Após 10 anos, alguns rostos que tiveram a vida interrompida no trágico incêndio puderam ser digitalmente reproduzidos
A noite do dia 26 de janeiro de 2013, inicialmente marcada para uma grande festa envolvendo entre 500 e 1.000 estudantes — dos cursos de Pedagogia, Agronomia, Medicina Veterinária e Zootecnia — da Universidade Federal de Santa Maria mudou de tom no decorrer da madrugada.
Reunidos na Boate Kiss, no município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, eles presenciavam o show da banda Gurizada Fandangueira, quando um susto tomou conta do local, iniciando uma das maiores tragédias da história do país.
Próxima da lotação máxima, a apresentação se música sertaneja foi interrompida após o vocalista do conjunto acender um artefato pirotécnico, justamente no ambiente fechado, com paredes e teto cobertos com espuma de isolamento acústico, altamente inflamável.
A personagem ‘Grazi’ na série Todo Dia a Mesma Noite, da Netflix (2023) – Divulgação/Netflix
Boate Kiss
Atriz fala sobre importância da série que resgata tragédia da boate Kiss: ‘A memória precisa ficar viva’
Em decorrência do incêndio que iniciou instantaneamente, uma série de problemas ligados a segurança e infraestrutura do local adicionaram ainda mais pânico nas centenas de pessoas que tentavam correr das chamas que se espalhavam rapidamente, matando 242 pessoas e deixou outros 363 feridos devido ao contato com fogo e gás tóxico decorrente das chamas.
Com tom de imprudência e anos de desamparo as famílias de vítimas fatais e sobreviventes do episódio, o coletivo ‘Kiss: Que Não Se Repita’ (KQNSR), reúne esforços para enaltecer a memória das pessoas que perderam a vida na tragédia com intervenções de diversos tipos.
Tempo perdido
Em entrevista exclusiva ao Aventuras na História, o idealizador do projeto, André Polga, explicou como são os trabalhos em conjunto com famílias e, em especial, como funciona um recente projeto que chamou atenção nas redes sociais, chamado ‘Tempo Perdido’. Nele, vítimas do incêndio são retratadas como se ainda estivessem vivas, 10 anos depois, com o auxílio de inteligência artificial e ferramentas de manipulação de imagens.
De acordo com ele, a inspiração para a ideia surgiu de Hidreley Dião, artista de Botucatu, em São Paulo, que viralizou no último ano ao retratar Isabela Nardoni, Bernardo Boldrini e Daniela Perez caso pudessem envelhecer até o ano de 2022, como se não tivessem sido assassinados. Na versão do KQNSR, selecionaram algumas figuras ilustradas no livro “Todo Dia a Mesma Noite”, da jornalista Daniela Arbex.
Foram contempladas oito famílias. Nosso viés de escolha partiu da ideia de homenagear aquelas famílias que estão na frente da batalha judicial neste período de tempo de 10 anos. Não só a isso, a argumentação passa também em escolher alguns dos personagens do livro […] por serem histórias reconhecidas a nível nacional, já que muitas das pessoas que chegam nas redes sociais do coletivo KQNSR provém da leitura desse livro”, afirmou.
Ele acrescenta que as imagens foram aceitas pelas famílias com apreço e carinho, possibilitando o enaltecimento da memória, especialmente em reflexões sobre como os jovens estariam hoje em dia. André ainda enaltece que o projeto ‘Tempo Perdido’ possibilita reviver a identidade dessas pessoas como uma forma de relembrar o passado, para que casos semelhantes não ocorram no futuro.
Essa identidade mostra, de forma palpável, um número limitado de oito. E tendo esse número, as pessoas conseguem perceber que cada número desses é uma história, uma família, sonhos interrompidos… Quando se fala em 242, por vezes pensamos, inconscientemente, que faz parte de uma estatística. Quando conseguimos visualizar isso de uma forma mais “concreta”, podemos perceber a dimensão que foi, e ainda é, o incêndio na Kiss”, disse Polga.
Além de reproduzir com fidelidade os rostos das 8 vítimas fatais escolhidas pelo projeto, inteiramente publicado nas páginas oficiais do coletivo nas redes sociais, ele também ganhou uma exposição física na Praça Saldanha Marinho, em Santa Maria, que ficou disponível para visitação entre os dias 26 e 27 de janeiro.
Mesmo que já encerrada, a exposição será utilizada em futuros projetos locais, pautando a memória do caso e questões sobre segurança e prevenção. O idealizador do coletivo acrescenta que o material pode ser usado no próximo julgamento dos réis, caso for mantida a solicitação do ocorrido em 2021.
“Acredito que a maior forma de auxílio do Coletivo é justamente compartilhar a palavra. Nesses anos, conseguimos fazer com que mais sobreviventes e amigos se somassem à causa, compartilhando suas vivências, seu luto, percebendo que eles não estão sozinhos para enfrentar esse momento. Nossos projetos têm grande relevância nesse sentido, pois já recebemos vários feedbacks que confirmam o dito anteriormente”, concluiu.
Fonte: Aventuras na História