Regina Silveira faz política com imagens e coloca a realidade em xeque

cultura

Exposição em São Paulo revela o processo criativo da artista e professora da USP que vê a representação do mundo como resultado de um ato político

Para Regina Silveira, a maneira como enxergamos o mundo é resultado de um ato político. Não existe realidade única, pronta e simplesmente à espera de ser apreendida, mas uma construção dessa realidade feita a partir de imagens. São elas que nos permitem voar pelos labirintos de luz e sombras do cotidiano, seguindo padrões e pegadas algumas vezes ilusórias, outras violentas ou mesmo perversas.

Por mais de 50 anos, Regina Silveira, artista visual e professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, vem discutindo essas questões em seu trabalho. Agora, em gesto que não deixa de ser político, revela o “manual de instruções” de sua obra, apresentando ao público seus percursos de produção, desde a ideia até o resultado, passando por planejamentos, rascunhos, desenhos e outras etapas preparatórias.

É isso que os visitantes encontram em Modus Operandi, exposição em cartaz no Instituto de Arte Contemporânea (IAC) , em São Paulo, até 26 de julho. Com curadoria de Agnaldo Farias, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, a mostra reúne maquetes, desenhos, vídeos, esboços, reproduções e obras para revelar os bastidores do processo criativo de Regina.

Mulher de óculos, sorrindo.

A artista e professora da USP Regina Silveira: interesse nas complexas relações entre o real e o ilusório – Foto: Luiz Prado

“As pessoas associam o trabalho artístico à inspiração, a alguma coisa que vem de dentro, que é inefável, que você não explica, que é um dom, e não é isso”, comenta Farias. Segundo o curador, exposições como Modus Operandi ajudam a desvendar o processo e mostrar de onde vem o raciocínio que inspira as obras. “É importante essa desmistificação, apresentar um trabalho de arte como resultado de um pensamento.”

No caso de Regina Silveira, pensamento interessado nas complexas relações entre real e ilusório, presença e ausência. Nesses embates, cabe à arte transformar a experiência que temos do mundo a partir de um convite ao olhar, provocando-o com imagens desconstruídas, reveladoras da ilusão travestida de realidade. Por isso, a artista investe em distorções que transformam objetos cotidianos e instalações que alteram nossa percepção dos espaços.

Para Farias, a artista nos faz pensar que qualquer representação é uma forma de deformação. “Ela discute o problema da representação das coisas”, explica o curador. O ponto para Regina é que representações objetivas não existem e a objetividade, portanto, é relativa. O resultado é que a própria realidade, assim, é uma questão de perspectiva. “Os objetos também são isso, a visão que temos deles. O mundo depende de nós”, sublinha Farias.

Homem careca, de óculos, sorrindo.

O curador Agnaldo Farias: “Regina Silveira discute o problema da representação das coisas” – Foto: Luiz Prado

Exemplo disso é Transitório/Durévole, obra que motivou o curador a pensar na exposição. O trabalho surgiu de uma carta e de fotos que a escultora e poetisa italiana Mirella Bentivoglio enviou para Regina em 2000, com a sugestão de um trabalho conjunto. O resultado, que aparece reproduzido na parede e no piso do IAC, é um comentário sobre a transitoriedade da vida humana e a perenidade da cultura, servindo também para nos fazer questionar o que é real e o que é representado.

É esse tipo de reflexão que se espalha pelasduas salas do primeiro andar do IAC. Elas reúnem materiais da artista e também documentos recentemente doados por Regina para a instituição, cuja missão é justamente conservar documentos relacionados a artistas visuais brasileiros, como Amilcar de Castro, Antonio Dias, Carmela Gross, Ivan Serpa, Sérgio Camargo e Willys de Castro.

Em vez de uma organização retrospectiva, Farias e Regina privilegiaram um conjunto reduzido de trabalhos, julgados significativos das principais discussões levadas a cabo pela artista. Parte do que está exposto trata de projetos já exibidos no Brasil, enquanto outra parte se concentra em instalações que estiveram em países como Bélgica, Chile, Estados Unidos, Japão e México. A seleção revela a variedade de suportes com que Regina vem trabalhando desde os anos 1970, quando se afastou da pintura, motivada pelas inquietações com a representação, e passou a ser considerada uma artista multimídia.

