15/06/2024 | Por Ailton Sena DRT 5417/BA
A maioria dos atendimentos são de mulheres do interior do estado; a DPE/BA atua pelas vias judicial e extrajudicial para garantir o aborto de fetos incompatíveis com a vida não previstos em lei, quando é desejo da gestante
Sandra* estava na 22ª semana de gestação quando foi encaminhada à Defensoria Pública da Bahia (DPE/BA). Moradora de um município do interior do estado, ela havia descoberto que o feto tinha agenesia renal bilateral, uma malformação genética que impossibilita a vida extrauterina. Através da atuação do Núcleo de Defesa das Mulheres (Nudem), foi protocolado um pedido de autorização judicial para realização do aborto, deferido com quatro dias.
No Brasil, a interrupção da gestação é garantida em três hipóteses pelo ordenamento jurídico. De acordo com o Código Penal, o aborto não pode ser penalizado quando se trata de gestação com risco de vida para a gestante ou é decorrente de estupro. E, desde 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela não criminalização em casos de anencefalia fetal, uma malformação genética que impossibilita a vida.
A história de Sandra representa o cenário de atendimento às mulheres com diagnóstico de gestação incompatível com a vida não previsto no ordenamento jurídico. Nesses casos, a ausência de permissivo legal demanda atuação judicial quando o aborto é uma escolha da gestante. Na DPE/BA, a maioria delas chegam com, pelo menos, 20 semanas de gravidez (57,5%) e residem em municípios do interior (56,1%). Entre 2022 e maio deste ano, o Nudem recepcionou 73 casos, com tempo médio entre o recebimento, ajuizamento e autorização judicial de uma semana.
Os dados são do observatório de atendimento para interrupção de gestações com malformação fetal incompatível com a vida extrauterina do Nudem. Por meio de relatórios, ele sistematiza as demandas recepcionadas na capital e no interior do estado e possibilita o acompanhamento das pacientes da chegada à instituição até após realização do procedimento cirúrgico. Na DPE/BA, o Nudem é referência para atuação nesses casos em todo o estado.
“Estamos articuladas em rede para que os casos sejam judicializados apenas em última hipótese”, aponta a coordenadora de Direitos Humanos e do Nudem, Lívia Almeida. Para ela, a centralização dos atendimentos é importante para garantir acolhimento por equipe especializada e a construção de um banco de dados para pensar estrategicamente formas de ampliar os permissivos legais.
Além da agenesia renal bilateral, diagnóstico do feto de Sandra, chegam à DPE/BA diversos outros casos de incompatibilidade com a vida extrauterina não previstos na legislação. Entre eles, estão displasia esquelética letal, hipoplasia pulmonar, holoprosencefalia alobar, entre outros.
Desde que o observatório iniciou os trabalhos, observou-se um crescimento das demandas. Em 2022, foram 21 casos, 27 no passado e 25 somente até maio deste ano. Na avaliação de Lívia, isso diz de uma maior integração com a rede de proteção à saúde da mulher proporcionada, inclusive, pela criação do Fórum Aborto Legal. “O número de atendimentos amplia porque os casos chegam até nós pela própria equipe médica, que envia por e-mail”, avalia a defensora pública.
Atendimento com equipe especializada
Dentro do Nudem, as demandas são recepcionadas, preferencialmente, pela equipe do Núcleo de Atendimento Psicossocial (NAP), que acompanha as mulheres mesmo após realização do aborto, quando é o desejo da gestante. O atendimento realizado pela equipe psicossocial também possibilita a identificação de demandas socioassistenciais e garante a adoção de medidas extrajudiciais para garantir a realização do procedimento.
“A gente desenvolve diversas articulações, uma delas é com as secretarias de saúde do interior para acionar o TFD [Tratamento Fora de Domicílio] quando é preciso fazer exames mais detalhados que, na maioria das vezes, o município de origem não disponibiliza”, exemplifica a assistente social Thagila Rodrigues acerca do trabalho realizado com os casos que chegam à DPE/BA com diagnósticos inconclusivos.
A maioria das mulheres que chegam à instituição estão extremamente fragilizadas, principalmente quando o diagnóstico de incompatibilidade com a vida do feto acontece em estágios avançados de gestações que eram desejadas. A equipe do NAP trabalha em conjunto com as unidades onde elas estarão referenciadas, principalmente, as maternidades, a fragilização socioemocional. Contudo, para a defensora Lívia Almeida, a judicialização prolonga o sofrimento.
“A demora nesses casos equivale à tortura. E, muitas vezes, são exigidos laudos complementares, o que atrasa o procedimento e causa nessas mulheres uma sensação de ansiedade. A maioria descobre essa incompatibilidade na metade da gestação, então o próprio procedimento médico muda conforme o tempo passa”, explica a defensora pública.
As pessoas que encontrarem dificuldades ou negativas para realizar o aborto legal podem buscar o Nudem da Defensoria da Bahia, presencialmente na Casa da Mulher Brasileira ou através do e-mail [email protected], ou procurar as unidades da DPE/BA no interior do estado. A instituição também atua para garantir a interrupção de gestações de fetos incompatíveis com a vida não previstas no ordenamento jurídico.
*Nome fictício para preservar a usuária da DPE/BA
A série de Reportagem “Questão de saúde” se propõe a estimular o debate sobre o direito ao aborto como uma questão de saúde das pessoas que gestam. O tabu e o viés ideológico com que a temática é abordada contribui para o desenvolvimento de danos físicos, emocionais e materiais que acometem, inclusive, as pessoas que possuem o direito legal. O lançamento da série coincide com a celebração do Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher e Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna. O principal objetivo da data é chamar a atenção e conscientizar a sociedade sobre diversos problemas de saúde causadores de mortalidade materna. No entanto, o aborto inseguro não é um tema que ganha destaques nas campanhas do mês da Saúde da Mulher.
Fonte: DPE-Bahia / Foto: Pexels