O pedreiro Emanuel Sales, de 42 anos, só conseguiu o auxílio-doença ao qual tinha direito por causa de um defensor público. Se não fosse por isso, é bem provável que ainda estivesse esperando.
Em 2020, ele desmaiou durante o expediente e por pouco não morreu do coração na frente de seus colegas em uma siderúrgica em São Gonçalo do Amarante, cidade a 60 km de Fortaleza.
Foi demitido assim que voltou ao trabalho. Com uma estenose aórtica (estreitamento de uma válvula do coração), procurou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para receber auxílio-doença, mas o órgão negou o benefício. “Paguei o INSS por 12 anos, mas mesmo assim negaram.”
Emanuel convivia então com uma angústia: precisava ter um sustento, mas como voltar ao trabalho com uma doença que, segundo os médicos, é bastante grave e pode levá-lo à morte?
“Nenhuma empresa me aceita, não passo no exame médico. Só fico vagando pela casa, sem fazer esforço por causa do coração. Minha mulher, que é gari, é quem compra tudo, paga as contas, cria três filhos”, conta Emanuel, falando por telefone de Paracuru, cidade de 34 mil habitantes a 84 km da capital do Ceará e onde não há defensor público.
“Soube que havia um mutirão da Defensoria Pública na região e fui atrás. Se não fosse isso, eu teria desistido.”
Nove meses depois do defensor público federal entrar com uma ação contra o INSS, o órgão finalmente liberou o auxílio-doença do pedreiro, reconhecendo que ele tinha direito ao benefício. E mais: “Vou receber pelos três anos em que fiquei parado.”
Histórias como a de Emanuel não são incomuns no Brasil.
A presença de um defensor público em um território é muitas vezes a única forma que a população mais vulnerável tem de cobrar na Justiça o reconhecimento de direitos essenciais.
“Quem procura a defensoria são pessoas muito humildes, que não têm como pagar advogados. E esse público significa 85% da população”, diz Rivana Ricarte, presidenta da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), que reúne as entidades estaduais e do Distrito Federal (DF).
O público-alvo das defensorias é a população com renda de até três salários mínimos.
Considerando esse valor, demografia e distribuição da Justiça, 154 milhões de brasileiros poderiam ser atendidos pelo serviço, segundo a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública, divulgada neste ano.
O problema é que há uma escassez destes profissionais, e isso impede que a “grande demanda por direitos” seja suprida, segundo quem atua na área.
Enquanto o Brasil tem cerca de 1,3 milhão de advogados disponíveis para quem tem dinheiro para pagar, segundo dados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o número de defendores é de pouco mais de 7 mil.
Esse número já foi bem menor: entre 2003 e 2022, cresceu 125%.
Mesmo assim, de acordo com a pesquisa da Defensoria Pública, existe atualmente um defensor para cada 29 mil pessoas na faixa de renda que deveria ser atendida por estes profissionais.
O ideal seria um para cada 15 mil habitantes, de acordo com o Ministério da Justiça. Ou seja, o número de profissionais precisaria mais do que dobrar de novo para atender plenamente a demanda no país.
“Embora as defensorias tenham crescido nos últimos anos, existe uma necessidade muito evidente de expansão, tanto orçamentária quanto de pessoal”, diz Ricarte.
Em comparação com outras carreiras do Judiciário, há 79% mais promotores e procuradores no Ministério Público do que defensores e 149% mais juízes, desembargadores e ministros em comparação com o quadro das defensorias.
“Nosso cálculo é de que precisaria equiparar o número de defensores ao número de promotores e juízes”, afirma Ricarte.
Acesso à Justiça
Há dois tipos de defensorias no Brasil. As estaduais atuam principalmente na primeira e segunda instâncias. A Defensoria Pública da União (DPU) trabalha em casos que chegam às cortes superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), ou em demandas que envolvam órgãos federais, como o INSS e o Ibama.
No total, só há defensores em 46% das 2.307 comarcas judiciais do país – territórios onde há pelo menos um juiz de primeiro grau atuando.
Já a DPU tem 680 defensores em todo o país, e eles estão em apenas 26% das 199 seções da Justiça Federal.
Em números, isso significa que 48,6 milhões de brasileiros, boa parte vivendo no interior ou em áreas remotas, não têm um defensor atuando em seu território, segundo a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública.
Quando há um processo criminal e não existe um defensor na comarca, o juiz pode indicar um advogado particular para defender o acusado, por exemplo, e esse profissional será remunerado pelo Estado.
Mas o magistrado não pode fazer isso quando é o cidadão que pretende entrar na Justiça por uma demanda própria ou reivindicando algum direito, como pedidos de auxílios previdenciários ou de remédios ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Quem não tem como pagar um advogado depende da defensoria pública.
“Existe uma enorme demanda reprimida que não chega ao Judiciário, porque as pessoas simplesmente não têm meios de acessar a Justiça. É como se elas não tivessem o direito de ter direitos”, diz Ricarte.
