Sede por modernizar: Obras de requalificação em Salvador trazem prejuízo à identidade e à história

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A toque de caixa, poderes públicos focam em obras revitalizações que têm pouco compromisso com a história e funcionalidade dos espaços para a cidade

Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 2 de novembro de 2023

A palavra é bonita e parece estar na moda. Revitalização. Qual o gestor público ou político que não enche a boca para utilizá-la? Afinal, ela carrega a promessa de trazer vida e novidade aos espaços urbanos. Em Salvador, pegou. Não é mais reforma. Tudo é revitalização. No máximo, requalificação. O termo em alta pode até ter explicações no urbanismo e na arquitetura, mas aqui na prática ele não é tão ingênuo assim, por trás de seu uso está uma tentativa de disfarçar o desprezo pela história da cidade e a sede por modernização.

O que move essas revitalizações é a política do entregar obras – milionárias, diga-se de passagem. Quanto mais eventos de entrega, descobrindo placas e cortando faixas de inauguração, melhor. Não entenda mal, não é que reforma seja ruim. É preciso cuidar do patrimônio de Salvador. Mas quando ela é feita a toque de caixa, comandada por instituições e gestores que pouco conhecem ou respeitam a história, a vida e a dinâmica da cidade, o resultado é um prejuízo à identidade soteropolitana, à essência do espaço e à funcionalidade para a população.

O Elevador Lacerda, maior símbolo da cidade, é um dos equipamentos que está na iminência de passar por isso. Ele é alvo de um chamado “projeto de requalificação” da Fundação Mário Leal Ferreira (FMLF). O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) precisou até vetar a instalação de uma vista panorâmica. Por enquanto, pouquíssimo se sabe sobre o projeto. Mas uma das medidas será o fechamentos dos comércios que funcionam no espaço, como a Sorveteria Cubana, instalada ali há mais de 90 anos. Outras mudanças devem acontecer no elevador para dar celeridade à circulação de pessoas. É como se o principal cartão postal da cidade fosse apenas um simplório meio de transporte.

Enquanto o Elevador Lacerda segue nesta iminência faremos um roteiro em outros espaços da cidade que caíram nas mãos desses projetos de requalificação da gestão municipal ou estadual, e viram sua história e funcionalidade perderem espaço.

Um crime urbanístico 

Do Elevador Lacerda, partiremos para ali perto. Aquidabã, região que liga Barroquinha e Sete Portas. O local já foi mais movimentado, é verdade. Seu terminal de ônibus, inaugurado em 1979 no governo de Roberto Santos, chegou a receber diariamente 10 mil passageiros e tinha uma estrutura arquitetônica arrojada, em forma de pétalas de metal. Hoje a realidade é outra. O espaço abriga moradores de rua, usuários de drogas e não é visto como um local seguro. Mas o crime ali está mais para urbanístico. Um desses projetos que prometem revitalizar entregou tudo, menos vida. Os quiosques escuros, em formato de caixotes, sem nenhum comprometimento estético já eram os primeiros sinais desde a entrega em 2022. Pouco depois, as bancas fechadas e a evasão dos comerciantes se somavam aos indícios. O projeto da FMLF não incluía sequer um banheiro, a aposta mesmo era em uma quadra poliesportiva e um parque infantil. Obviamente não deu certo, o local segue abandonado após a obra de R$ 4 milhões.

Do Aquidabã seguimos para um palacete. O Palacete das Artes, que precisou mudar de nome. “Precisou”, segundo o entendimento de um projeto – desta vez, de readequação – da Secretaria de Cultura da Bahia (Secult). Na Metropole, o secretário Bruno Monteiro explicou que a intenção era mudar o conceito, trazer a juventude e a periferia para o museu, com um acervo de arte contemporânea, grafite e pista de skate – como se esse público só consumisse esse tipo de arte. A notícia, claro, pegou a todos de surpresa, porque o museu era um dos mais frequentados e, enquanto outros estavam abandonados, ele seguia bem cuidado. As mudanças aconteceram em quatro meses mesmo com questionamentos da população e o estimado Palacete passou a se chamar Museu de Arte Contemporânea da Bahia. A inauguração, assim como em todos os outros pontos deste roteiro, teve um evento pomposo com 60h de programação. Mas parou por aí.

Foto: metropress/Filipe Luiz

Missão entrega de obras

Os próximos destinos – Mercado do Peixe, Mercado de Cajazeiras e Mercado de Itapuã – tiveram a infelicidade de passar por projetos de requalificação com o mesmo enredo final: sem ligação com a identidade local, sem cuidado estético, apenas com prejuízo para os comerciantes e a população. O espaço do Rio Vermelho mudou até de nome, afinal o projeto era uma espécie de gourmetização, Mercado do Peixe não combinava. O então complexo de botecos mais famoso da noite soteropolitana virou em 2016 uma mini praça de alimentação ao ar livre, com grandes lanchonetes e restaurantes, enquanto os pequenos empreendedores de antes ficaram sem espaço. Parte deles foi realocada justamente para os mercados de Cajazeiras e Itapuã, que também passaram anos em obras de requalificação da FMLF para, depois de milhões investidos, entregar um resultado que nada tem a ver com as necessidades e identidade do soteropolitano.

Penúltima parada: Concha Acústica, mais um espaço que marca a identidade de Salvador e momentos especiais na vida de quase todo soteropolitano. Ela ficou fechada por três anos para uma reforma concluída em 2016. A promessa era de mais conforto e tecnologia. Tão cobrada pelo público, a cobertura da arquibancada não veio, mas uma mudança muito importante desde então vem sendo alvo de críticas de produtores e usuários: o preço da pauta (aluguel pago pelo artista) e consequentemente o valor do ingresso. O assunto tomou ainda mais corpo após as consequências econômicas da pandemia para o setor. A própria direção do complexo Castro Alves reconhece que os preços são caros, mas defende que isso não tem necessariamente relação com o valor da pauta. Mesmo assim, a Secult anunciou neste semestre mudanças na tabela de preço para tentar baratear o ingresso.

Prejuízo também foi o resultado da requalificação no nosso último destino: Praça Nelson Mandela, aquela que dá as boas-vindas para quem usa o Inclinado Liberdade-Calçada. O projeto era muito semelhante ao do Terminal do Aquidabã: parque infantil, quiosques que mais parecem caixotes soltos e pouca preocupação estética. Como se os dois locais, completamente diferentes, tivessem as mesmas dinâmicas e necessidades. Depois de três anos, as obras foram entregues pelo prefeito em uma espécie de agenda de entregas que incluía outras praças. Mas o resultado do equívoco já estava ali: comerciantes insatisfeitos e a perda de uma oportunidade de valorizar o patrimônio soteropolitano.

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