Sintomas e doenças: o que dizem da sociedade?

saúde

Por SPK

Na Alemanha dos anos 1970, pacientes de um hospital psiquiátrico fundaram um coletivo – o SPK – para denunciar as raízes sistêmicas do sofrimento mental. Inéditos no Brasil, seus escritos foram publicados pela Ubu. Leia, com exclusividade, o primeiro capítulo da obra

No início dos anos 1970, surgiu na Alemanha uma notável experiência no campo da saúde mental: o Sozialistisches Patientenkollektiv, ou SPK, é um grupo de pacientes do hospital psiquiátrico da Universidade de Heidelberg que decidiu organizar-se como um coletivo político, por entender que seu sofrimento psíquico era indissociável das condições de vida impostas pelo sistema econômico e social vigente. O SPK, ainda existente, produz reflexões sobre uma ampla gama de temas da psiquiatria e da Saúde de forma geral – mas que seguiam, até este mês, inéditos em português. Preenchendo essa lacuna, a Ubu Editora, parceira de Outras Palavras, acaba de publicar SPK – Fazer da doença uma arma, que reúne os principais escritos do grupo. O volume inclui um prefácio de Jean-Paul Sartre. Agora, Outra Saúde oferece com exclusividade a seus leitores o primeiro capítulo da obra, que além de trazer instigantes questionamentos, é um importante documento histórico. Bom proveito! (G. A.)


Desdobramento materialista das contradições do conceito de doença

Um texto do SPK

Quando queremos resolver um problema, tudo depende de conhecê-lo corretamente. Não basta ser capaz de indicar este ou aquele aspecto parcial, pois tudo depende de apreender conceitualmente todos os momentos determinantes do problema e seus modos de interação. Só assim é possível que o conhecimento do problema e sua solução constituam uma unidade indivisível. Quando queremos compreender por que uma pedra cai no chão, não podemos nos contentar em constatar que outros corpos também caem, temos que compreender a essência do fenômeno (da queda), a saber, a gravidade enquanto lei universal da matéria determinada pela massa.

Trata-se exatamente do mesmo no caso da doença. Para nós, estava claro desde o início que é totalmente insuficiente procurar causas corporais unívocas conforme o modelo científico-natural da medicina; muito rapidamente nos tornamos conscientes de que também é insuficiente falar pura e simplesmente da causalidade social da doença; que é simplista imputar ao capitalismo “malvado” a “culpa” pela doença e pelo sofrimento. Tornou-se claro para nós que se trata de uma afirmação totalmente abstrata e ineficaz quando se diz simplesmente que a sociedade está doente.

De modo empírico partimos simplesmente de três fatos:

1) A sociedade capitalista existe, o trabalho assalariado e o capital existem.

2) A doença e as necessidades insatisfeitas existem, ou seja, a miséria real e sofrimento de cada pessoa [die Einzelnen].

3) A categoria da historicidade existe, assim como a categoria da produção; ou – dito de modo ainda mais geral – as categorias de tempo, mudança e devir existem.

Dito numa fórmula simples, nos anos 1970/71, o SPK foi a maior concretização possível das contradições do conceito de doença, contradições que foram elevadas à sua mais alta generalização possível. Na dialética, vale de modo geral a ideia de que se deve passar a um nível superior de generalização teórica para conseguir resolver problemas concretos; pois a generalização teórica é ao mesmo tempo pressuposto e resultado do trabalho prático. Desde o início tratava-se, para nós, da compreensão dos sintomas enquanto manifestações da essência da doença.

Em que consiste essa essência? De acordo com Marx, a história da humanidade é a história de sua alienação e da superação [Aufhebung] de tal alienação. A doença não é nem uma parte, nem uma mera forma da alienação, pois ela é a alienação, porém, alienação subjetiva enquanto miséria corporal e psíquica vivida por cada um [Einzelnen].

