Por José Eduardo Bernardes
Escritora lançou livro de contos ‘Goela Seca’, que narra a infância, a juventude e a vida adulta de uma mulher negra.
O mês de março, em que se comemora o Dia Internacional de Luta das Mulheres, expõe chagas importantes. Uma delas é a disparidade entre mulheres negras e outros grupos demográficos em diversos aspectos. Dados do Dieese de 2023 mostram que famílias chefiadas por mulheres negras tinham à época rendimento mensal de R$ 2.362, enquanto famílias compostas por um casal não negro tinha rendimentos médios de R$ 6.587, quase 3 vezes mais. Mulheres negras também compõem o grupo mais subutilizado no mercado de trabalho: 40% delas gostariam de trabalhar mais; entre homens brancos esse número é de 18%.
Por conta do racismo estrutural, crianças com mães não brancas têm menos chances de atingir a estatura adequada. Mulheres negras compõem 60% das vítimas da mortalidade materna no Brasil.
Estes são alguns dos elementos abordados por Jô Freitas em seu livro de contos, Goela Seca, lançado no final de 2023. A escritora é a convidada do BdF Entrevista desta semana para falar sobre sua história e sua obra literária.
“A gente não está falando de um romance, mas de um livro de contos em que eu queria colocar e evidenciar a presença dessa mulher negra. Eu, sendo uma mulher negra da periferia, sei o quanto é difícil estar nesses grandes centros, nessa cena literária tão dominante cis, branco, burguesa. Então, em tudo o que eu escrevo, eu quero trazer esse lugar que me pertence”, conta Jô Freitas.
Freitas chegou até a literatura na sua juventude, atravessada pelos saraus realizados nas periferias de São Paulo e os slams, as batalhas de poesia que tomaram a cidade no começo da última década.
“Eu descobri no saraus, em 2009, pessoas iguais a mim”, explica Freitas. “Ser criada neste cenário me fez ampliar um pouco o entendimento sobre sociedade e eu sou totalmente cria de políticas públicas. Minha formação e essas políticas públicas – onde eu fui descobrindo os meus direitos e as possibilidades de estar – foram nos saraus, quando uma pessoa falava sobre a construção de uma política pública, ou a luta por uma política pública, por um programa, por um edital”, completa a escritora.
Na conversa, Jô Freitas fala também sobre o caso envolvendo o escritor Jeferson Tenório, que teve sua obra Avesso da Pele censurada em escolas do Rio Grande do Sul – estado que voltou atrás na decisão após repercussão –, Paraná e Mato Grosso do Sul.
“Isso descredibiliza não só o autor, mas também todas as pessoas que deram esse crivo de que fazia sentido a obra estar na rede pública escolar, invalida tudo isso. O livro do Jefferson Tenório, de fato, está dizendo sobre uma realidade. Que formação de opinião, de pessoas, estamos estimulando? A escola é um dos primeiros passos, uma das primeiras possibilidades que a gente tem de se formar enquanto indivíduo”, afirma Freitas.
“As pessoas não gostam quando a gente fala que é uma questão racial, que é racismo, e que esse racismo muitas vezes é muito velado, e nesses momentos, ficam evidentes. Mas muitas pessoas ainda acham que não é assim. Então, acho que tem muita coisa para mudar”, completa.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Jô, você lançou no final do ano passado o livro de contos Goela Seca. São 23 textos que acompanham todas as fases da vida de uma mulher negra – chamada Joana, inclusive: a infância, a juventude e a vida adulta. Como nasceu a ideia do livro?
Jô Freitas: Eu acho que o Goela Seca se refere a tantas mulheres… não é uma história exclusiva. Se a gente for pegar Brasil, Nordeste e mundo, a gente sabe que, enquanto narrativa de mulheres, ela é muito apagada. Então, quando a gente coloca a questão racial, de mulheres negras, há um outro fator um pouco pior, mais agravante, de apagamento.
Como protagonista, é interessante porque ela percorre todos os contos. Nos 23 contos Joana aparece, porque eu acho que é difícil a gente atravessar uma narrativa sem ter a história dessas mulheres negras e a Joana tem esse momento da infância na primeira parte do livro, a segunda parte mais jovem, adolescente e essa fase adulta. E em todo esse processo, o que lhe acompanha é a violência, por uma questão de gênero e por uma questão racial.
A gente não está falando de um romance, mas de um livro de contos em que eu queria colocar e evidenciar a presença dessa mulher negra. Eu, sendo uma mulher negra da periferia, sei o quanto é difícil estar nesses grandes centros, nessa cena literária tão dominante cis, branco, burguesa. Então, em tudo o que eu escrevo, eu quero trazer esse lugar que me pertence.
