2023, uma das propostas de tributo ao ex-futebolista.
Para o senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), autor do PL 75/2023, que também homenageia Pelé, a justificativa para tornar o jogador um herói da pátria é “a altura alcançada por sua arte de jogar futebol, que transcendeu o esporte mais popular no Brasil, levando o nome do nosso país para o mundo inteiro”.
Herói ou heroína da pátria é um título dado a personalidades que tiveram papel fundamental na defesa ou na construção do país. O nome é registrado no Livro de Aço — que de fato é formado por páginas de aço — abrigado no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Criado em 1992, o livro reúne protagonistas da liberdade e da democracia, que ofereceram sua vida ao país em algum momento da história. A inscrição de um novo personagem depende de algumas regras. A principal é que o Senado e a Câmara aprovem uma lei com o título.
Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), e Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), primeiro presidente do Brasil, foram os primeiros nomes inscritos no Livro de Aço. A Lei 7.919, de 1989, foi aprovada nas celebrações do bicentenário da Inconfidência Mineira (1792) e do centenário da Proclamação da República (1889).
Só 20 anos depois, com a Lei 12.105, de 2009, o livro recebeu o nome de uma mulher: Anna Nery (1814-1880), pioneira e patrona da enfermagem no Brasil. Ficou conhecida como “a mãe dos brasileiros”, que voluntariamente acompanhou os filhos e o irmão na Guerra do Paraguai (1864-1870), onde prestou serviços nos hospitais militares e até em frentes de batalha.
Em 2012, outra personagem feminina foi agraciada com o título (Lei 12.615, de 2012): Anita Garibaldi (1821-1849), heroína da Guerra dos Farrapos (1835-1845).
Uma nova norma, a Lei 13.433, de 2017, acrescentou duas novidades ao livro. A primeira foi inscrever o nome da estilista Zuzu Angel (1921-1976), que na década de 1970 utilizou desfiles de moda para denunciar a ditadura militar — responsável por torturar e assassinar seu filho Stuart Angel Jones e por provocar um acidente de carro que a matou, em 1976. A lei também deu ao compêndio seu nome definitivo: Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
— Por certo, essa necessidade ou anseio por valorizar a atuação das mulheres [heroínas], explicitando o feminino encoberto no plural masculino, reflete uma tendência da sociedade, que o Legislativo foi capaz de perceber e inserir no corpo jurídico — explica o consultor legislativo do Senado Francisco José Coelho Saraiva, especialista em cultura.
O Livro de Aço é regulamentado pela Lei 11.597, de 2007, que nasceu do PLS 99/2005, do então senador Marco Maciel. A intenção da proposta foi dar respaldo legal ao livro, pois até então não havia critérios definidos para a concessão do título de herói da pátria.
Durante a análise do projeto de Maciel na Comissão de Educação (CE), a então relatora, Lúcia Vânia, destacou a necessidade de criação de diretrizes e regras para prestar tributos aos heróis e heroínas.
“É indiscutível que a ausência de critérios vulnera a importância da concessão da homenagem. A lacuna normativa, ora observada nas inscrições, expõe a alta honraria ao risco de banalização, contrariando o princípio da excepcionalidade que, sem dúvida, deve nortear a inscrição no livro, onde já figuram vultos da estatura histórica de Tiradentes, Zumbi dos Palmares e D. Pedro I”, afirmava o relatório.
Na proposta original ficou definido também que a homenagem só poderia ocorrer após o prazo de 50 anos da morte do personagem. No entanto, a Lei 13.229 , de 2015, reduziu para 10 anos o prazo mínimo para o tributo, com ressalva aos brasileiros mortos em combate, que podem ser homenageados sem o transcurso desse prazo.
A mesma lei de 2015 incluiu no livro o nome de Leonel Brizola (1922-2004), que liderou a Campanha da Legalidade — mobilização civil e militar, em 1961, para garantir a posse do vice, João Goulart, como presidente da República, após a renúncia de Jânio Quadros (1917-1992). Brizola foi líder trabalhista, político e governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro.
