O proprietário da boate Kiss, Elissandro Spohr, conhecido como Kiko, é o primeiro réu a ser ouvido no julgamento em Porto Alegre. Ele começou a responder às perguntas do juiz Orlando Faccini Neto a partir das 18h desta quarta-feira (8), mas o interrogatório foi interrompido 1h30 depois quando ele entrou em desespero e começou a chorar.
“Eu não quis isso, eu não escolhi isso. Eu não aguento mais. Eu aprendi a chorar em silêncio dentro de uma cadeia. Por que isso foi acontecer na Kiss? Era uma boate boa, todo mundo era amigo. Eu virei um monstro de um dia para o outro. Eu tava lá”, gritou.
Enquanto desabafava, os familiares das 242 vítimas se uniram em uma corrente e passaram a se abraçar. Uns pais disseram que suportariam o “fingimento”, e uma mãe chegou a falar mais alto que “ele matou nossos filhos”.
“Querem me prender, me prendam! Tô cansado, cara. Perdi um monte de amigos. Acha que eu ia fazer uma coisa dessas? Não é fingimento, eu não aguento mais”, disse Kiko. “Vocês acham que é fácil. Não é fácil. Eu não consegui pedir desculpa”, falou ao virar-se para o público.
Logo em seguida, a sessão foi interrompida para que ele recebesse atendimento. O plenário esvaziou com muitas pessoas chorando, entre elas, advogados e outros réus, como Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha.
Como foi o interrogatório?
O juiz Orlando Faccini Neto observou que ele não é obrigado a responder às inquirições e que pode permanecer em silêncio. Mesmo assim, Kiko decidiu falar e contou que nasceu em Santa Rosa e só conheceu o pai quando tinha 12 anos.
“Às vezes é levado isso e não levam em conta que meu pai tenha a família dele e eu tinha a minha com minha irmã e mãe. Tenho uma relação, como vou dizer?, não somos inimigos, mas ele tem a família dele e eu tenho a minha”, disse.
Depois, ele descreveu o início dos trabalhos com a música, ainda na adolescência. Kiko começou a formar bandas com amigos, como o Pantana, que deu nome ao grupo que criou depois, e tocava em intervalos de shows. Ingressar no ramo das casas noturnas foi uma “consequência”, segundo ele.
“Trabalhava, no fim de semana tocava, e eu vendia bandas. Sempre tive esse espírito empreendedor”, afirmou.
Kiko disse que se aproximou da administração da Kiss como uma oportunidade de negócio e também de expor a sua banda. Ele disse que comprou a sociedade por R$ 15 mil mais um carro compacto.
“Eu não participei de nenhum trâmite de documentação”, afirma.
Após lembrar do início das atividades e o sucesso que a casa noturna nas quintas-feiras, ele se emocionou. “Foi lindo, uma maravilha, tudo perfeito”, descreve.
Ele conta que renovou o alvará em 2011, trocou as barras de abertura das portas e pagou todos os valores referentes às licenças. “A Kiss foi tão vistoriada”, exclamou.
Segundo ele, houve divergências nas sugestões dos engenheiros sobre isolamento acústico para resolver os problemas com uma vizinha. Para Kiko, a orientação de Miguel Ângelo Pedroso foi acatada e um projeto amplo de reforma ao custo de R$ 230 mil foi feito.
“Fizemos parede de pedra, forro duplo de lã de rocha e lã de vidro, rebaixado duas vezes, e continuava vibrando o quarto da vizinha. Pedi permissão e fiz uma parede afastada, de gesso, na vizinha, pintei todo o apartamento para fazer um agrado e coloquei vidro duplo. Dessa vizinha, resolveu o problema. Mas a gente trocou o palco de lado, e a vizinha de trás começou a reclamar”, descreveu.
Ao ser questionado sobre a contratação da Gurizada Fandangueira, Kiko diz que não sabia que a banda usava artefatos pirotécnicos em shows.
“Eu não vi eles fazerem esse negócio, inclusive não vi ninguém fazer. Ninguém me falou também se fizeram”, disse. “É possível que nesse palco novo com as espumas tenha sido a primeira vez”, acrescentou.
Kiko disse que a relação de negociação com as apresentações era com Danilo Jaques, o gaiteiro da banda, que morreu no incêndio. Segundo o proprietário, ele não pediu autorização do uso de artefatos pirotécnicos, nem tampouco avisou das mudanças nas reformas à banda.
“Não tive essa conversa com eles e acho que eles realmente imaginavam que esse tareco não pegava fogo”, afirma.
Dia 27 de janeiro de 2013
O proprietário recordou como foi o dia anterior e da tragédia. Segundo ele, foi à casa noturna durante a tarde para acompanhar os trabalhos internos e passagens de som e, à noite, foi jantar com a esposa em um restaurante de sushi de amigos.
Ele chegou na Kiss depois da 1h40, depois do show da banda Pimenta e seus Comparsas para conversar sobre a promoção do grupo. Um pouco depois, deixou a casa para levar um cliente que estaria embriagado para a rua. Quando retornou, viu o desespero das pessoas correndo na direção contrária.
