- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Personagens históricos muito antigos costumam ter suas biografias misturadas a episódios lendários. No caso de figuras religiosas, esta confusão entre verdade e mito é ainda mais intensa.
Isso torna muito difícil precisar o que é fato e o que é fantasia na vida de Sidarta Gautama, aquele que é considerado o primeiro Buda.
A começar pela época em que viveu. Não há consenso, mas muitos acreditam que Gautama tenha nascido em 563 a.C. e morrido, aos 80 anos, em 483 a.C.
O budismo, religião baseada em seus ensinamentos, tem cerca de 500 milhões de seguidores em todo o mundo — no Brasil são 250 mil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Gautama teria sido um príncipe de uma região indiana, hoje parte do sul do Nepal.
Depois de uma vida de privilégios, ele teria renunciado ao trono e se dedicado a uma vida frugal.
Segundo a tradição, ele foi motivado por sinais.
“Um dia, ele saiu pela primeira vez do palácio onde vivia e viu o que chamamos de ‘os quatro sinais’: um homem velho, um homem doente, um cadáver e um asceta meditando”, diz à BBC News Brasil a monja Tenzin Kunsang, residente no Centro de Estudos do Budismo Tibetano Shiwa Lha, no Rio de Janeiro.
A história de vida e os ensinamentos atribuídos a Sidarta Gautama chegaram aos tempos atuais porque foram repassados por tradição oral por quatro séculos e, então, escritos.
Há várias versões desses textos, sendo o mais antigo um poema épico escrito por volta do século 2 a.C. São narrativas que se atêm mais ao pensamento budista, mas também trazem uma vida recheada por acontecimentos miraculosos.
“Todos os budistas buscam a iluminação como o Buda”, pontua a jornalista Peggy Fletcher Stack, membro-fundadora da Associação Internacional de Jornalistas de Religião, em seu livro A World of Faith (Um mundo de fé, em tradução livre).
Primeiros anos
Tudo indica que Gautama tenha nascido em Lumbini, no atual Nepal. E ele possivelmente foi criado em Capilavasto, que era a capital do seu clã, onde reinava seu pai.
A Índia antiga era um amontoado de principados, reinos, repúblicas e toda a sorte de cidades-Estado.
Pesquisadores contemporâneos acreditam que Capilavastu era uma oligarquia, ou seja, o poder era restrito a uma elite de membros da mesma família — no caso, a família de Sidarta Gautama.
Nas escrituras antigas, conta-se que ele nasceu em Lumbini porque era tradição que as mulheres fossem para a terra de seus pais para darem à luz.
Sua mãe, contudo, não conseguiu chegar ao fim da viagem e precisou parar nesse vilarejo. O parto teria ocorrido sob uma árvore.
O garoto Sidarta Gautama foi educado por sua tia, irmã mais nova da mãe e, por tradição, estava reservado a ele o posto de governante da região, em futura substituição a seu pai.
A família temia pelo seu destino e, conforme relatos, fazia de tudo para proteger a criança dos ensinamentos religiosos e do contato com o sofrimento humano.
“Ele era muito protegido e amado pela sua família. Vivia feliz no palácio, só cercado de coisas bonitas, prazerosas. Totalmente protegido dentro dos limites do palácio”, conta Kunsang.
Aos 16 anos, casou-se com uma prima, num matrimônio arranjado por seu pai. Viveu nessa rotina palaciana até os 29 anos.
Os sinais e o ‘caminho do meio’
De acordo com os textos antigos do budismo, foi movido por inquietações que ele decidiu sair do palácio para conhecer o mundo real.
“Deixou sua casa em busca de sabedoria”, diz Stack.
Então, presenciou as quatro pessoas que interpretou como sinais.
Com o idoso, entendeu que todos envelheciam. Com o doente, que todos adoecem. Diante do corpo humano em decomposição, contemplou a finitude da vida.
O quarto homem, aquele que levava uma vida ascética, lhe pareceu a chave. Era assim que seria possível superar a enfermidade, a velhice e a morte.
“Isso o impactou muito. Ele reconheceu [nessas pessoas] os sofrimentos do mundo, pelos quais todos vamos passar. E decidiu seguir o exemplo do asceta”, pontua a monja.
“Ele renunciou à vida mundana e passou a se dedicar a uma vida de privação austera, meditação, com jejuns rigorosos”, narra.
Foram seis anos assim — como conta Stack, “vivendo em uma floresta e ouvindo mestres religiosos”.
“E ele não ficou satisfeito”, diz a jornalista.
Até que Gautama, diz a monja Kunsang, “percebeu que não tinha conseguido chegar nem perto do resultado que ele buscava”.
“Então, um dia, ao ouvir uma música, ele se deu conta da afinação perfeita do instrumento de cordas, nem apertadas demais, nem frouxas demais. E teve um insight: ele deveria buscar o caminho do meio. Já tinha dedicado sua vida aos prazeres mundanos e às grandes austeridades. Era chegada a hora de buscar o caminho do meio”, explica Kunsang.
De acordo com a tradição, então Gautama seguiu sozinho em sua busca, cuidando do corpo e da mente, buscando uma vida saudável.
“Em um bosque, ele escolheu uma bela figueira e sentou-se debaixo em uma almofada que ele fez com capim. E decidiu que não se levantaria de lá enquanto não encontrasse a felicidade verdadeira e duradoura”, conta a monja.
