Depois de quase 30 anos sem plano de manejo, votos do agronegócio e governo da Bahia aprovam zoneamento permissivo na APA Rio de Janeiro, que prejudica comunidades tradicionais e ajuda agronegócio.
No dia 27 de maio de 2022 votos do Agronegócio e do governo no Conselho Estadual de Meio Ambiente (CEPRAM) da Bahia aprovaram o plano de manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) Rio de Janeiro. O plano de manejo é o instrumento que institui as regras de uso para a unidade de conservação no oeste baiano. A APA tem mais de 350 mil hectares e está localizada entre Barreiras e Luís Eduardo Magalhães, municípios baianos polos do agronegócio na região conhecida como MATOPIBA. Lá o Cerrado é intensamente explorado para plantios de soja, algodão e milho. Esses plantios de monocultura fazem uso intensivo de água, desmatam vegetação nativa e desgastam o solo. Organizações da sociedade civil questionam a aprovação do plano que foi elaborado e financiado por meio de convênio entre o Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) da Bahia e a Associação dos Agricultores e Irrigantes da Bahia (AIBA), entidade que reúne o agronegócio baiano.
Mais de 80% da água captada na APA é direcionada à irrigação. Embora inúmeras comunidades relatem problemas de acesso à água, menos de 11% é usada para abastecimento humano.
A reunião de aprovação do Plano de Manejo aconteceu dia 27 de maio de 2022. Cinco dias depois, dia 1° de junho, o governador Rui Costa esteve na Bahia Farm Show, segunda maior feira de tecnologia agrícola e negócios do Brasil, que ocorre anualmente na cidade de Luís Eduardo Magalhães-BA. O evento também é organizado pela AIBA, responsável pelo financiamento e contratação de consultoria para elaboração do Plano de Manejo da APA Rio de Janeiro. Nessa ocasião houve o anúncio de outro “presente” para o agronegócio: o aumento de volume e flexibilização dos critérios para outorgas de água concedidas pelo INEMA para irrigação de lavouras. Mesmo sem um plano da bacia que comprove a viabilidade desse aumento em relação aos outros tipos de uso.
A sociedade civil votou contra
Segundo manifestação enviada ao CEPRAM pelos conselheiros representantes da Associação de Promoção do Desenvolvimento Solidário e Sustentável (ADES), do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) e do Grupo de Defesa e Promoção Sociambiental (Gérmen) no CEPRAM, as regras do zoneamento proposto não buscam conciliar o setor produtivo com a conservação do Cerrado, já que classificam 66% de sua área como Zona de Uso Intensivo. “As diretrizes propostas pelo Plano são as mais brandas possíveis, sem que nada diferencie os manejos na APA dos manejos regulares do solo e da água em uma área comum”, diz o documento. Com base na manifestação das três organizações, o conjunto da sociedade civil votou contra a aprovação, solicitando que o processo entrasse em diligência para rever o plano, o que não foi atendido.
Leia no link a manifestação enviada ao CEPRAMmanifestaçÃo-pedido-de-vistas-Martin-Mayr-e-Renato-CunhaBaixar
A reportagem solicitou informações à Secretaria de Meio Ambiente da Bahia (SEMA) sobre os impactos da quantidade e extensão das autorizações de supressão de vegetação (ASV) no Cerrado baiano. A SEMA informou que “as autorizações de supressão de vegetação no Cerrado baiano emitidas pelo INEMA são feitas cumprindo as Leis Ambientais. Nessas autorizações, são exigidas, principalmente, as áreas de Reservas Legais e de preservação permanente dos imóveis que garantem a conservação ambiental do Bioma”. A SEMA esclareceu que existem unidades de conservação que auxiliam na restrição à supressão de vegetação nativa, como as Áreas de Proteção Ambiental (APA) da Bacia do Rio de Janeiro, do Rio Preto e de São Desidério. E completou destacando como “ação importante” a aprovação em maio, pelo Cepram, do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) da Bacia do Rio de Janeiro, localizado nos municípios de Barreiras e Luís Eduardo Magalhães.”
Questionada pela reportagem sobre a existência de ações empreendidas pelo Governo do Estado para ordenar o uso do Cerrado e diminuir os índices de desmatamento deste bioma, a SEMA informou que
“Os instrumentos da Política Estadual de Meio Ambiente já visam ordenar o uso do Cerrado e diminuir o desmatamento ilegal, principalmente a fiscalização, regularização ambiental das atividades econômicas e as Unidades de Conservação existentes no Cerrado. O INEMA realiza continuamente operações de fiscalizações ambientais visando combater o desmatamento ilegal, usando geotecnologias como imagens de satélites.”
