Reforma Tributária deve elevar impostos dos setores de serviços e agricultura

Brasil

Dono de uma das maiores cargas de impostos do mundo, o governo patrocina uma Reforma Tributária que aumentará a taxação de setores essenciais. Ao mesmo tempo, promete, com o arcabouço fiscal, zerar o rombo nas contas públicas em 2024 e até gerar superávits a partir de 2025

 cobrança de impostos no Brasil é um emaranhado de siglas: IPI, PIS, Pasep, Cofins, ICMS, ISS… São 92 tributos. Eles representam 34% do PIB (que, em 2022, totalizou R$ 9,9 trilhões). Uma das maiores cargas do mundo. Nos EUA o peso dos impostos é de 17% do PIB. Ou seja, o brasileiro, que tem uma renda per capita anual de R$ 35 mil, paga o dobro do rico americano, cuja renda per capita é de R$ 358 mil. Agora, o governo e o Congresso discutem a Reforma Tributária que promete cobrar um imposto único (o IVA ou IBS), no valor de 25% de tudo o que o cidadão consome. Vai simplificar, vai! Mas vai prejudicar sobremaneira vários setores, como o de serviços (escolas, hospitais, planos de saúde, restaurantes e uma cadeia enorme de atividades), que hoje paga uma média de 7% de ISS, por exemplo, e a agropecuária, que recolhe muito menos, e que, em alguns casos, é de 12% de ICMS. Muitos produtos chegam até a ser isentos quando se trata de alimentos da cesta básica, como o arroz e feijão nosso de cada dia. Esses dois segmentos serão violentamente atingidos, e você, leitor, vai, mais uma vez, pagar a conta. Afinal, além do IVA, você já é extorquido com até 27% de IR sobre os salários recebidos e isso não vai mudar. A indústria é a única que sairá ganhando, pois hoje recolhe taxas de até 57,25% (inseticidas) e 51,8% (perfumes). Os automóveis pagam 42,41%. Mas, como sempre, o governo vai dar com uma mão e tirar com a outra. Vai retirar os subsídios aplicados na economia (a indústria é a que mais recebe) e que no ano passado atingiram R$ 329,4 bilhões. Isso é bom por que o Estado ficará menor. No curto e médio prazo, o País terá um custo Brasil menor para carregar, forçando o produtor a aumentar a produtividade. Mas, segmentos como os da Zona Franca de Manaus podem sucumbir, já que só sobrevivem graças aos incentivos fiscais. Como o novo IVA será dividido na proporção de 14% para a União, 9% para os estados e somente 2% para os municípios, a quebradeira pode ser grande, se não houver regimes especiais ou outras compensações. Nesta reportagem, você vai ver que a sociedade brasileira, como um todo, vai ter que por a mão no bolso para sustentar a pesada máquina estatal. Afinal, o governo não se dispõe a cortes mais profundos de seus gastos para aliviar essa carga pesada que você carrega nas costas.

Simplificar a esdrúxula estrutura tributária do Brasil. Esse tem sido o mantra de empresários e economistas desde a Constituição de 1988, mas o Brasil nunca conseguiu fazer a reforma, ora porque os estados e municípios, já falimentares, alegam que perderão receitas e ora por que os empresários consideram que terão perdas e, a sociedade, de um modo geral, suspeita que arcará com uma carga ainda maior. Agora, com o avanço dos projetos para a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) no Congresso, estudiosos e segmentos estratégicos temem as possíveis consequências da mudança que vem embutida no projeto, como o aumento da taxação, e apontam falhas. Da forma como tramita na Câmara, o IBS substituiria cinco tributos. Até aí, representaria um progresso. Só que, na prática, ele acumula distorções. Definido nos moldes atuais em apenas uma alíquota de 25% para todos os setores, a taxação única, de acordo com especialistas ouvidos por ISTOÉ, representaria perda nas arrecadações de estados e municípios e elevaria a carga tributária de áreas-chaves do País, a exemplo do agronegócio e do ramo de serviços. Juntos, ambos representam mais de 70% do Produto Interno Bruto (PIB), geram cerca de 70 milhões de empregos e são responsáveis por garantir melhoras nos níveis de crescimento econômico ano após ano. E, segundo entidades desses setores, o aumento dos custos com tributos provocaria reajustes em cascata. De um lado, derrubaria investimentos e geraria demissões. Do outro, haveria um repasse de valores ao preço final, o que impactaria o consumidor da hora de comprar alimentos básicos, mas os danos seriam irreparáveis no pagamento de mensalidades de escolas ou convênios médicos. Oneraria o cidadão, e sobretudo, a classe média.