A pesquisadora Josélia Reis, do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que outro problema é a falta de informação sobre como “abrir as portas da Justiça.”
“Boa parte da população vulnerável sequer tem conhecimento de seus direitos, às vezes por causa da baixa escolaridade, ou porque não tem informação de que existe a defensoria e como ela funciona”, diz Reis, que estudou em seu doutorado os caminhos de acesso à Justiça Federal.
Segundo ela, grande parte da demanda nessa esfera está associada a pensões previdenciárias, aposentadorias, Benefício de Prestação Continuada (BCP), Bolsa Família, entre outros.
“Muitas vezes, as pessoas têm suas demandas e direitos negados ou violados pela burocracia administrativa e só conseguem quando há uma provocação do Judiciário por meio da defensoria”, diz.
Excluídos de direitos
Nos últimos anos, as defensorias estão apostando em mutirões de atendimento itinerante para chegar à população mais pobre, como o programa DPU para Todos, que leva defensores federais a cidades do interior e regiões de difícil acesso.
Uma dessas equipes é liderada por Silvio Rogério Grotto de Oliveira, defensor-chefe da DPU do Mato Grosso do Sul.
Todos os meses, ele e outros servidores viajam de barco até comunidades de pescadores às margens do rio Paraguai, no Pantanal.
“É uma região isolada e onde não existe transporte público. Para chegar até Corumbá, a cidade referência mais próxima, os ribeirinhos precisam pagar até R$ 1.200 pelo transporte”, conta Oliveira, que desde novembro de 2022 já realizou mil atendimentos na região.
Em maio, um dos mutirões, que também contou com o aparato da Justiça Federal, realizou 379 atendimentos que resultaram em R$ 1 milhão apenas em benefícios atrasados aos quais a população local tinha direito, como pensões, auxílios e aposentadorias.
“Foi chocante descobrir que havia ribeirinhos que sequer tinham documentos. Eles foram excluídos de seus direitos e eram invisíveis para o Estado”, diz Oliveira.
“Havia idosos de 70 anos que já poderiam estar aposentados, mas não sabiam disso. Outros moradores tinham direito ao Bolsa Família há 20 anos, mas nunca foram incluídos no programa.”
A DPU do Mato Grosso do Sul tem 11 defensores, nove em Campo Grande e dois em Dourados, no interior.
Mas a Justiça Federal tem outras cinco seções no Estado que não têm defensores públicos – uma delas em Ponta Porã, cidade na fronteira com o Paraguai e conhecido ponto de atuação do narcotráfico.
Segundo Oliveira, o ideal seria pelo menos dobrar a quantidade de servidores no Estado para atender a demanda, mas “limitações orçamentárias impedem que isso aconteça”.
Cada defensor ganha por volta de R$ 26 mil, e os concursos para a DPU são organizados pela sede da instituição, em Brasília.
Orçamento
Ao contrário do Ministério Público e do Judiciário, que existem há muitas décadas, as defensorias públicas foram criadas pela Constituição em 1988. Apenas nos anos 2000 elas ganharam autonomia orçamentária e administrativa – antes, algumas eram subordinadas ao Judiciário.
As defensorias relacionam a escassez de profissionais ao orçamento pequeno diante da demanda, valores que ficam bem abaixo do que recebe o Ministério Público, por exemplo. No caso das estaduais, a verba fica em torno de 1,5% do orçamento anual dos Estados.
“Para crescer, nossa luta é por incremento orçamentário, porque não é só concurso público para defensor, é preciso mais servidores, sede administrativa e estrutura para funcionar”, diz Rivana Ricarte, da Anadep.
Já a dinheiro utilizado pela DPU é aprovado pelo Congresso todos os anos – cerca de R$ 700 milhões. O valor é sete vezes menor do que o orçamento do Ministério Público Federal (MPF), que é de R$ 5,3 bilhões por ano.
“Há, portanto, uma relação muito desproporcional entre o Estado de acusação (Ministério Público) e o Estado de defesa (Defensoria) em nosso país”, diz a DPU, em nota à reportagem.
Atualmente a Defensoria Pública da União é comandada por um diretor interino, o vice-defensor-geral Fernando Mauro Junior.
Em março deste ano, ele enviou um documento à equipe econômica do governo Lula pedindo que o financiamento da DPU passe por uma reflexão “sobre soluções que atendam a situação especial e alarmante da assistência jurídica gratuita e integral no âmbito federal”.
No documento, Mauro Junior afirma que a verba da entidade deveria ser reajustada em 92,4% e que a DPU precisa de 1.483 novos defensores para suprir a demanda por assistência jurídica da população de baixa renda.
Nos últimos meses, a DPU esteve envolvida em uma polêmica com congressistas.
Em maio, Lula indicou Igor Albuquerque Roque para o cargo de novo defensor-geral, mas, em outubro, o nome dele foi rejeitado pelo Senado por conta de uma polêmica envolvendo um seminário sobre aborto legal. Não há previsão para que um novo nome seja escolhido.
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Fonte: BBC