Patrimônio
Em entrevista à Agência Senado, Ian Ferraz, da equipe que administra o panteão, explicou a relevância do Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
— O livro é um patrimônio material que, entretanto, centraliza a imaterialidade do valor dos heróis que estão ali inscritos. Sendo, portanto, de suma importância para que os exemplos desses heróis e heroínas sejam conhecidos pelo seu povo — disse.
Para Saraiva, a existência de heróis e heroínas enriquece social e culturalmente o país.
— Considerando, um tanto provocativamente, a frase do dramaturgo alemão Bertold Brecht: “Pobre do país que precisa de heróis”, parece-nos que mais pobre ainda seria o país que não tivesse pessoas que se destacaram por sua atuação em diversos setores da vida social, para servir de referência como exemplos de dedicação ao país e à sociedade, inclusive para serem questionados, criticados — opinou o consultor.
Personalidades
Ao todo há no livro 75 nomes que dividem-se entre 11 militares, 11 escritores ou intelectuais e 35 revolucionários. Também estão inscritos 11 políticos, 2 enfermeiros, 2 inventores, 2 músicos e 1 imperador. Na contagem oficial, os personagens de grupos são resumidos em um nome só, ou seja, um título para a Conjuração Baiana (1798), conspiração separatista e republicana, um participante da Revolução Constitucionalista de 1932, movimento armado liderado por São Paulo contra o governo de Getúlio Vargas e pela defesa de uma nova constituição, um nome para a Insurreição Pernambucana (1645-1654) e um nome para os Soldados de Borracha (1943-1945), grupo de mais de 55 mil brasileiros levados para a Amazônia com o objetivo de extrair borracha para os Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
O número oficial, até março de 2023, é de 64 inscritos no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, sendo 51 homens e 13 mulheres.
O último nome incluído no livro foi o de Antonieta de Barros. Jornalista, professora e política, nasceu em Florianópolis em 1901 e é conhecida como a primeira mulher negra a assumir um mandato popular no Brasil. Antonieta tornou-se heroína pela Lei 14.518, de 2023.
— Sua atuação política foi marcada predominantemente pela defesa do magistério, atividade da qual nunca se afastou, com propostas que visavam garantir concursos públicos para os cargos de professor, reduzir a influência política na escolha de diretores escolares e ampliar o acesso ao ensino superior para alunos carentes por meio da oferta de bolsas de estudos — afirmou o senador Flávio Arns (PSB-PR), em dezembro de 2022, ao relatar a proposta na CE.
Para o senador, o Livro de Heróis e Heroínas da Pátria é importante por ressaltar trajetórias de brasileiros que marcaram a história do país.
— O registro de nossos heróis e heroínas é fundamental para a preservação da memória sobre nosso passado. Ao mesmo tempo, é uma forma de reconhecer os valores defendidos por esses personagens, que se destacaram na luta por liberdade, democracia, cidadania e defesa do nosso país. Imortalizar essas personalidades significa tornar perene seus exemplos, como referência que devemos seguir no tempo presente e pelas futuras gerações — disse o senador à Agência Senado.
Antonieta, último nome inscrito; Arns, relator; e os Soldados da Borracha, levados para a AmazôniaMuseu da Escola Catarinense, Beto Barata/Agência Senado e IBGE
Atualmente o Senado analisa 15 projetos para inserir nomes no livro. Outros dois foram aprovados no dia 15 de março em decisão terminativa na Comissão da Educação (CE) e seguiram para a Câmara dos Deputados.
O nome mais recente aprovado na Casa, e que aguarda sanção, foi o de Zilda Arns (1934-2010). Médica e fundadora da Pastoral da Criança, foi indicada três vezes ao Prêmio Nobel da Paz e morreu vítima de um terremoto em Porto Príncipe, no Haiti, quando fazia palestra em uma igreja, durante missão humanitária no país. Relatora do PL 1.937/2019, a senadora professora Dorinha (União-TO) ressaltou a biografia da homenageada.
