Terminada a pandemia, sistemas sanitários do mundo permanecem frágeis, subfinanciados e desiguais. Há dois caminhos: aprofundar a mercantilização ou dar alguns passos rumo ao Comum. Cebes debate papéis que Brasil pode jogar
Na presidência rotativa do G-20, o Brasil prepara-se para sediar, ao longo de 2024, 76 reuniões da cúpula das principais economias do mundo. Em um mundo que vive múltiplas crises, as temáticas não se restringem só à economia: os governantes tratarão de temas diversos. A saúde está incluída no rol de debates. Mas com qual sentido.
Ao participar, no início do mês, do Fórum Econômico Mundial, em Davos, a ministra Nísia Trindade deixou seu recado, a uma plateia constituída de executivos das maiores transnacionais do planeta. “Normalmente, vemos a saúde naqueles aspectos da questão climática, ambiental e social. Mas, é preciso lembrar que ela tem um papel muito forte na transformação para um novo modelo”, disse ela.
Nesta segunda-feira, 22, o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), realizou o debate “O Brasil e a Agenda Global de Saúde”, a fim de antecipar expectativas a respeito do papel do país na promoção de discussões a este respeito, dentro da programação do G-20.
Convidado especial do evento, Paulo Buss, sanitarista e ex-presidente da Fiocruz, abriu sua fala com um alerta. “A covid-19 apenas aprofundou uma crise que já estava implantada, multidimensional, que inclui o fator ético e ressalta a incompetência das lideranças globais para enfrentar desafios de tamanha envergadura”, disse ele. E foi além: “Temos um capital apátrida e sem compromisso com o progresso, um capital dominado por uma direita que repete todas as patologias do neonazismo e neofascismo”.
Ao longo do diálogo, os debatedores evidenciaram uma perspectiva que torna a oportunidade brasileira de presidir o G-20 única: trata-se de um mandato exercido na sequência da Índia e que será sucedido pela África do Sul. Já em 2026, será a vez dos EUA, que podem estar de novo sob Trump. Ou seja, uma série de presidências de membros do BRICS será sucedida por um possível antagonista de novos arranjos de poder global.
O próprio Buss detalhou os riscos de manter a mesma toada. “Os países do G7 estão se afastando de políticas de desenvolvimento. Foram US$ 2,24 trilhões de gastos militares no planeta em 2022, segundo Instituto Internacional para Pesquisas de Paz de Estocolmo. E temos um mundo que mantém as condições para uma nova pandemia. Enquanto isso, a ONU estima que investimentos de US$ 500 bilhões seriam suficientes para segurar a progressão do colapso climático. Essa é a insanidade das lideranças globais de hoje”, contextualiza Buss.
Para ele, é hora de avançar na remodelação das instituições globais também no âmbito da saúde. E com a nova concepção econômica do papel da saúde, o Brasil tem uma chance especial. Inclusive porque a crise climática se acentua — e, como ressaltou a ministra Nísia em Davos, suas consequências têm impactos diretos na saúde pública.
“A governança global de saúde está sendo reformada por duas vias: no Órgão Negociador Intergovernamental (INB na sigla em inglês), onde o Brasil tem a vice-presidência das Américas, com o embaixador Tovar da Silva Nunes. O segundo é a reforma do Regulamento Sanitário Internacional, onde há um espaço de luta muito grande, pois se discute acesso a inovações (vacinas, objetivamente) e a resistência dos países desenvolvidos é muito grande. No máximo aceitam ceder patentes, o que na prática não quer dizer nada, pois não permite alcançar soberania sanitária. O Brasil se coloca bem, fazendo escolhas difíceis, basta ver as resistências a todas as afirmações do Lula, a exemplo da guerra de Israel. O enfrentamento interno, além do externo, veremos traduzidos na presidência do G20”, prosseguiu Buss.
Amparada pela própria OMS, Nísia tem destacado a necessidade de os países ditos em desenvolvimento investirem tanto na expansão de seus sistemas de saúde como na promoção da pesquisa e produção própria na área. Após a pandemia de coronavírus, tal visão passou a predominar em fóruns internacionais. Mas, se não se mexerem, as economias subalternas seguirão vulneráveis a novas catástrofes sanitárias.
“Tedros Adhanom (diretor geral da OMS) resiste bravamente, mas quem tem a prerrogativa de mandar nas relações internacionais em saúde são os países centrais, sua Big Pharma e o capitalismo filantrópico, como a fundação Bill e Melinda Gates. A OMS é basicamente financiada por três ou quatro atores. Eles têm o domínio de ditar políticas globais de saúde. Ao olhar isso, a gente conclui que não tem solução dentro deste arranjo”, sentencia Paulo Buss.
Como mostrou a pandemia, a capacidade de responder a crises graves e produzir curas definiu quem saiu mais ou menos ileso aos seus impactos. Neste exato momento, a importação das caras vacinas contra a dengue pelo Brasil, enquanto ainda não consegue produzir seu próprio imunizante, também incide na capacidade do SUS de atendimento a uma necessidade da população. Num mundo de instabilidades locais e globais, o país precisará se colocar à frente de um debate que estabeleça novos paradigmas em promoção e economia da saúde.
Fonte: Outra Saúde