“Nesse momento vem um monte de gente e me prensa contra um táxi. O Baby [segurança] caiu por cima de mim, as pessoas gritavam para o táxi sair”, descreve.
O juiz Faccini interrompeu a resposta para questionar o que considera uma contradição. Ele perguntou sobre a demora no período entre levar o cliente para a rua e retornar, o que fez Kiko admitir que não viu o início do show da Gurizada Fandangueira.
“Não lembro de falar para alguém cuidar: ‘se uma banda fizer isso ou aquilo, tu tira’. Eram muitas bandas. Eu não me recordo de ter visto [show pirotécnico]”, diz.
Na sequência, Kiko diz que o tumulto aumentou. Ele acreditava que, com a chegada dos bombeiros, a situação melhoraria, mas a percepção de que a proporção do incêndio era maior fez com que tentasse fazer aberturas com as mãos nas paredes.
“Não posso precisar quanto tempo, mas fiquei até a Vanessa chegar. Ela veio com os braços abertos, pensei que ia dar um abraço, e ela me deu um tapa. ‘Kiko, Kiko, e a minhã irmã?’. Alguém me botou para dentro de um carro, ia me levar para dentro de casa e eu disse para me levar para a delegacia. Me apresentei e disse: ‘tá pegando fogo na boate, tá morrendo gente’. Apavorado, sem camisa’, descreveu, aos prantos.
O magistrado, na volta do interrogatório, perguntou sobre os processos movidos pela defesa de Kiko. Ela elencou ações movidas contra o promotor Ricardo Lozza, ex-prefeito Cezar Schirmer, bombeiros e músicos.
“A gente processou porque tinha entendimento de que tinham que vir aqui para me ajudar a explicar”, respondeu.
Faccini, então, rebate que as vítimas morreram, segundo a denúncia do Ministério Público, asfixiadas pela queima da espuma tóxica, e que as respostas de Kiko concernem ao alvará e outras questões administrativas. O juiz ainda questiona por que ele não exprimiu o pesar às famílias ao longo dos últimos oito anos.
“Não existe o que falar, não tem uma explicação que consiga dar. Fiquei como culpado. Vou falar o quê?”, diz.
Spohr apontou ainda que a administração conseguisse ter 1 mil pessoas na casa, mas não simultaneamente. Para ele, o importante era alcançar este número “no giro”, na soma de pessoas que entraram e saíram casa.
Ele diz, ainda, que o segurança ficou com 74 canhotos de frequentadores que já tinham saído da festa antes do incêndio. “A gente não deixava passar de 800”, assegura.
Em relação aos extintores, disse que havia renovado de seis a oito meses antes. Disse, ainda, que tinha mecanismos de propagação de CO2 como efeito da boate.
“O extintor não funcionou. Por quê, Deus sabe! Eu queria que tivesse funcionado”, sublinhou.
Jader Marques, defensor de Kiko, não fez perguntas e os trabalhos foram encerrados depois que nenhum jurado acrescentou questionamentos.
Os interrogatórios seguem na quinta (9) com as oitivas de Luciano Bonilha, Mauro Hoffmann e Marcelo de Jesus, nesta ordem. O juiz Orlando Faccini Neto expôs que a previsão era que os hotéis recebessem as testemunhas e demais integrantes do julgamento até a quarta-feira seguinte, e elogiou a celeridade no processo.
Quem são os réus?
- Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, 38 anos, era um dos sócios da boate
- Mauro Lodeiro Hoffmann, 56 anos, era outro sócio da Boate Kiss
- Marcelo de Jesus dos Santos, 41 anos, músico da banda Gurizada Fandangueira
- Luciano Augusto Bonilha Leão, 44 anos, era produtor musical e auxiliar de palco da banda
Entenda o caso
Os quatro réus são julgados por 242 homicídios consumados e 636 tentativas (artigo 21 do Código Penal). Na denúncia, o Ministério Público havia incluído duas qualificadoras — por motivo torpe e com emprego de fogo —, que aumentariam a pena. Porém, a Justiça retirou essas qualificadoras e converteu para homicídios simples.
Para o MP-RS, Kiko e Mauro são responsáveis pelos crimes e assumiram o risco de matar por terem usado “em paredes e no teto da boate espuma altamente inflamável e sem indicação técnica de uso, contratando o show descrito, que sabiam incluir exibições com fogos de artifício, mantendo a casa noturna superlotada, sem condições de evacuação e segurança contra fatos dessa natureza, bem como equipe de funcionários sem treinamento obrigatório, além de prévia e genericamente ordenarem aos seguranças que impedissem a saída de pessoas do recinto sem pagamento das despesas de consumo na boate”.
Já Marcelo e Luciano foram apontados como responsáveis porque “adquiriram e acionaram fogos de artifício (…), que sabiam se destinar a uso em ambientes externos, e direcionaram este último, aceso, para o teto da boate, que distava poucos centímetros do artefato, dando início à queima do revestimento inflamável e saindo do local sem alertar o público sobre o fogo e a necessidade de evacuação, mesmo podendo fazê-lo, já que tinham acesso fácil ao sistema de som da boate”.
Fonte: g1