Parede coberta com textos escritos em italiano.

Carta da artista italiana Mirella Bentivoglio que inspirou Regina Silveira a criar a obra Transitório/Durévole – Foto: Luiz Prado

Uma das salas abriga documentos relacionados a trabalhos de grande escala de Regina, como intervenções urbanas e interferências em espaços museológicos, obras que impactaram de maneira significativa os ambientes nos quais foram inseridas. Estão lá documentos, gráficos, maquete e um documentário sobre Casulos (2013), trabalho em que Regina interviu em ônibus urbanos como parte da 8a Bienal Internacional de Curitiba, em 2013. O interesse por padrões gráficos consta também da maquete de Dreaming of Blue (2016), estudo que preparou a intervenção na fachada de uma escola para a Trienal de Setouchi, no Japão.

Ocupando o lado oposto da sala, encontra-se a representação gigante de um cavalete, composto de linhas descontínuas, código de invisibilidade que aborda a falta de sentido da pintura. Parte de Desaparência, cujo processo criativo se revela também por desenhos em papéis quadriculados e registros fotográficos de ateliês.

A outra sala apresenta materiais de projetos de menor escala, alguns responsáveis por criar seus próprios espaços de interação. Como Corredores para Abutres, trabalho mais antigo em exposição, feito inicialmente em 1982 para um livro de arte e que aparece agora em peças de ardósia gravadas digitalmente, acompanhadas de seus desenhos preparatórios.

Como explica a própria artista, a obra nasceu de um artigo encontrado em uma publicação científica que descrevia o voo das aves. A partir dos esquemas de colunas de ar quente, Regina criou o que chama de percursos difíceis. “Tudo isso tem a ver com nosso regime militar”, conta a artista. “Tudo isso tinha uma motivação meio política.”

E ainda tem. Na versão atual, a ardósia, com sua durabilidade e solidez, tensiona com a delicadeza do voo. “É a marcação em cima de uma pedra que é piso, que é chão, e desse chão emanam vetores de força que atraem, mas, ao mesmo tempo, são labirínticos e perigosos, dardejam as aves e podem matá-las”, sugere Farias.

Violência que também aparece na maquete de Paisagem (2020), o labirinto de vidros temperados marcado por estilhaços de balas tirados de jornais, obra preparada para a 34a Bienal de São Paulo, em 2021. Nas paredes ao lado da miniatura, esquemas de elaboração do trabalho se juntam a uma representação gráfica ampliada dos rastros da violência urbana em Bala de Prata (2022).

Labirintos fazem parte da obra de Regina desde os anos 1970. “Sou atraída por essa forma intrincada”, afirma a artista. Representações mentais, representações da vida, seja no perigo posto às aves de rapina, seja na produção de um espaço que nos torna alvos da violência. Caminhos não retilíneos e sem ponto de chegada previsto. Como a própria arte.

É desse modo que o percurso tortuoso pode ser o do próprio público diante de Modus Operandi, confrontado com um “manual de operações” que revela possibilidades de pensamento e reflexão a partir de caminhos nada óbvios. Dessa jornada, perigosa a seu próprio modo, resulta para Farias um encantamento para a mente e para os olhos. “O trabalho de Regina tem esse rigor. Ele é inusitado, calculado, muito elaborado do ponto de vista mental. Isso não tem novidade. Da Vinci falava que a pintura é uma coisa mental. Mas, aparentemente, as pessoas esquecem que a arte é uma coisa mental.”

Por isso, ao desvendar as veredas intelectuais que desembocam no resultado artístico, Modus Operandi desmonta a ilusão do entendimento fácil. Se arte é consequência do pensamento, torna-se assombroso imaginar o potencial que detém para confrontar o real. Seja ele qual for.

A exposição Modus Operandi, da artista e professora da USP Regina Silveira, acontece até 26 de julho, de terça a sexta-feira, das 11h às 17h, e aos sábados e feriados, das 11h às 16h, no Instituto de Arte Contemporânea (IAC), localizado na Avenida Doutor Arnaldo, 126, Consolação, em São Paulo. Entrada grátis.

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

Texto: Luiz Prado Arte: Beatriz Haddad** / Fonte: Jornal da USP

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