Ele havia jurado não se levantar enquanto não se deparasse com a verdade. Seus seguidores acreditam que isso tenha levado 49 dias.
Aos 35 anos, Gautama havia alcançado a plena iluminação espiritual.
“Pela manhã, sua mente se abriu para uma visão do significado mais profundo da vida e de suas vidas anteriores”, escreve Stack.
A partir de então, ele seria chamado de Buda, uma palavra que vem do páli, antiga língua indiana, e significa “desperto, iluminado, aquele que compreendeu”.
Seus contemporâneos também se referiam a ele como sugato — que, no mesmo idioma páli, significa “feliz”.
“Buda finalmente alcançou a perfeita e completa iluminação depois de passar por grandes dificuldades em sua meditação, grandes tentativas de que ela fosse interrompida e que ele a abandonasse, grandes tentações nesse sentido”, analisa Kunsang.
“Ele finalmente se libertou totalmente do sofrimento e alcançou a plena e completa iluminação, mostrando assim com a sua vida o que devemos seguir: nem exagerarmos nas privações ou no autossacrifício, não fazer mal ao nosso próprio corpo achando que isso vai tornar nosso caminho mais iluminado; e também não se entregar aos prazeres da vida”, comenta ela.
“Ele ensinou a utilizar o caminho do meio. É um exemplo que deixou para ser seguido.”
A jornalista Stack diz que Buda entendia que o sofrimento da vida vinha do desejo.
“E esses desejos podem ser superados seguindo um caminho chamado caminho do meio, que evita extremos”, pontua ela.
Gautama transformou sua história em doutrina e, por 45 anos, percorreu a região pregando seu modo de vida.
Ele teria morrido, aos 80 anos, na cidade de Cussínara, na Índia.
“A concretização do budismo como religião começou após a morte de Sidarta Gautama, também conhecido como Buda Histórico ou Buda Shakiamuni”, diz a jornalista Karen Gimenez no livro Dalai Lama.
Religião
“Assim como Jesus Cristo não fundou o cristianismo, Buda também não instituiu uma religião”, diz Gimenez.
“Isso aconteceu, no formato que vemos hoje, depois de sua morte e por meio de pessoas que o seguiram ou acreditaram nele.”
“Eu diria que o budismo é a ciência da mente”, define a monja Kunsang. “É a busca do autoconhecimento mais profundo, ou seja, você busca se encontrar e encontrar a verdadeira natureza de sua mente.”
Ela afirma que, em geral, as pessoas conhecem muito superficialmente a própria mente.
“E com as técnicas do budismo nós exploramos a mente em toda a sua potencialidade, com a meta máxima de alcançar a sua natureza básica, que é a natureza búdica, e encontrar a iluminação”, acrescenta.
Entre as principais crenças, está o carma.
“É a lei de causa e efeito, em que todas as nossas ações geram resultado e, se essas ações forem positivas, o resultado futuro vai ser de felicidade ou algo que deixa feliz. Se as ações forem negativas, o resultado vai ser de sofrimento, insatisfação”, diz a monja.
“Precisamos estar sempre muito atentos ao que fazemos, a nossas ações, nosso corpo, nossa fala, nossa mente. Tudo traz resultado positivo ou negativo.”
Outro pilar da fé budista, reencarnacionista, é que “não existem renascimentos”, ressalta a monja. Isso porque cada nascimento “depende de um fator anterior”.
Ela diz que há um contínuo mental, “a parte mais sutil da mente” que passa “de uma vida para a outra”, levando “em si sua bagagem cármica de todas as vidas [anteriores]”.
Segundo a monja, é uma característica dos praticantes do budismo a busca constante pelo altruísmo. “O bom coração é o que dá valor a ser cultivado”, frisa.
Um budista deve praticar as chamadas “seis perfeições”. São a generosidade, a ética, a paciência, o esforço entusiástico, a concentração ou meditação e a sabedoria.
“Para fazer tudo isso, precisamos desenvolver a mente, eliminando até mesmo a menor das negatividades e cultivando até o potencial máximo todas as boas qualidades que precisamos, as que já temos e as que precisamos desenvolver”, argumenta Kunsang.
Stack diz que os budistas defendem a necessidade de “tratar todos os seres vivos com respeito, falar com honestidade, ajudar os outros e aprender a focar a mente”.
“Aqueles que seguem esse caminho entenderão as verdades do universo”, afirma.
No Brasil
O budismo chegou ao Brasil no início do século 20, junto às primeiras levas de imigrantes japoneses.
“Eles fundaram os primeiros templos no país”, conta a monja.
Depois dos anos 1980, outras linhagens do budismo também se difundiram — Kunsang faz parte da vertente tibetana.
“As tantas ramificações do budismo devem-se, principalmente, à mistura dos ensinamentos de Buda com as culturas e religiões já praticadas nos locais em que Sidarta Gautama chegou”, contextualiza a jornalista Gimenez.
De acordo com a monja Kunsang, houve um aumento grande do interesse pelo budismo e do número de seguidores no Brasil após a primeira visita de Dalai Lama ao país, em 1992, quando participou da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92.
O líder budista tibetano voltaria ao país em 1999, 2006 e 2011. Em 2021, ele fez um encontro virtual com jovens brasileiros.
Fonte: BBC Brasil / Foto:Domínio Público