“A biografia de Zilda Arns revela a mais profunda e coerente dedicação ao próximo, começando pelas pequeninas e pelos pequeninos, para os quais levou, desconhecendo fronteiras, um tipo de atendimento que mobilizava a boa vontade dos voluntários, por meio de uma orientação inteligente e sensível, capaz de transformar vidas”, disse a relatora na Comissão de Educação.
Para Dorinha, o registro de heróis e heroínas no livro é fundamental para a memória do país e para o estímulo do conhecimento sobre os homenageados.
— Um dos grandes desafios da memória do país é o registro, pois esse permite a socialização da informação, a contribuição com a mudança de pensamento e cultura. O Livro de Aço é um material que fica disponível para pesquisas, estudos, além da homenagem que é muito importante ao reconhecer o trabalho e a história do país, em diferentes representações — disse a senadora à Agência Senado.
Também aprovado na CE, o PL 3.493/2021 inscreve no Livro de Aço os Lanceiros Negros. O projeto, que agora segue para a Câmara dos Deputados, consagra os guerreiros escravizados que tiveram importante atuação na Guerra dos Farrapos.
— Ainda que desconhecida para muitos brasileiros, a história dos Lanceiros Negros e de seus ideais merece ser exaltada. Não há dúvida, que a homenagem ora proposta é justa e meritória, e inscrever o nome desses mártires no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é um ato nobre de reconhecimento de sua importância — disse a senadora Teresa Leitão (PT-PE), relatora do projeto, na Comissão de Educação (CE).
O autor da proposta, senador Paulo Paim (PT-RS), defende que a sociedade brasileira tenha maior oportunidade de conhecimento sobre os homenageados do livro.
— Estimular o acesso ao memorial cívico [Panteão] por meio das escolas, secretarias de educação, de cultura, dos Ministérios do Turismo e da Educação e de toda sociedade é essencial para dar visibilidade a essa importante ferramenta de consciência histórica e cultural. Como contribuição [ao livro], apresentei projetos para garantir que lideranças como Maria Beatriz Nascimento, João Cândido e os Lanceiros Negros fossem lembrados pelo Estado brasileiro e por nosso povo, tão carente da memória nacional — afirmou Paim à Agência Senado.
Outros projetos em análise são o PL 1.685/2022, do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que homenageia o indigenista Bruno Araújo Pereira (1980-2022) e o jornalista britânico Dom Phillips (1964-2022), assassinados durante uma emboscada no Vale do Javari (AM), e o PL 1683/2022, do então senador Paulo Rocha, também dedicado a Bruno Pereira.
Tramita ainda o PL 2.526/2022 para homenagear Abdias do Nascimento (1914-2011), apresentado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI). Abdias foi senador e tornou-se referência na luta pela igualdade racial, além de se destacar como cientista social e como autor de trabalhos que tratam da temática afro-brasileira.
Já o PL 3.903/2021, apresentado por Mara Gabrilli (PSDB-SP), inscreve no livro o nome de Dorina Nowill (1919-2010). Cega desde os 17 anos de idade, ela se destacou na luta pela inclusão social e pela acessibilidade das pessoas com deficiência. O Senado possui um prêmio — Comenda Dorina de Gouvêa Nowill — dado a personalidades que tenham oferecido contribuição relevante à defesa das pessoas com deficiência no Brasil.
Outros projetos como o PL 428/2021, de Confúcio Moura (MDB-RO), homenageia o líder republicado, ex-senador e ex-governador do Pará Lauro Sodré (1858-1944); o PL 761/2022, de Eliziane Gama (PSD-MA), inscreve a médica e professora Maria Aragão (1910-1991); o PL 477/2023, de Paulo Paim, indica o nome do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012); e o PL 3.863/2020, de Veneziano Vital do Rêgo, inclui no livro o nome do romancista, poeta, político e pintor acadêmico Pedro Américo.
Com o aumento do número de nomes inscritos no Livro de Aço, o técnico de atividades culturais do Panteão da Pátria e da Liberdade Ricardo Machado acredita que será necessário buscar uma solução para abrigar os novos heróis e heroínas.