A ideia de se criar um imposto único para simplificar a estrutura tributária amadureceu tanto nos corredores do Congresso quanto entre governantes, empresários e economistas após décadas de discussões. Existe um sentimento de unanimidade de que não há modo de a economia prosperar com a atual infinidade de impostos, o que gera insegurança jurídica para os setores produtivos. Como parte desses tributos são municipais e estaduais, eles variam de acordo com a localidade e o desejo de determinado prefeito ou governador. Isso sem contar as situações quase folclóricas que acabam decididas em tribunais. Hoje, um sapato, por exemplo, a depender do solado, material ou acabamento, pode ser taxado com alíquotas diferentes. Se enquadrado pela Receita Federal em uma categoria de tributo mais alto, caberá à empresa contratar e pagar advogados para tentar reverter a decisão ou incorporar as despesas decorrentes da sobretaxação ao seu preço ou margem de lucro. “Essa reforma é extremamente necessária e já foi adiada demais. Hoje, vivemos num manicômio tributário”, aponta o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega. Segundo cálculos de especialistas, há cerca de 70 milhões de processos de natureza tributária em andamento no País.

Simplificação

Na busca de resolver o problema, tenta-se importar uma solução utilizada mundialmente: o Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Na prática, trata-se de um tributo único. Ele incide em todas as etapas da cadeia de produção até a venda final. Mas cada empresa envolvida no processo pode abater os seus custos produtivos dos impostos a serem pagos. Uma das suas versões defendidas no Brasil recebeu o nome de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e tramita na Câmara por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45. Apresentado em 2019 pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), o texto está em estágio avançado de discussão. Por trás da iniciativa aparece o economista Bernard Appy. Dedicado há décadas ao tema, Appy foi alçado a secretário extraordinário da Reforma Tributária pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A nomeação deixou claro como a gestão Lula encampou o projeto e vê nele um estímulo ao crescimento do PIB, a ponto da ministra do Planejamento, Simone Tebet, declarar à ISTOÉ que a reforma será “a bala de prata do governo para desenvolver a economia”.

Na proposta em tramitação na Câmara, o imposto único substituiria cinco tributos federais, estaduais e municipais. Ou seja, PIS, Cofins, IPI, ISS e ICMS dariam lugar ao tal IBS, que, por sua vez, seria igual para todos os setores da economia. Do colégio particular à indústria, a alíquota cobrada seria a mesma. Apesar de ela sequer constar no texto, o próprio Appy tem repetido que ficará em 25%. Dessa forma, assegura, manteria-se a atual carga tributária sobre consumo do País. Mesmo assim, essa taxa seria absurdamente alta, sendo a segunda maior do mundo, atrás apenas da Hungria (leia quadro na pág. 25). Porém, outros estudiosos desconfiam dos cálculos. Segundo Paulo Rabello de Castro, ex-presidente do BNDES e do IBGE e PhD em economia pela Universidade de Chicago (EUA), em exercícios aplicados o número é bem diferente. “Já estive algumas vezes com o Bernard Appy e ele nunca demonstrou como chegou a esse número de 25%. Antes, falava até em 20%. Nós usamos algoritmos e calculamos que para se manter a carga de tributos de consumo do Brasil em um imposto único, com somente uma alíquota, seria necessário taxar em 29% para se manter a atual máquina pública”, diz Paulo Rabello. “Por isso, é que eu digo que essa turma está querendo fazer um experimento de laboratório com um avião chamado Brasil em pleno voo”, complementa.
Talvez o maior calcanhar de Aquiles da Reforma Tributária de Appy, patrocinada pelo governo, seja justamente a imposição de uma alíquota única. Setores como de serviços e agronegócios serão os mais prejudicados. Ao contrário da indústria ou comércio, eles teriam menos custos descontáveis no IBS. Suas principais despesas, em muitos casos, concentram-se na folha de pagamentos dos funcionários, algo não dedutível pela proposta atual. “A proposta da PEC tem muitas virtudes, a principal é agregar os cincos impostos em um único, só que não adianta ter um imposto com apenas uma alíquota”, aponta o economista Roberto Giannetti da Fonseca. Para ele, deveria existir um único imposto, porém, com alíquotas distintas. “Tem que ser um imposto, no caso do IVA, com três ou cinco alíquotas distintas. Assim é feito na Europa. Não vamos inventar a roda. É olhar como está feito lá e fazer aqui. Lá dá certo há 30 anos. Por que tentar fazer diferente?”, aconselha Giannetti da Fonseca.

Impactos no bolso

Entidades de classe já calculam os impactos sofridos caso a ideia de alíquota única prospere. O setor de transporte coletivo de passageiros, por exemplo, passaria de 15,65% de imposto para os 25%, e os laboratórios de análises clínicas gastariam quase cinco vezes mais do que os atuais 5,65% para acertar as contas com o Fisco. Já os colégios particulares teriam um aumento de carga tributária de mais de 200%, penalizando escolas e pais dos alunos. “Há um ponto comum entre vários estudos de constatação de que os setores de prestação de serviços sofrerão com o aumento substancial de carga tributária, com a adoção de um IBS de 25%”, diz Maria Andréia dos Santos, do escritório tributário Machado Associados. “E tanto é assim que diversos agentes políticos já estão reconhecendo a necessidade de um tratamento diferenciado para algumas áreas do setor de serviços.” Realmente, nas últimas semanas, essas áreas aumentaram a pressão sobre os parlamentares do Grupo de Trabalho da Reforma Tributária da Câmara em busca de exceções que as contemplem.