Nós definimos a doença como vida quebrada em si mesma, como vida contraditória em si mesma. Essa definição é o resultado de pesquisas históricas realizadas nos grupos de trabalho do SPK baseado no materialismo dialético.

Nas sociedades primitivas [Urgesellschaften], os homens se veem diante da violência da natureza, que é vivenciada como um poder prepotente e cego. Para conseguir sobreviver diante de tais forças, eles têm que se organizar em grupos sociais; isso significa, porém, que a violência da natureza persiste no interior do grupo social enquanto poder social. Desde Herder a antropologia já definia o homem como um ser carente [Mängelwesen]; para a antropologia moderna, a história humana começa com o desaparecimento da segurança específica proporcionada pelo instinto animal. Assim, tal desaparecimento da segurança específica proporcionada pelo instinto animal define o homem como o outro da natureza. Para que a história humana em geral exista, é preciso que haja uma quebra da vida puramente natural e biológica.

Nos “Manuscritos econômico-filosóficos”, Marx apresentou com uma grande insistência a finalidade da história da seguinte maneira: “O comunismo enquanto superação [Aufhebung] positiva da propriedade privada entendida como autoalienação humana e, por isso, enquanto apropriação real da essência humana pelo e em prol do homem. Portanto trata-se do retorno integral do homem para si enquanto homem social, isto é, como homem, um retorno consciente e alcançado dentro de toda a riqueza do desenvolvimento anterior do homem. Enquanto naturalismo plenamente realizado, esse comunismo é = humanismo, e enquanto humanismo plenamente realizado = naturalismo, ele é a verdadeira dissolução [Aufloesung] do antagonismo entre homem e natureza, entre homem e homem, a verdadeira solução do conflito [Streit] entre existência e essência, entre objetificação e autoconfirmação [Selbstbestaetigung], entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e espécie. Ele é o enigma solucionado da história e ele se sabe como tal solução”.

Através do desenvolvimento das forças produtivas e da dominação progressiva da natureza, foram alcançados de fato todos os meios que permitiriam ao homem garantir uma vida sem miséria e opressão; no entanto, as relações anárquicas da produção capitalista mantida através da violência impedem o desenvolvimento progressivo dos meios já disponíveis – graças ao alto desenvolvimento das forças produtivas – para a liberação do homem diante das coerções da natureza e da sociedade.

Nas sociedades capitalistas, o indivíduo se vê diante de violências sociais que lhe parecem igualmente cegas e naturais como as violências naturais imediatas. Por isso falamos, nesse escrito, da violência natural do capital.

Com o desenvolvimento progressivo das forças produtivas e, ao mesmo tempo, com a manutenção das relações capitalistas de produção, a sociedade capitalista se vê cada vez mais obrigada a criar valores não-reprodutivos, cuja produção não é destinada à reprodução, mas à destruição da vida social. (Por um lado, arsenal de armas, por outro, usura calculada dos bens de “consumo”). Um exemplo simples pode ilustrar isso. Como se sabe, uma das indústrias mais poderosas é a indústria automobilística. Para não colocar seus lucros em risco, ela precisa garantir uma venda sem dificuldades. Para que a demanda não pare, uma parte da inteligência técnica tem de ocupar-se com a produção de produtos que se desgastem o mais rápido possível (o que é chamado frequentemente de pesquisas de base). O Estado enquanto representante dos interesses do capital como um todo (uma crise de vendas na indústria automobilística levaria automaticamente as indústrias siderúrgica, energética e de borracha a uma crise) é obrigado a construir ruas. A consequência é que as cidades são destruídas pelas vias arteriais, cidades satélites vazias surgem. Isso também tem como consequência que não se dispõe de meios financeiros para questões comunitárias urgentes (escolas, hospitais, creches etc.). A desertificação da vida social que daí deriva tem como consequência o fato de que as grandes aglomerações urbanas se tornarão rapidamente um campo de investimento das futuras indústrias. A indústria do entretenimento preenche esse deserto com suas máquinas de jogos, jukebox, bares noturnos, etc., produzindo com isso: prostituição, criminalidade violenta, gangues e todas aquelas formas de “decomposição” social [“Dissozialitaet”] que os apologetas do sistema fazem passar não por uma consequência do modo de produção capitalista, mas da industrialização.