— Estamos buscando uma solução para a inscrição dos demais heróis escolhidos pelos congressistas tendo em vista que existem cada vez mais homenageados e está se tornando inviável o acréscimo de mais chapas de aço ao livro. Porém não existe nada definido — disse Ricardo.
Pandemia
Apresentado pela CPI da Pandemia, o PL 3.820/2021, presta homenagem aos profissionais de saúde que atuaram “com dedicação e heroísmo no enfrentamento da pandemia de covid-19”. O texto já foi aprovado no Senado e tramita na Câmara. Se a lei for sancionada, o Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves abrigará também o Livro dos Heróis e Heroínas da Pandemia de Covid-19.
O nome de Niemeyer pode entrar no livro; e a sala da CPI, que propôs homenagem aos ‘heróis da pandemia’Roger Pic/Biblioteca Nacional da França e Pedro França/Agência Senado
Panteão
O Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves foi inaugurado em 7 de setembro de 1986. Quando Niemeyer iniciou o planejamento, o principal objetivo era que o monumento se integrasse à Praça dos Três Poderes.
No primeiro pavimento do panteão, nível solo, funciona a parte administrativa do Centro Cultural Três Poderes. No segundo pavimento, está o “Mural da Liberdade”, de Athos Bulcão, que faz referência à Inconfidência Mineira e a bandeira de Minas Gerais. Também estão presentes, desde 2012, bustos e documentos [réplicas e originais] que contam a história de vida pessoal e política de Tancredo Neves. No terceiro pavimento, chamado Salão Negro, há um busto do Almirante Tamandaré e a obra “O Vitral e o Pássaro”, de Marianne Peretti, que auxilia na iluminação.
Outra obra presente é o painel que conta a história da Inconfidência Mineira, executada por João Câmara Filho. No mesmo salão encontra-se a obra “O Negro”, também de Marianne Peretti, que guarda o Livro de Aço dos Heróis Nacionais. O livro pode ser tocado pelos visitantes e as páginas passadas para ler os nomes e pequenas biografias dos homenageados.
Para Ian Alencar, o panteão reflete a diversidade cultural brasileira.
— O devido reconhecimento do Panteão da Pátria e da Liberdade perpassa a questão da divulgação. Tem a ver, ou deveria ter, com o modo como ele é percebido, valorizado, cuidado e abraçado pela sociedade e pelos Poderes. Brasília é uma região de confluência. As diferentes culturas do Brasil se encontram em Brasília. A pluralidade de contextos e culturas que cercam os heróis e heroínas atua, em parte, na viva formação de uma cultura tipicamente brasileira, talvez sintetizada nesta confluência. — disse Alencar.
No interior do panteão, o Mural da Liberdade, de Athos Bulcão, e o Painel da Inconfidência Mineira, de João Câmara Filho; do lado de fora, a Pira da Liberdade, sempre acesaGeraldo Magela/Agência Senado e Roque de Sá/Agência Senado
Para o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), é preciso divulgar mais o panteão, por sua importância para a história do Brasil e de Brasília.
— Muitos que moram aqui na capital sequer visitaram, uma única vez, esse memorial tão importante para a história de nosso país. Apesar da bela arquitetura e sua pira [da liberdade, que representa a chama da democracia] sempre acesa, os visitantes não chegam a ir até lá. Talvez por falta de informação. Creio que deveria ser mais divulgado — disse o senador à Agência Senado
Saraiva explica que o Panteão, além de homenagear os heróis e heroínas, serve como “símbolo da redemocratização do país” após a ditadura militar (1964-1985).
— Acrescentado pelo próprio Oscar Niemeyer ao conjunto de três palácios da Praça dos Três Poderes, inegável obra-prima arquitetônica que sedia o centro do poder nacional, mas em posição de menor destaque, o Panteão quer marcar o momento de uma refundação da República, com a esperança de que a pátria e a liberdade (vale dizer, a democracia) permaneçam sempre irmanadas — concluiu o consultor.
O panteão funciona regularmente de terças a sextas-feiras, das 9h às 18h, e aos sábados, domingos e feriados das 9h às 17h.
Fonte: Agência Senado