Eu não trago as vozes de outras pessoas, trago as vozes nas quais eu fui construída, dessas ancestrais que fazem parte da minha trajetória, dessas mulheres também que possibilitaram a minha existência. Então, Joana ter uma infância no Goela Seca atravessada com tantos outros protagonistas é a maneira de tornar viva essas mulheres, não só porque eu faço parte desse lugar de narrativa, mas porque são as mulheres que foram apagadas.
Elas fizeram arte, elas fizeram literatura, elas foram poetas e tampouco conseguiriam colocar o nome enquanto autoria. E isso, para mim, pesa bastante. Porque eu sinto esse apagamento, eu sinto o quanto a minha voz, a minha escrita, não chegam em lugares em que deveria chegar, assim como tantas outras parceiras.
Você diz que ele não é necessariamente autobiográfico, mas que tem a ver com a tua ancestralidade. Vi que você comentou que também tem muito a ver com a luta dos teus pais, da tua vida enquanto criança na periferia. Como a infância influenciou a tua vida, em quem você é hoje e desaguou neste livro de contos?
Olha, às vezes, para falar sobre esse processo da minha infância, adolescência e fase adulta, eu gostaria de ter coisas muito belas para contar, de que eu construí a minha força, porque é da minha natureza. Mas assim como tantas pessoas, [esse período] faz parte de um processo de violência.
Eu sou nordestina, sou baiana de Paulo Afonso, e meus pais vieram para São Paulo com aquele mesmo sonho de mudar de vida, como tantos outros e se instauraram, conseguiram ocupar um terreno e fazer um barraco. E lá, vindo da roça, da miséria, da fome, agora a gente se depara com um outro lugar, de violência, assassinato, que botavam fogo nos barracos.
Por mais que o Goela Seca não seja autobiográfico, eu acho que todo escritor e escritora tem um ponto de partida que é esse território chamado corpo, esse território chamado geografia, de onde a gente está. E também, enquanto questão social, entender onde a gente está enquanto processo de identidade social.
É uma observação do outro, mas um aprofundamento de si. Claro que essas histórias, e tanto o livro trazer esses contos, têm um ponto de partida que também são coisas que ouvi, não é sobre mim, mas sobre histórias que aconteceram, também do que eu presenciei. E acho que esse processo se desdobrou para que eu fosse poeta, por um silenciamento até cultural.
Meus pais, por serem nordestinos e muito rígidos, por não terem tido a possibilidade de se expressar e de pensar a infância, também foram endurecidos e nos criaram de forma endurecida. E aí, o que eu faço com esse silenciamento, com essa infância um pouco barrada? A gente foi criada para ser empregada doméstica e eu não acho que os pais que que criam dessa maneira estão errados. Eles não tiveram a possibilidade de enxergar uma outra maneira de existir sem servir o outro, sem ser colocar o pão na mesa para os seus filhos.
Eu acredito que me deparar com as artes me deu a possibilidade de enxergar isso de maneira crítica, primeiro, e possibilitou me expressar de uma maneira outra, de não servir à condução do que queriam que eu fosse.
“Ah, se me queriam empregada doméstica é dos livros que eu me armo. Tu me queria submissa, e hoje eu rezo à missa da morte de teus privilégios, senhor patrão. Porque eu quero que você entenda uma coisa, senhor patrão. Eu quero que você nunca esqueça do que eu vou te dizer, senhor patrão. Eu quero que te persiga para o resto da vida o que eu vou te dizer. Se hoje eu sou poeta e se hoje eu escrevo, é apenas por vingança, senhor patrão”.
Então, essa fala enquanto poeta é uma maneira de enfrentar todos os patrões que faziam minha mãe chegar chorando dentro de casa. Como isso vira literatura, que é o mais importante? Isso vira literatura quando a gente percebe que não é uma história só da minha mãe, só a minha história. Mas há uma questão social, uma narrativa sistematizada que a gente precisa estar.
Quando a gente rompe um pouco esse fluxo, bagunça um pouco esse sistema. Trazer para a literatura é resgatar, inclusive, outras pessoas que tiveram essa mesma história na literatura. A gente tem várias pessoas, várias escritoras que tiveram esse mesmo processo. Me tornar poeta é uma maneira de me vingar.