Papel do CEPRAM na aprovação
O conselheiro do CEPRAM pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Severino Soares Agra Filho, avalia como apressada e pouco fundamentada a aprovação. “Questionei se a informação estava suficientemente adequada para entrarmos em uma decisão de aprovar o plano. Para uma decisão dentro de um colegiado existe um requisito procedimental, normativo, que se você não tem uma instrução adequada, o processo não pode ser votado. Então pedimos que voltasse a diligência para completar as informações, mas não teve jeito. O governo alegou que tinha pressa na aprovação e que adiar a votação seria prolongar a decisão”, relatou.
Para ele, depois de quase 30 anos sem plano de manejo e sete anos de elaboração do instrumento – desde 2016 – houve uma pressão descabida para sua aprovação no Conselho. “Nós passamos três reuniões discutindo uma norma de energia solar que todos estavam favoráveis. Um plano de manejo desse, de uma área altamente crítica e totalmente vulnerável, era para a gente fazer isso com pente fino, detalhado, e colocar restrições radicais sobre o uso”, comenta.
Decisão que reflete a diminuição do papel do CEPRAM
A Agra afirma que a decisão reflete uma diminuição no papel do Conselho na validação de políticas públicas e de conciliação de diferentes interesses na sociedade. “Hoje, cada um fala o que quer, depois vota. Se o Governo se junta com o agronegócio eles conseguem aprovar e pronto. Esse não é o papel do CEPRAM, ele deveria ser um órgão de gestão de conflitos, um espaço para criar formas de consenso, conseguindo que cada setor ceda um pouco – e não só bater o martelo”.
APA sem gestão
A APA foi criada em 1993 e o decreto de criação destaca a Cachoeira do Acaba Vida, rios cristalinos, nascentes em áreas de várzea e vegetação de buritis como atributos a serem conservados frente a ocupação antrópica desordenada. Esse tipo de unidade de conservação é de uso sustentável. Ou seja, permite propriedades privadas em seu interior e o desenvolvimento de uma série de atividades, que devem ser realizadas de acordo com um zoneamento que priorize a conservação ambiental. “A APA só existe no Brasil, é uma coisa bem singular. Quando se decreta uma APA quer dizer que vou focar a gestão ambiental priorizada. É onde você vai realizar uma gestão mais intensiva, onde vou olhar mais de perto para cada área e suas regras para garantir a conservação do meio ambiente”, explica Severino.
No entanto, sem o plano de manejo e nenhuma outra forma de gestão por parte do INEMA, a ocupação intensiva da área por monoculturas aconteceu de forma desordenada. Em quase 30 anos, de 1993 até agora, as áreas naturais deram lugar à agricultura de sequeiro e irrigada. Segundo dados apresentados no Plano de Manejo aprovado a toque de caixa, a antropização nas áreas do entorno e dentro da APA não chegam a 52%. O que chama atenção é que esse mesmo relatório indica que as áreas antropizadas somam quase 66%, ou seja, há maior percentual de antropização dentro da Unidade de Conservação do que no seu entorno. Esse número (66%) é exatamente a porcentagem do território prevista para Zona de Uso Intensivo. Sinal de que não há nenhuma intenção em mudar a forma que vem sendo ocupada, ou seja, recuperar vegetação nativa e frear o avanço da fronteira agrícola.
Zona de Uso Intensivo num Plano de Manejo é aquela constituída, em sua maior parte, por áreas naturais com alteração antrópica que concentram as atividades ligadas ao uso público de maior intensidade.
O geógrafo e professor da UFOB, Mário Alberto dos Santos, aponta que esta zona, onde não há, praticamente, restrições à ocupação e manejo, é ocupada pela agricultura de commodities. “Quando a gente avalia a predominância de um modelo de produção de commodities agrícolas no território da APA, podemos concluir que não há preocupação efetiva com a conservação e uso sustentável que uma APA demandaria. Seriam necessárias grandes alterações no modelo de produção de commodities agrícolas para podermos dizer que há um modelo sustentável de produção. E a gente tem exemplos, em alguns lugares do Brasil nós vemos produtores de commodities em larga escala – fazendas de café, fazendas de gado – com modelos e sistemas de produção e manejo que incluem práticas conservacionistas que ainda não observamos de forma ampla e significativa no Oeste da Bahia”.
Papel do agronegócio e das comunidades na APA
Para Mário, apesar da produção do agronegócio ser vista como motor de desenvolvimento da região, os benefícios para sua população e território são muito limitados. “A soja, o algodão e o milho são culturas de ciclo curto e têm um valor agregado muito reduzido, principalmente pela forma que são comercializadas. Eu diria que há uma questão ligada ao modelo de desenvolvimento. Você trabalha com grandes propriedades, usa sementes transgênicas, cultiva uma única planta e tem um grande uso de agroquímicos e tecnologia. Como resultado, você tem um potencial de empregabilidade muito baixo. Como tudo é mecanizado, o número de funcionários é muito reduzido. A concentração de renda também é outra característica desse modelo, porque é baseada em grandes propriedades. Fundamentalmente é um problema de modelo de economia política praticada na região”, observa Mário.
