Por Leandro Modolo
Dispositivos de automonitoramento da saúde multiplicam-se e chegam até a ocupar o lugar dos profissionais. Uma hipótese: a psicanálise pode explicar o que está por trás desse “amor híbrido” – e como ele se baseia em uma ilusão
Hoje, tem início a coluna mensal do sociólogo Leandro Modolo, doutorando em Saúde Coletiva na Unicamp e cofundador da Estratégia Latino-americana em Inteligência Artificial (ELA-IA). Seu campo de pesquisa são as tecnologias digitais na área da saúde, em meio às enormes transformações que atravessamos. Mas seus artigos tendem a olhar para o tema a partir de um ponto de vista filosófico e questionador. Neste texto de abertura, Jacques Lacan ajuda a compreender a inteligência artificial. Boa leitura! (G. L.)
Título original: Eu prefiro a IA pois ela me entende: um adendo de psicanálise sobre saúde digital
Se você assistiu ao filme Her de Spike Jonze no ano de lançamento, em 2013, provavelmente foi acometido por algum sentimento de estranheza frente à história de amor híbrido que nele é narrada. A trama gira em torno de Theodore (Joaquin Phoenix), um escritor solitário, que desenvolve uma relação afetiva com um sistema operacional (SO) baseado em inteligência artificial (IA) chamado Samantha – na voz de Scarlett Johansson. Theodore está passando por um divórcio e se sente isolado e solitário. Ele decide então adquirir o tal SO da Elements Software, projetado para se adaptar e evoluir com base nos dados e informações do usuário. Na customização da sua IA, Theodore escolhe o nome feminino Samantha e, à medida que interage com ela, desenvolvem uma relação de estreita intimidade. A história então se desenrola com Theodore enfrentando desafios de um novo e diferente relacionamento, descobrindo novas formas de interagir com o mundo, compartilhar momentos de alegria, tristeza e, também, relações eróticas. Ao fim, Theodore se apaixona por Samantha com a qual tem uma breve história de amor.
Nos primeiros 20 minutos do filme é possível identificar ao menos um mote para a glosa do amor híbrido acontecer. A publicidade do SO que interpela Theodore diz: “Nós te perguntamos uma simples questão. Quem é você?”, a partir disso a “Elements Software têm o orgulho de apresentar o primeiro sistema operacional com inteligência artificial. É uma entidade intuitiva que te ouve, te entende e te conhece.” Afinal quem nunca se referiu a alguém que ama – amigas, parentes, namorados – dizendo “Eu gosto muito dele(a), de estar com ele(a), de ficar com ele(a)… Porque ele(a) me entende!” Até para as artes praticadas na cama não raro dizemos isso: “É uma delícia, porque ele(a) me entende!”
Embora preocupado centralmente com o vínculo entre analista e analisando, o psicanalista Jaques Lacan foi quem talvez melhor compreendeu o amor que dirigimos ao “saber” do outro. Tanto foi que o francês o defendeu como o fundamento do processo de transferência. A transferência, segundo ele, acontece quando o outro aparece como dotado de um saber sobre a(s) minhas(s) verdades, o que ele chamou de sujeito suposto saber. Suposto, pois – para quem consentiu a existência do inconsciente – trata-se de uma ilusão. De uma abertura para fé no saber que o outro possui sobre mim, quando na verdade o outro não o detém, nem poderia. Mas ainda assim a aparência de detê-lo, a suposição fantasiosa, já consiste na força simbólica exigida, imprescindível para a prática clínica – afinal, ninguém nos entende melhor que as(os) nossas analistas.
A psicanálise também sabe, todavia, que o processo de transferência não é algo exclusivo do divã. Ela acontece, por suposto, em outras formas de clínica e, também, nas relações “selvagens” do cotidiano. É isso que vem ocorrendo na interação, nos vínculos construídos entre usuárias(o) e os serviços móveis de saúde com IA embarcados, os chamados mSaúde. Atualmente a variedade de opções desses serviços digitais de saúde é enorme e em continua expansão. As potencialidades e os riscos também não são poucos. E, para o bem ou para mal, eles já estão presentes na vida de milhões, desde serviços de saúde mental a serviços “especialistas” em saúde da mulher.