Eu falo nessa poesia que eu recitei um trechinho, ela se chama Escreva por Vingança, é uma maneira de vingança a isso que me queriam, que me queriam que fosse. Hoje, eu não estou em condições ideais enquanto cena literária, de uma mulher que escreve constantemente, e que estuda para isso, e que está numa cena literária engajada.
Você fala: “o que é que eu preciso fazer mais para estar nesses lugares?”. E eu acho que isso não é só uma pergunta minha, é uma pergunta de Carolina Maria de Jesus, é uma pergunta de Alzira Rufino, de tantas outras escritoras, de Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves. É uma pergunta que nos persegue: “o que que eu preciso fazer, como que eu preciso estar para me respeitarem enquanto poeta, enquanto escritora?”.
Você falou sobre os autores negros, alguns expoentes da nossa literatura, e hoje um outro expoente negro, Jefferson Tenório, acabou de ser censurado por escolas. O livro dele foi aceito como um livro didático e foi censurado, após ter passado pelo processo educacional e pedagógico das escolas, enfim. É uma luta constante e ainda há muito a ser travado, não é?
É muito complicado, e foi uma escola do Rio Grande do Sul, a gente já pega pela geografia, já é problemático. Isso descredibiliza não só o autor, mas também todas as pessoas que deram esse crivo de que fazia sentido a obra estar na rede pública escolar, invalida tudo isso. Eu acho que tem, como você diz, tem muito o que se atravessar dentro de uma sociedade que acha que punir ou tirar uma literatura que é tão importante.
O livro do Jefferson Tenório, de fato, está dizendo sobre uma realidade. Que formação de opinião, de pessoas, estamos estimulando? A escola é um dos primeiros passos, uma das primeiras possibilidades que a gente tem de se formar enquanto indivíduo. Claro que poderia ser muito mais humanizada, mas a gente pegar uma diretora do Rio Grande do Sul que barra Jeferson Tenório?
E ele não é o primeiro a falar sobre essas questões. Se a gente for pegar uma literatura, inclusive embranquecida, de escritores renomados e um pouco mais lá atrás, já tinha. Então, qual é o problema, qual que é a questão? E aí eu volto a perguntar: o que a gente precisa fazer para estar nesses lugares que nos pertencem? Parece que não basta só escrever, só ser escritor, porque há várias outras barreiras.
As pessoas não gostam quando a gente fala que é uma questão racial, que é racismo, e que esse racismo ele, muitas vezes, é muito velado, e nesses momentos, ficam evidentes. Mas muitas pessoas ainda acham que não é assim. Então, acho que tem muita coisa para mudar.
A gente está no mês de março, mês do Dia Internacional da Luta das Mulheres. Você falou muito sobre a dificuldade que você ainda enfrenta e que outras escritoras enfrentam também. É um mês de celebrações, mas obviamente também de muita denúncia, de muitas chagas que são escancaradas e que é necessário que sejam expostas. As lutas travadas pelas mulheres negras são distintas das lutas travadas por mulheres brancas. Há, obviamente, relações, mas há nuances que são muito mais complicadas. O quanto você teve que lutar para poder optar pela escrita na tua vida?
Eu diria que eu continuo lutando para continuar permanecendo. Eu venho de uma história de mulheres na minha família, que foram empregadas domésticas. E a questão não é ser empregada doméstica, a questão são as condições de trabalho no qual essas pessoas são obrigadas a aceitar. Isso se desdobra para outras funções, como entregadores, faxineiros…
E sobre o valor agregado do teu trabalho, que é desvalorizado em algumas profissões. Não é o ofício, mas o valor mesmo, né?
Sim, não se pagam pessoas, se pagam coisas. E pensando nessa cultura que se pagam coisas e se esquecem de pessoas, a gente vai distanciando um pouco dessas relações. Então, ser escritora hoje, mais ainda dentro de todo esse cenário que eu falei, não isenta e não me tira da possibilidade de fazer a mesma função das mulheres da minha família. Eu tento e faço com que não.
Mas se a gente pegar a Preta Rara, foi empregada doméstica, depois virou professora – a importância dos estudos também nisso – e agora está no lugar de visibilidade, massa, que traz esse lugar de fala das empregadas domésticas e eu vejo que a minha história, eu não cheguei a ser empregada doméstica, mas exerci todas as outras funções de minoria, em que eles não pagam pessoas, pagam coisas.
É uma luta constante para continuar. Tem uma coisa que eu digo nas minhas redes sociais, e é bem corriqueiro, é que eu quero ser escritora. Me deixem de ser escritora. Porque por mais que eu tenha esse título enquanto escritora, sobreviver enquanto esta pessoa que escreve, é muito difícil.