“A concentração de renda é a característica deste modelo baseado em grandes propriedades”
Embora tenha sido realizado pela AIBA, o plano pouco fala sobre o setor do agronegócio. Não há uma caracterização do setor, nem de suas práticas, apesar de ser o principal degradador da APA. Aspectos que permitiriam balizar melhor o regramento para o setor, como volume de água outorgado para irrigação, ou volume de agrotóxicos utilizados, por exemplo, não são apresentados.
As comunidades presentes na APA foram descritas como ocupando majoritariamente a região leste da bacia. Território onde o solo não é adequado para plantio. Elas foram apresentadas como agrupadas em minifúndios (menores do que 65 hectares) e quase sempre possuem problemas de acesso à água, saneamento básico, serviços de saúde e educação.
Detina Cruz Cardoso, agente de saúde pública que participou do processo de construção do plano representando a Associação Comunitária dos Agricultores Familiares e Moradores do Chico Preto, São Vicente e Lamarão (ACAM), diz que os moradores fizeram contribuições ao plano. Sugeriram, principalmente, um incentivo ao turismo sustentável e outras alternativas de geração de renda. Mas, as expectativas foram frustradas, segundo ela. “Ainda é um projeto bem teórico, na prática não existe um incentivo à projetos que conscientizem ou incentivem a população a cuidar dos recursos naturais ou fazer o uso adequado deles” afirma.
Algumas das comunidades da APA poderiam ter sido consideradas como comunidades tradicionais, comenta o professor Mário dos Santos. Contudo todas foram caracterizadas no Plano como de agricultores familiares. Isso gera dificuldades na definição de políticas públicas específicas para esses grupos. “A gente elimina da perspectiva do plano de manejo as políticas públicas e estruturas jurídicas que temos no Brasil sobre comunidades tradicionais. Isso pode ser um problema”, destaca Mário.
Detina observa que há uma preocupação desproporcional com os hábitos das comunidades em relação ao impacto causado pela produção de commodities. “Outra situação debatida foi que os impactos ambientais causados pela população ribeirinha são bem aquém dos causados pelos grandes produtores que fazem uso de pivôs para irrigação e desmatam grandes áreas. Então, é necessária uma fiscalização mais presente para punir e coibir esse tipo de situação, bem como orientá-los”, avalia ela.
Em 2019, a então diretora geral do INEMA, Márcia Telles, foi questionada sobre as numerosas e expressivas autorizações para supressão de vegetação de Cerrado no Oeste baiano. Ela respondeu se tratar de uma questão de legalidade que só poderia ser alterada pelo poder legislativo. “Considere que se você tiver sua reserva legal preservada e as áreas de preservação permanente, entende-se que todo o resto poderia ser retirado. Não estou entrando no mérito do bom e do ruim, estou falando do que a lei permite. Se vamos discutir o que queremos preservar de Cerrado daqui para a frente, temos que alterar a lei”, afirmou à época, contrariando vários especialistas que apontam instrumentos para que o estado diminua o desmatamento sem ferir a lei.
A resistência do governo em frear o avanço do agronegócio no Oeste da Bahia e, consequentemente, o desmatamento de Cerrado, vai na contramão dos pactos globais e nacionais sobre mudanças climáticas que prevêem a necessidade urgente de diminuir as emissões. O Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa do estado para os anos de 2017, 2018 e 2019 mostrou que justamente o desmatamento e a atividade agropecuária são os líderes de emissões no estado. O documento, divulgado no último dia 20, mostra que os dois setores juntos são responsáveis por 63% das emissões da Bahia. O Plano de Manejo sem restrições ao desmatamento mantém a tendência atual, ao invés de se comprometer com a emergência climática.
Em 2022, a Secretaria de Meio Ambiente – hoje comandada por Márcia Telles – e o INEMA tiveram a chance de construir um plano de manejo com regras que ajudassem a controlar o desmatamento em uma área de 350 mil hectares e não o fizeram. Ao optar por um zoneamento permissivo da APA da Bacia do Rio de Janeiro, fica claro que a defesa não era da legalidade e sim de um modelo de desenvolvimento baseado no agronegócio.
O outro lado
A reportagem também entrou em contato com o INEMA e a AIBA. Nenhum dos dois órgãos responderam nossos questionamentos até o fechamento desta matéria. Seguiremos acompanhando a situação.
Fonte: Jornalista Livre