E o cenário gera ainda mais preocupação no agronegócio. Segundo dados da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), a mudança para o IBS seguindo as condições postas provocaria uma disparada de 875% nos impostos pagos pela agricultura; de 783,3%, pela pecuária; e de 230,8%, pela produção florestal e pesca. Se uma parcela dos custos acabasse absorvida na margem de lucro dos produtores rurais, grande parte impactaria no preço final ao consumidor. Segundo o coordenador do Núcleo Econômico da CNA, Renato Conchon, a cesta básica sofreria uma elevação de 22,7%, o que aumentaria a inflação e afetaria o poder de compra da população. “Muitos países, ao adotarem o IVA, entenderam as especificidades do setor e deram tratamento diferenciado ao agro”, explica Renato Conchon. “Tributar com a mesma alíquota produtos de luxo e alimentos prejudicará a renda da classe média brasileira”, critica.

Embora o ministro Fernando Haddad fale que haverá uma transição do modelo atual “suave”, de vinte anos, a proposta na Câmara prevê um período menor. Seriam dois anos de teste do novo modelo de imposto único. Nesse período, haveria uma redução somente da Cofins e a cobrança de um IBS de 1%. Depois, ocorreria uma transição de oito anos, em que o IBS subiria, enquanto PIS, Cofins, IPI, ISS e ICMS cairiam proporcionalmente, até zerarem. Na opinião de especialistas ouvidos por ISTOÉ, o longo período até a total implementação do IBS representa outro ponto crítico da proposta. Os setores produtivos do País viveriam com dois modelos tributários em vigor. Conviveria com as falhas do antigo e com o novo modelo em fase de adaptação. O que ninguém sabe ao certo é a que quadro isso nos levará, mas está claro que deverá mexer mais uma vez com o bolso do brasileiro. Isso, dizem analistas, demandaria tempo e recursos para adequação, com potencial para ampliar discussões e demandas jurídicas das empresas, o que sempre representa aumento de custos. “Considerando esse reflexo, o preço de bens e serviços vai subir, afetando a população”, não tem dúvidas Irene Guimarães, gerente fiscal da multinacional de auditoria Mazars.

Outra proposta tramita no Senado Federal por meio da PEC 110. Apesar de possuir muitas semelhanças com o da iniciativa dos deputados, ela conta com pontos divergentes. Institui a criação de dois impostos (dual), um IBS de competência estadual e municipal, e outro federal. O período de transição para a implantação do projeto também difere. Seria um ano de teste e cinco anos até a total transição da cobrança dos tributos antigos para os dois IBSs. A proposta do Senado autoriza a concessão de benefícios fiscais por Lei Complementar, o que a da Câmara proíbe. Há uma contradição nos gestos do governo para alguns especialistas. Enquanto eleva a Reforma Tributária para a condição de “bala de prata” da economia, a gestão Lula deixa o texto correr solto no Congresso. Na opinião de Heleno Torres, professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), uma proposta sobre um tema dessa sensibilidade deveria partir do Executivo. Se a gestão Bolsonaro não fez discussões nem apresentou um texto, o governo Lula não deveria repetir o mesmo erro. Caberia à esfera federal tratar isso como assunto de Estado. Chamar a sociedade civil, governos estaduais, prefeituras e setores estratégicos para discutir, elencar as prioridades da gestão e fazer e repetir cálculos sobre a maneira em que as medidas afetarão a economia.

Uma das últimas inovações foi a do “cashback” tributário. Por meio dele, famílias de baixa renda participantes de programas sociais receberiam de volta o imposto pago quando adquirirem artigos básicos. Uma “pseudo-justiça social” para muitos especialistas. Eles consideram que seria devolver como prêmio, o que nunca deveria ter sido nem cobrado. Esses itens em países desenvolvidos que já adotam o IVA possuem baixa ou nenhuma tributação justamente para não penalizar os mais pobres, que comprometem a maior parte de sua renda consumindo. Existe ainda o temor que ocorram fraudes.

À ISTOÉ, o secretário extraordinário da reforma tributária Bernard Appy prometeu que não haverá aumento na arrecadação sobre consumo com o IBS e que, com a mudança, os consumidores saberão exatamente quanto pagam de imposto. Segundo ele, “muitas empresas estão achando que serão prejudicadas, mas na verdade serão beneficiadas pela reforma. Por isso estamos empenhados em trazer ao debate público números confiáveis”. Além disso, há que se considerar que a reforma gerará um impacto positivo na economia e, por conta disso, todos ganharão. Já, com relação ao setor de serviços, o secretário diz que quase 90% dos prestadores de serviços ao consumidor final estão enquadrados no Simples ou MEI e estes regimes não sofrerão qualquer mudança com a reforma. “As empresas passarão a tomar crédito do imposto incidente sobre os serviços prestados no meio da cadeia, o que hoje não ocorre. A reforma trará um impacto positivo sobre o setor de serviços, pois elevará o efeito positivo na economia como um todo”. A saída é esperar que Appy e Haddad estejam certos: o Brasil não suporta mais anos seguidos de contas públicas desordenadas, com baixo crescimento.

Fonte: Isto é