Distantes quase 6 quilômetros, a Barroquinha e o Engenho Velho da Federação guardam uma antiga conexão, desconhecida até por muitos moradores de Salvador, ligada à história das religiões de matriz africana na capital da Bahia. A Igreja da Barroquinha, do século XVIII, abrigou duas irmandades negras que mantinham, no entorno do templo religioso, cultos de religiões afro-diaspóricas, o que deu origem ao candomblé da Barroquinha. Anos depois, ao fugirem da perseguição religiosa no local, os negros se dirigiram à região do Engenho Velho da Federação e, com isso, surgiu uma comunidade repleta de terreiros de candomblé.
Localizada em uma depressão no centro de três colinas e formada em sua maior parte por terras devolutas, a Barroquinha foi aos poucos se tornando um bairro negro, desde o final do século XVIII. Boa parte da região era tomada por um brejo. Conforme a tradição oral, a irmandade negra Senhor Bom Jesus dos Martírios abrigou o surgimento do candomblé da Barroquinha. Dessa forma, a região próxima à Igreja de Nossa Senhora do Rosário da Barroquinha tornou-se um território povoado por negros e negras, escravizados ou livres, que cultuavam orixás, inquices e voduns.
Mesmo próxima das instituições centrais, políticas, militares e eclesiásticas do Estado colonial, a Barroquinha se constituiu em um reduto jeje-nagô-iorubá, atraindo tanto grupos de resistência contra o governo colonial através da luta armada, quanto outros núcleos que buscavam uma política de integração social. Todos esses grupos usavam como fachada política, ou frente oficial, a irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios. De acordo com os estudos, os cultos de matriz africana na Barroquinha também foram articulados sob a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, outra entidade com sede na Igreja da Barroquinha na época, o que reforça as antigas tradições do sincretismo baiano.
Em 1807, começou no Centro de Salvador uma violenta política de repressão e perseguição, com as casas de cultos africanos tornando-se alvos muito visados pela polícia. Como a Barroquinha estava próxima ao aparato estatal, a situação era ainda pior para quem vivia nessa região. Também a partir de 1807, como reflexo do clima de tensão, tem início uma série de rebeliões e levantes de escravos, que se estende até 1835, ano da Revolta dos Malês. A partir de então, se intensifica uma espécie de “diáspora soteropolitana”, com muitos negros se refugiando em regiões mais distantes da cidade à época, como aquela que viria a se tornar o bairro do Engenho Velho da Federação e seus arredores.
É no Engenho Velho, inclusive, que fica o Terreiro da Casa Branca – o Ilê Axé Iyá Nassô Oká – considerado por muitos o mais antigo do país, com sua fundação estimada por volta de 1830. O terreiro teria, inclusive, surgido ainda em um terreno atrás da Igreja da Barroquinha, mais precisamente na Ladeira do Berquó. Muitas filhas-de-santo da Casa Branca do Engenho Velho pertenceram à irmandade católica de Nossa Senhora da Boa Morte. Em Cachoeira, onde sobrevive a irmandade, as devotas que nela se congregam são senhoras iniciadas no candomblé.
A Casa Branca foi o primeiro templo não católico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Histórico do Brasil, em 1986, após dois anos de processo. Apelidada “a Mãe de Todas as Casas”, a Casa Branca do Engenho Velho deu origem, de acordo com os estudiosos, ao Gantois e ao Axé Opô Afonjá, além de muitos outros terreiros fora da Bahia.
Considerado um monumento vivo e um legado no Brasil da grande civilização iorubana, o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho tem muitos grupos étnicos na sua fundação, conforme reconhecem integrantes do templo religioso. Entre aqueles que participaram do surgimento do terreiro, estão, além dos oyós e do povo de Ketu, principalmente membros das etnias tapá, egbá, efan e ijexá, o que explica o culto aí prestado a divindades
originárias das regiões habitada por esses povos
Além da Casa Branca, o bairro Engenho Velho da Federação e seus arredores são endereço de muitos outros templos religiosos, entre eles o Odé Mirim, Bogum, Gantois e Oxumarê, por exemplo. Lar de terreiros de diversas tradições de matrizes africanas (como iorubá, bantu, jeje, ketu, angola, entre outras), a localidade é, portanto, um relevante espaço de resistência e de convergência da população negra soteropolitana.
Exposição propõe diálogos do patrimônio
A relação entre a Barroquinha e o Engenho Velho da Federação é uma das 24 relações entre passado e presente apresentadas no segundo andar da Casa das Histórias de Salvador (CHS), em uma exposição que estabelece conexões entre lugares do Centro Histórico e outras regiões da cidade. Em uma grande maquete do Centro Histórico expandido, estão destacados esses pontos.
Nas paredes da exposição “Diálogos do Patrimônio”, tais pontos são relacionados a outros locais ou aspectos da cultura soteropolitana. A exposição “tem diversos méritos, entre eles estabelecer conexões que ajudam a entender a capital baiana e também estender o conceito de patrimônio, tão caro a cidades como Salvador.
Para isso, a exposição vai buscar diálogos de todos os tipos. Seja, por exemplo, entre uma região do Centro Histórico e um bairro da cidade, como é o caso da ligação entre a Barroquinha e o Engenho Velho da Federação tendo como viés o desenvolvimento do candomblé. Em outros casos, é explorada a conexão de um lugar com um costume – a Fonte Nova, estádio localizado nas proximidades do Dique do Tororó, é relacionada aos tradicionais “babas”, comuns em qualquer bairro periférico de Salvador.
“Decidimos ampliar a ideia de patrimônio, não só daquilo que é tombado e também de território. Fomos então além do espaço físico, com argumentos de diálogo. Desenvolvemos vários tipos de argumentos possíveis: culturais, históricos, geográficos”, explica Daniel Rebouças, doutor em História pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Ele foi um dos responsáveis pela pesquisa para a Casa das Histórias, o mais novo espaço cultural da cidade, inaugurado em janeiro deste ano.
“Essa conexão da Barroquinha com o Engenho Velho já estava colocada desde o começo da pesquisa, então era uma temática que precisávamos tratar na Casa”, acrescenta Rebouças. “Decidimos criar diálogos dos patrimônios com outros territórios da municipalidade, para que as pessoas também possam ter acesso a outros pontos relevantes para a dinâmica da cidade. Muitas vezes, a gente propôs um diálogo entre um patrimônio tombado, por exemplo, e outro com grande relevância”, reforça Ana Helena Curtis, curadora da Casa das Histórias.
“A ideia da exposição era abordar essa dimensão, de espaços que você às vezes não sabe que são conectados. A Igreja da Barroquinha abrigou grupos relacionados a terreiros, como o Casa Branca, do Engenho Velho; que é um bairro pequeno territorialmente, mas tem um número considerável de terreiros, proporcionalmente”, destaca Cleidiana Ramos, jornalista com doutorado em antropologia que atuou na consultoria para o desenvolvimento dos “Diálogos do Patrimônio”.
Fonte: Diga Bahia / Foto: Reprodução