A Beatriz Nascimento tem um poema que ela fala que quer ser escritora, que quer escrever, que quer ter tempo de escrever outras coisas, não só sobre luta. Assim como a Carolina Maria de Jesus batalhou tanto e essa era uma das questões dela, que ela queria ser escritora, inclusive tem um livro póstumo dela falando sobre ela querer ser escritora.
E a consciência dessas outras mulheres veio depois, porque eu falava isso: “meu Deus, eu quero ser escritora, estou cansada de me desdobrar em tantas outras coisas pra permanecer na cena”. E pra permanecer na cena, eu tenho que funcionar no mesmo ritmo, que é esse mundo fast food, tudo muito rápido e se perde um pouco dessa qualidade de refletir o mundo nas suas poesias, de refletir sobre o outro no que a gente escreve.
O Goela Seca é o reflexo de uma sociedade em que se expulsa pessoas do sertão nordestino. Ele conta a saga de uma transição do Nordeste para a periferia de São Paulo. Mas eu quero também escrever sobre essa mulher negra que tem as suas conquistas.
Você disse que se encontrou com a poesia nos slams, nas batalhas. Como o slam te formou, te trouxe para esse mundo de magia da poesia? E ele tem muito dessa tua poesia mais aguerrida, não é?
Eu descobri no saraus, em 2009, pessoas iguais a mim. E isso fez com que eu me tornasse poeta e dissesse que sou poeta. Antes dos slams – assim como antes do sarau houve tantas outras cenas literárias – que vieram para o Brasil mais recentemente, eram os saraus que eram feitos nas escolas de samba, nos bares, nas praças, nas ruas, em todos os lugares alternativos.
O sarau é esse espaço em que a gente pode compartilhar. O sarau, diferente do slam, pode ter leitura de poesias que não sejam autorais, pode ter encenação, música. Nas batalhas de poesia a gente tem o lance da preservação da palavra autoral. São 3 minutos, tem que ser escrita por você e essa é a efervescência do que é uma competição, de ganhar nota por uma competição, por uma poesia, por uma performance.
Isso traz lugares diferentes para mim. Ser criada neste cenário me fez ampliar um pouco o entendimento sobre sociedade e eu sou totalmente cria de políticas públicas. Minha formação e essas políticas públicas – onde eu fui descobrindo os meus direitos e as possibilidades de estar – foram nos saraus, quando uma pessoa falava sobre a construção de uma política pública, ou a luta por uma política pública, por um programa, por um edital.
Essa minha formação não está desvinculada dos becos, vielas e praças onde os saraus e slams estavam. Escrevo também com essa característica de enfrentamento porque eu acho que na rua é um lugar de embate, a gente precisa gritar, tem a necessidade de se colocar em roda a nossa voz, toda essa desigualdade, a minha negritude, as minhas questões. Evidenciar as violências enquanto mulher, de se colocar em sociedade, e eu não sabia fazer isso.
E os saraus e slams me fazem encontrar tantas outras como eu e pensar um lugar de identidade. Mas as nossas poesias são uma tentativa de mudar esse cenário. A gente pega a literatura e houve uma mudança enquanto narrativa, quando a gente fala sobre poesia, principalmente, sobre o que era entendido enquanto poesia há tempos atrás, é diferente da feita agora.
Justamente o que muda essa cena literária é essa cena independente periférica, porque são outras urgências. A gente não está preocupada sobre métricas, sobre quantas estrofes são necessárias, e tudo isso. A gente vai lá e escreve.
Eu achei interessante uma palestra tua, quando você se pergunta quem você seria se não fosse a poesia, mas não lembro de você ter respondido a essa questão. E aí queria te perguntar agora quem você seria, Jô, se não fosse a poesia?
Na minha palestra do TEDx eu acho que eu nem respondo. Eu não sei, a única certeza que eu tenho é que eu seria infeliz. Mas acho que a construção do que eu faço enquanto poeta me deixa mais feliz.
Eu não queria dizer outras coisas, porque inclusive eu não queria diminuir as outras funções que nos resta fazer, porque eu acho que tem pessoas inclusive que nem escolheram serem empregadas domésticas, diaristas. Eu acho que eu escrevo para responder isso constantemente.
Edição: Thalita Pires
Fonte: Brasil de Fato Foto: Jô Freitas é poeta, atriz, escritora e idealizadora do Sarau Pretas Peri. – Divulgação/ Facebook/ Jô Freitas