Revogação deve vir acompanhada de uma nova regulamentação para sustentar o Estatuto do Desarmamento
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) planeja revogar os decretos e portarias de Jair Bolsonaro (PL) que facilitaram a compra e circulação de armas de fogo no Brasil. No total, foram editados 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções e três instruções normativas, sem o crivo do Congresso Nacional.
Especialistas em segurança pública, no entanto, afirmam que apenas revogar as medidas não é suficiente para reverter o cenário construído pelo atual governo com a flexibilização do porte e posse de armas.
Isso porque os decretos, normas e resoluções foram feitas para regulamentar o Estatuto do Desarmamento, criado a partir da Lei 10.826 de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição. Sem a regulamentação, a legislação sozinha “não para em pé”. Nesse sentido, as normas revogadas precisam dar lugar a outras regulamentações.
A lei “depende de uma regulamentação do Executivo para determinar como serão determinadas as normas de porte e posse e como serão as competências da Polícia Federal e do Exército, ou seja, os órgãos que estão ligados a essa política de controle de armas”, afirma Felippe Angeli, da equipe do Instituto Sou da Paz.
O especialista alerta que o tema deve ser prioridade do próximo governo, “porque a cada hora dessas normas vigentes, a gente está falando de munição e armas semiautomáticas de grosso calibre sendo adquiridas. Não é uma crise que dá pra esperar um pouquinho. É uma coisa que, a cada minuto, o estrago é maior. Tem um vazamento. Precisa fechar ele o quanto antes”.
Pontos que devem ser considerados nas novas regulamentações
Uma das preocupações que deve estar presente no momento de formulação dos novos regulamentos é como fazer para diminuir a quantidade de armas que passou a circular no Brasil após a flexibilização.
Com os 41 novos regulamentos editados pelo atual governo sem passar pelo Congresso Nacional, aproximadamente 1.300 novas armas são compradas por civis diariamente, segundo o Instituto Sou da Paz. Em outros termos, isso significa que o número de armamentos nas mãos de civis triplicou desde o início do governo Bolsonaro: de 695 mil para 1,9 milhão. Resumindo, este é o momento da história nacional em que mais brasileiros têm armas em suas mãos.
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Uma das principais medidas foi a flexibilização da circulação de armas para os Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs). Na prática, um dos decretos liberou o porte de arma de fogo municiada e carregada no caminho entre o local de guarda autorizado e os de treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate.
Em outras palavras, isso permitiu aos CACs a circulação nas ruas com o porte de armas, o que é permitido apenas a algumas categorias. Com isso, a quantidade de armas registradas por CACs chegou a 1 milhão, um aumento de 65% em relação ao número em circulação em 2018: 350 mil.
Para diminuir essa quantidade, uma das medidas que poderia ser tomada é o banimento de alguns tipos de armamentos que foram autorizados pelas normas, ou seja, tornar esses produtos proibidos de circulação, como fuzis e semiautomáticas. Uma medida como esta teria de ser aprovada pelo Congresso Nacional.
Como se sabe, no entanto, pelo menos 23 congressistas foram eleitos para o Congresso com o apoio do Proarmas, o maior grupo armamentista do país, e devem formar a “bancada dos CACs”. A maioria deles são filiados ao Partido Liberal, assim como Jair Bolsonaro. O cenário no Parlamento, desta maneira, torna difícil a aprovação de projetos contra a flexibilização.
Mas existem outras possibilidades, como programas de recompra já realizados pelo Brasil. O Estatuto do Desarmamento, quando foi sancionado, criou a Campanha do Desarmamento, que consistia na entrega das armas aos órgãos de segurança pública por uma recompensa que variava entre R$ 150 a R$ 450. No total, duas campanhas deste tipo foram realizadas, uma em 2004 e outra entre 2008 e 2009, que geraram a devolução de 570 mil armas.