Recentemente em seu canal de YouTube, o psicanalista Christian Dunker comentou das possibilidades da IA funcionar como ferramenta de apoio, de auxilio à clínica psicanalítica, disse ele: “se tivéssemos uma espécie de gravador contínuo que vai produzindo, por exemplo, a captação de acordes e significantes que se repetem, a captação de elementos prosódicos (…) a análise de usos de certas funções que a gente sabe serem, assim, cruciais para o posicionamento do sujeito (…). Se a gente tiver e dispuser de um bom catálogo, um banco estruturado de dados sobre fantasias, sobre narrativas históricas, sobre, por exemplo, o impacto e o reconhecimento de situações traumáticas, por agregação de traços”… A “tática de domínio da interpretação, das intervenções etc.” serão alteradas.
Com o avanço acelerado do mSaúde esta cena está na ordem do dia. O mSaúde é pautado no automonitoramento (selftracking) dos usuárias(o), alguns diriam que para o “autoconhecimento”, outros para o auxilio na tomada de decisão médica. O certo é que do nascimento a morte, nossa linha da vida está sendo memorizada em banco de dados e processadas por IA com as mais distintas finalidades clínico-sanitárias. E se ainda ele pode demorar para participar diretamente do divã, o mesmo não podemos dizer da intrusão pelas suas frestas, por outras práticas de cuidado em saúde. Tão logo, sabemos que hoje cada vez mais a consulta a um “gineco” partilha o encontro com um intruso cibernético, um mesntruapp. E o mesmo já pode ser sentido nas interações psiquiatra-paciente, endocrino-paciente, cardio-paciente, nutricionista-paciente etc.
Não são apenas os apologetas da IA que defendem que ela “pode conhecê-lo melhor do que você mesmo”. Os serviços especializados em mSaude também querem ocupar esse tal lugar simbólico, o lugar de Samantha na interação com as máquinas cibernéticas. Para Ross O’Brien, CEO do recém aprovado serviço digital de saúde mental do NHS, por exemplo, o “Wysa te conhece intimamente.” O Flo, o mais popular menstruapp do mundo ocidental, por sua vez, diz que foi feito para que você “Entenda seu ciclo e seja sua melhor versão”. Discursos como esses são vistos por todos lados da saúde digital. E os efeitos transferenciais já são mais e mais fatos observáveis.
A partir de pesquisas de campo com mulheres usuárias de mSaúde, a socióloga Deborah Lupton identificou que expressões como “ser conhecedora”, “estar consciente”, “ser responsável” e “estar no controle” foram observadas em praticamente todos relatos das usuárias-pacientes para se referirem aos motivos pelos quais elas fazem usos dessas tecnologias. O mSaúde, diz ela, está pautado na “noção de trazer processos corporais, anteriormente latentes, à vista e à consciência”.
Na saúde digital o sujeito suposto saber é formado pelo arranjo de Big Data e suas IAs embarcadas no artefato técnico que a(o) usuária-paciente tem na mão. Com um saber matemático total como quer e propagandeia as igrejas do Vale do Silício e seus asseclas? Não. Inédito na história da humanidade e excepcional, pois supraindividual na capacidade de memorizar, processar e analisar dados clínicos-sanitarios? Sim! O antropólogo Bruno Latour consagrou o conceito de actante para ser referir a qualquer coisa que seja concebida para ser a fonte de uma ação, qualquer coisa que modifica outra em um julgamento ou avaliação. Talvez não seja errado, portanto, chamar o mSaúde de actante suposto saber.
Isso significa que já adentramos no cenário futurístico de Her? Creio que não. Significa apenas que já há sinas de que os serviços de mSaúde com suas IA podem nos entender, ou melhor, serem assim percebidos e reconhecidos pelas(o) usuárias(o), o que já os tornam simbolicamente poderosos o suficiente para serem mais “amados” que muitos profissionais de saúde.1
1 Este texto é uma versão enxuta de um ensaio em moldes acadêmicos, a ser publicado ainda este ano.
Com informações do Site Outra Saúde / Fotograma do filme Ela (2013), do diretor Spike Jonze