Conselhos profissionais, lideranças do movimento sanitarista e até ex-ministro da Saúde se posicionam publicamente contra a retirada de investimentos do SUS. Temporão é taxativo: reduzir o orçamento é “traição ao projeto político que elegemos”
por Guilherme Arruda – Sexta, 14 de junho de 2024
Desde a admissão pública do ministro da Fazenda Fernando Haddad, na última quarta-feira (12/6), de que sua pasta debate caminhos para reduzir o piso constitucional de investimentos na Saúde, o coro de vozes contrárias à medida só cresceu. No campo da Saúde, os pronunciamentos vieram das mais variadas direções.
Demonstraram sua insatisfação com os rumos da discussão sobre a flexibilização do patamar mínimo de investimentos – 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) anual, desde a última alteração na Constituição Federal – entidades profissionais como o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), organizações históricas do movimento sanitarista como o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e figuras com importantes passagens pela gestão pública, a exemplo do ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão e da diretora do Cebes Ana Maria Costa, pioneira das políticas de atenção à saúde da mulher no Brasil.
As manifestações caminham em sentidos similares. Lembram que o Piso foi uma conquista da luta do povo brasileiro – e que o Sistema Único de Saúde (SUS) só pôde verdadeiramente se consolidar e cumprir com seu ousado projeto quando os recursos mínimos para tal passaram a ser garantidos. Além disso, alertam que os avanços de saúde pública das últimas décadas correm o risco de serem asfixiados pelo desfinanciamento que se seguiria com a mudança na regra fiscal.
Particularmente cortantes foram as palavras de Temporão e Costa para desnudar o verdadeiro significado de uma eventual implementação da proposta ensaiada pela equipe econômica do governo: “reduzir o piso constitucional da Saúde é trair o projeto político que elegemos”, disparam os sanitaristas veteranos.
Piso “tirou o SUS do abismo”
O editorial publicado no site do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) aponta que as discussões sobre a quebra do Piso de investimentos precisam levar em consideração o “impacto devastador” que a medida teria para a população. A entidade, que disciplina as atividades da mais numerosa categoria de trabalhadores da saúde do país, opina que o Piso “tirou o SUS do abismo, da incerteza constante e da dependência de recursos extraordinários”. Por isso, o Cofen alerta que “reduzir o piso constitucional coloca em risco o SUS” – e, consequentemente, a saúde dos brasileiros que dele dependem.
Por sua vez, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) sublinha que o Piso da Saúde é um “instrumento civilizatório que busca colocar o bem-estar da população no centro do projeto de país que defendemos”. Além disso, para a entidade fundada por muitos dos sanitaristas que deram força à fundação do SUS, a mudança no patamar mínimo de verbas estaria em desacordo com os compromissos firmados pelo próprio presidente Lula, que durante a campanha eleitoral afirmou muitas vezes que, em seu governo, “saúde é investimento”.
“O presidente assumiu compromisso com a Frente pela Vida de garantir recursos para atender às urgentes e relevantes demandas da população por atenção à saúde, durante conferência livre, em agosto de 2022, em São Paulo”, lembrou Carlos Fidelis, presidente do Cebes. Crítico da proposta de limitar a correção dos investimentos a 2,5% ao ano, ele diz que “os inimigos do Brasil e da possibilidade de construir um Brasil para todos montaram uma armadilha que associa teto de gastos para os programas de interesse da sociedade com a drenagem de recursos públicos via mecanismo da dívida”.
A Frente pela Vida, que coordena a intervenção de diversas entidades históricas do movimento sanitarista, enviou uma carta a Haddad solicitando esclarecimentos sobre as intenções de seu ministério em relação ao Piso. Como havia noticiado este boletim, na terça-feira (11/6), a FpV teve uma reunião com subsecretários da Fazenda – onde foi assegurada a manutenção da atual regra, o contrário do que o ministro diria em público horas depois.
“Traição ao projeto político que elegemos”
Retomando o argumento histórico, artigo de opinião de José Gomes Temporão e Ana Maria Costa lembra que “o SUS idealizado pela Assembleia Constituinte e plasmado na Constituição Federal de 1988 só levantou voo, de fato, com a superação dos tempos dramáticos em que foi golpeado no seu orçamento”. Por isso, dizem os sanitaristas, “reduzir o piso constitucional da Saúde, asfixiando sua capacidade de investimento e de ampliação do acesso é um ataque direto aos direitos conquistados na Constituição Federal”.
Citando o cálculo do presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde (Abres), Francisco Funcia, eles frisam que as perdas para o SUS seriam de R$24 bilhões com o teto de 2,5% de correção estudado pela Fazenda – e podem até chegar a R$30 bilhões, caso as receitas extraordinárias sejam retiradas do cálculo. Funcia aprofundou o cálculo em entrevista a Outra Saúde.
Com a míngua de recursos, aponta a dupla, fica em jogo “o futuro que buscamos construir para o país, menos desigual, com condições melhores de vida e de saúde”. Os únicos beneficiados pelo direcionamento de recursos que deveriam ser da Saúde a outras áreas – a exemplo da dívida pública, como indicou Fidelis – seriam os “interesses do mercado e do rentismo, que cobram do país um quinhão salgado e expõem nossa população à precariedade e à pobreza”.
Trazendo essa série de alertas graves, os sanitaristas cobram que o Governo Federal não implemente uma proposta tão catastrófica. “Confiamos no compromisso que elegeu Lula que explicitou a defesa da saúde como investimento e na centralidade de seu Programa de atender às necessidades do povo brasileiro. E o povo quer saúde e um SUS forte e de qualidade para todos e todas”, concluem Temporão e Costa.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Revista Radis