Na sociedade capitalista, cada um é, portanto, objeto de uma dupla exploração, tanto no âmbito da produção quanto do consumo. Ele se parece com aquele homem da fábula grega, do qual os deuses realizaram o desejo de que tudo que ele tocasse se transformasse em ouro, o que o levou consequentemente a morrer de fome e sede. Não apenas a atividade no local de trabalho, mas também a ocupação no tempo “livre”, a raquetada do tenista, andar de carro, colocar a ficha na jukebox: tudo isso se transformou em ouro para o capital.

As necessidades: nós partimos do fato de que todas as necessidades são necessidades produzidas pelo capital. Ou seja, todas as necessidades são manifestações da necessidade fundamental do capital: a mais-valia. “Portanto, a produção não produz apenas um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”. O capital é o sujeito da história, os homens não são senhores das forças produtivas. No entanto, a necessidade capitalista de mais-valia está em contradição com a necessidade de viver de cada um; a unidade imediata e sensivelmente perceptível dessa contradição é o sintoma

sintoma é a unidade elementar da contradição vida-morte. E o modo de produção capitalista sempre está orientado para a destruição das forças de trabalho. Os quadros sintomáticos classificados como esquizofrenias e psicoses são o conceito de tal contradição. O desdobramento das contradições desse conceito é a resistência organizada e realizada pelo SPK.

É preciso que fique totalmente claro: aquilo que é designado como esquizofrenia e psicose é o mero resultado da contradição entre violência e vida elevada ao seu extremo, permanecendo ao mesmo tempo uma unidade calma; todo movimento humano autêntico recebe como resposta potenciais de violência. Essa unidade calma da contradição violência-vida, que “nos tempos de paz” se manifesta em cada “esquizofrênico” – e a sociedade burguesa sabe muito bem por que ela bloqueia o desdobramento dessa contradição através dos muros de manicômios, camisas de força, psicofármacos e choques elétricos – assume em estado de exceção [Ausnahmezustand] a forma do campo de extermínio. O campo de extermínio é – através das instituições de assistência social, prisões e manicômios – a mais alta realização do conceito de família burguesa (flores no pátio interno das prisões e manicômios, gerânios diante das janelas das barracas de Auschwitz; e qual diretor de prisão ou professor de psiquiatria não sabe anunciar em ocasiões “festivas”: “Nós somos uma grande família!”; na época do Natal também não eram tocadas músicas de crente nos alto-falantes dos campos de extermínio?).

“Por outro lado, em “Revolta contra as massas”, Bruno Bettelheim faz o relato de uma garota que, num momento de perspicácia suprema, tomou consciência e libertou-se de uma das situações de alienação mais terríveis de toda história da humanidade. Essa garota fazia parte de um grupo de judeus que estavam na fila pelados diante da câmara de gás. O oficial da SS que supervisionava a operação ouviu dizer que ela era dançarina e lhe ordenou que dançasse. Ela estava  dançando e se aproximava pouco a pouco do oficial. Subitamente ela toma o seu revólver e atira nele. Seu destino estava claro, e igualmente claro estava que ela não podia fazer nada para mudar algo na situação de fato, a saber, a execução do grupo.

No entanto, ela arriscou sua vida num sentido totalmente pessoal, no qual uma possibilidade histórica encontrou ao mesmo tempo sua expressão, perdida de modo trágico no processo de genocídio nos campos.”

Portanto, quem se ocupa seriamente com sintomas, tem que lidar com a violência da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, com a organização da contra-violência. As relações sociais se traduzem totalmente na materialidade do corpo e na representação do corpo = psique; cada um [der Einzelne] produz seu corpo e sua psique dentro do processo de produção organizado pelo capitalismo.