Destruição de armas entregues pela população ao governo após o Estatuto do Desarmamento / Isaac Amorim/Agência Ministério da Justiça
Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que outra medida é diminuir o tempo de renovação do registro, que saiu de três e cinco para 10 anos, e fiscalizar os compradores, ou seja, “fazer funcionar uma política de controle de armas que está em frangalhos”.
“Exército e Polícia Federal são incapazes de fazer funcionar o Sistema Nacional de Armas ou o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas. Então, é preciso também reforçar as capacidades de fiscalização e monitoramento para fazer valer não só o que está no Estatuto do Desarmamento, mas nessa nova regulamentação” que deve ser aprovada, diz Marques. “É um lugar de busca ativa para que essas armas estejam dentro do radar de monitoramento dos governos.”
“Não tenho a menor dúvida de que se houver um recenseamento, ou seja, se a PF e o Exército pegarem todos os registros inativos ou vencidos e baterem na porta da casa das pessoas procurando essas armas, muito do arsenal que está em circulação hoje vai ser apreendido por conta de irregularidades”, diz Marques.
Cenário criado com o governo Bolsonaro
Com tantas armas em circulação no país, boa parte foi desviada para o crime. Se em 2015, 31 armas de CACs foram furtadas ou roubadas por mês, esse número subiu para 112 armas em 2022.
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Também como consequência, houve um aumento do número de mulheres mortas e que sofreram algum tipo de violência com arma de fogo, dado o cenário permanente de violência doméstica brasileiro. Em 2020, 26% dos feminicídios foram cometidos com arma de fogo, segundo o Anuário Fórum Brasileiro de Segurança daquele ano. Em 2021, esse índice subiu para 29%.
Se por um lado cresceu a violência no país, por outro, setores lucraram com esse cenário. A indústria armamentista, por exemplo, viu seus lucros aumentarem exponencialmente. A empresa Taurus, principal fábrica de armas no Brasil, teve um crescimento de 323% em seus lucros entre 2018 e 2021, segundo o Instituto Sou da Paz. Em números absolutos, saiu de R$ 307 milhões para R$ 1,3 bilhão.
O cenário pode ser comparado aos anos anteriores ao Estatuto do Desarmamento. Antes da legislação, em 14 anos, o índice de assassinatos subiu uma média de 5,5% por mês. Nos 14 anos seguintes, as taxas passaram a ser de 0,85% a cada ano, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No mesmo sentido, cada vez que a quantidade armas de fogo em circulação aumenta 1%, a taxa de homicídios cresce em 2%.
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“O cenário criado pelo governo Bolsonaro nos últimos quatro anos é de um Brasil mais armado e com muito menos capacidade do governo de controlar ou minimamente monitorar essas armas que entraram em circulação e as pessoas que estão acessando armas de fogo”, afirma Ivan Marques.
“Mais armas em circulação, em qualquer sociedade, acaba gerando um aumento da violência seja direto ou indireto. A gente está falando de mais violência doméstica, mais abusos, violência contra a mulher, acidentes, crianças matando outras crianças ou parentes achando arma de fogo dentro de casa, e a gente também está falando de um desvio do mercado legal para o mercado ilegal.”
Reação bolsonarista
O anúncio do “revogaço” provocou uma reação em parlamentares bolsonaristas. O deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP) protocolou, nesta segunda-feira (7), um projeto de lei que prevê a garantia de posse e propriedade de armas “para aqueles que já as tenham adquirido de maneira legal”.
“A princípio, em um regime democrático vigente em pleno estado de direito, esse projeto de lei até seria redundante e desnecessário, mas, diante de ameaças que se avizinham, há de se garantir, de forma expressa na lei, o direito adquirido daqueles proprietários de armas de fogo em relação à manutenção da posse e da propriedade de suas armas, assim como das respectivas autorizações”, justifica o congressista no projeto.
Edição: Nicolau Soares
Fonte: Brasil de Fato