O sintoma é a manifestação da essência da doença enquanto protesto e inibição do protesto. No SPK, o objetivo da agitação era a reivindicação e utilização do momento progressista da doença, do protesto e sua organização coletiva. Até onde cada um conseguia assumir para si o momento progressista da doença dependia frequentemente da sua situação econômica e posição social. Quem era de certo modo privilegiado, possuindo a possibilidade de desabafar por meio das ofertas de consumo capitalistas (turismo, festas, etc.), ou quem possuía uma posição social que lhe permitia permanecer saudável às custas dos outros, para ele a agitação terminou com uma “cura” no sentido totalmente burguês; ele se contentara com o fato de que os sintomas mais perturbadores haviam desaparecido, assumindo, além disso, o lado reacionário da doença para si (inibição do protesto enquanto violência formal organizada contra os outros e, com isso, contra si mesmo), saindo “livremente” do SPK: ele estava saudável, ficando, assim, objetivamente do lado do capital:

“A classe dos proprietários e a classe do proletariado apresentam a mesma auto-alienação humana. No entanto, a primeira se sente bem e confirmada nessa auto-alienação, reconhecendo a alienação enquanto seu próprio poder, possuindo nela a aparência de uma existência humana; a segunda se sente aniquilada na alienação, vendo nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. Para utilizar uma expressão de Hegel, ela está, em seu ser repudiado [Verworfenheit], em rebelião contra este seu ser repudiado, uma rebelião para a qual ela é necessariamente impulsionada pela contradição entre sua natureza humana e sua situação de vida, a qual é aberta, decisiva e globalmente a negação dessa natureza.”

Saúde é um conceito totalmente burguês. O capital como um todo estabelece uma norma média de exploração da mercadoria força de trabalho. Por um lado, o sistema de saúde tem a missão de elevar essa norma, por outro, selecionar e conservar de modo mais econômico possível as forças de trabalho que não correspondem mais à norma – ou então liquidá-las abertamente como no terceiro Reich, ou, como hoje em dia, eliminá-las através da eutanásia diferencial.

Ser saudável significa, portanto, ser explorável.

A práxis do SPK demonstrou claramente quais potenciais de violência estão disponíveis e sendo mobilizados contra a produção de necessidades não-destrutivas, contra a realização da vida. Ela também demonstrou claramente que os direitos fundamentais garantidos constitucionalmente – igualdade, integridade corporal, livre desenvolvimento da personalidade – são meros fantasmas abstratos e que mesmo a tentativa de mobilizá-los já está estigmatizada como crime. A extensão da concretização dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos não depende, por exemplo, do julgamento de um juiz “independente”, mas do grau de contra-violência que a classe explorada está em condições de contrapor à violência do capital que destrói a vida. Daí porque a palavra de ordem “luta contra a diminuição dos direitos democráticos” é uma frase vazia.

A burguesia não hesita em exterminar milhões de forças de trabalho em nome do seu lucro caso não seja impedida pela violência material dos afetados.

A realização do direito à vida se concretiza na guerra do povo [Volkskrieg]. Toda violência tem que partir do povo.

Para uma pessoa que treme diante da palavra guerra do povo, é preciso que fique claro que ela ainda não dispõe de um conceito da violência do sistema capitalista, da luta de classes que acontece permanentemente desde cima; que 10 mil pessoas morrem por ano devido ao “sui”cídio, que 15 pessoas têm que deixar a vida diariamente devido aos ditos acidentes de trabalho, que a mesma quantidade de pessoas é exterminada anualmente em acidentes de trânsito que o equivalente à população de Offenbach. “A guerra sempre reina nas cidades” – Brecht.

Fonte: Outra Saúde / Imagem: Autorretrato com o Doutor Arrieta (1820), pintura de Francisco de Goya. Wikimedia Commons.

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