Ingredientes quilombolas substituem estabilizante e emulsificante, eliminando os industrializados e acrescentando sabor
Camilla Lima
Imagine uma mistura feita de mandioca, farinha, coco, rapadura e manteiga da terra. No que você diria que ia dar? Joélho Caetano reuniu todos esses sabores, que são a base da cultura alimentar de seu povo, a comunidade quilombola conhecida como Conceição dos Caetanos (Tururu), e produziu um sorvete. Farinhada foi o nome dado à iguaria de dar água na boca. Já a história da criação por trás do “sorvete quilombola” dá aquele quentinho no coração.
A jornada de Joélho Caetano na gastronomia começou ainda criança, na cozinha de casa. Sensibilizado pela rotina cansativa da mãe, raspando mandioca para as farinhadas, Joélho pensou que poderia ser de grande ajuda se ele fizesse a própria comida.
Sem a mãe saber, todos os dias, o pequeno Joélho estava na beira do fogão. Quando descobriu o que o filho vinha fazendo e vendo que nada o faria mudar de ideia, porque já tinha criado gosto pelo afazer doméstico gastronômico, dona Medina decidiu ensinar ao filho a como utilizar as ferramentas e continuar desempenhando a nova função de forma segura. Joélho não parou mais.
Filho de agricultores e neto de uma das maiores lideranças quilombolas de sua comunidade, dona Bibiu, Joélho fala com orgulhos sobre sua origem. “Venho de um lugar de povos tradicionais, onde tem uma cultura afro bastante rica que foi introduzida através de minha avó. Então, a gente tem essa cultura ambientada na gastronomia que, pode-se dizer, bendita”, conta.
Ele trilha o mesmo caminho da avó, que, aos quinze anos, já dava seus primeiros passos no empreendedorismo. “Quando eu ingresso no ensino médio, começo empreender na escola, vendendo trufas, mouses e várias outras coisas para ajudar financeiramente em casa”, diz.
Um sonho com sabor
Foi aos quinze anos também que Joélho fez sua primeira viagem à Fortaleza. De férias com um padrinho na capital, Joélho visitou, pela primeira vez, uma sorveteria. “Era uma sorveteria simples, mas foi algo que me tocou grandiosamente. Eu nunca tinha ido a uma, já tinha comido sorvete, mas só daqueles industrializados que os comércios pequenos, os barzinhos, as bodegas daqui, vendiam. Então, vou a sorveteria pela primeira vez, provo o sorvete e me encanto. E como jovem sonhador, fico com aquele instigado na minha mente de querer trazer aquilo para minha comunidade e também como forma de ajudar a mudar a realidade financeira da minha família”.
Parece que ali, naquele encontro inédito entre Joélho e o sorvete, a ideia futura já estava plantada. “Chego de Fortaleza com essa ideia, mesmo sem minha mãe ter condições financeiras nenhuma, sem ter conhecimento nenhum, eu digo que quero porque quero montar um negócio”. À primeira vista, a ideia parecia coisa de louco, “mas ela, como mãe que sempre acredita nos filhos, segurou minha mão, me deu todo apoio e investiu tudo o que ela tinha”.
O tudo ao qual Joélho se refere era uma pequena quantia que dona Medina tinha juntado vendendo bolo de porta em porta – atividade extra que a mãe fazia para compor a renda familiar. O modesto valor já tinha até destino certo: comprariam uma moto na qual o pai de Joélho faria a entrega dos bolos de porta em porta. “Ela abole a ideia de comprar uma motocicleta e compra apenas um freezer. Um freezer que era essencial para a gente começar a fazer o sorvete”, conta.
Aprendeu uma receita básica de sorvete vendo tutoriais na internet. Colocou o freezer num antigo quarto, abriu uma porta para o lado de fora da casa, arrumou o espaço com alguns expositores de madeira que o pai fez de forma artesanal e deu início ao negócio. “Foi algo que deu muito certo. E aí foi o começo de algo que iria se encaminhar para dar mais certo ainda”, rememora.
Na hora de escolher o curso, no qual iria ingressar na faculdade, não titubeou: gastronomia. Foi quando desenvolveu sua primeira – e própria – receita base de sorvete, “feita apenas com leite, emulsificantes e outros estabilizantes para fazer um sorvete legal, e isso melhorou ainda mais a qualidade do meu produto”, mas nada do farinhada ainda.
Resgatando a cultura
Foi em 2023, que dona Bibiu chamou Joélho para mais junto das tradições da comunidade, pedindo ao neto que desse prosseguimento ao legado cultural de seu povo. “Então eu passo a compreender e a, de fato, adentrar dentro do mundo cultural da minha comunidade. Quando eu passo a me adentrar, eu entendo como é importante a minha cultura para a nossa comunidade e para mim. E passo a entender que eu tinha uma sorveteria dentro de comunidade quilombola que tinha zero traços culturais”, explica.
Foi aí que o empreendedor começou a pensar formas de como trazer a cultura de seu povo para dentro do seu negócio. E é aqui, nesse ponto do caminho, que Joélho encontra a Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco. “Eles lançaram um edital de chamamento público para apoiar pesquisa e pesquisadores que quisessem desenvolver produtos ou tecnologias na área da cultura alimentar no estado do Ceará. Então, eu escrevo uma proposta de criar um sorvete que fosse a identidade cultural da minha comunidade, com os produtos que eu encontrasse aqui”.
Além disso, a ideia de Joélho era desenvolver um produto mais natural que pudesse ser consumido dentro da própria comunidade, com insumos que já faziam parte de seu cotidiano. O processo de pesquisa contou com muita gente para chegar ao produto final que atendesse a todos os requisitos, explica Vanessa Moreia, coordenadora de cultura alimentar e pesquisa da escola.
“Num primeiro momento, tivemos a colaboração do professor Sandro Gouveia, atual pró-reitor de cultura da UFC [Universidade Federal do Ceará], e da Patty Durães, pesquisadora especialista em cultura alimentar quilombola. Na certeza de que um território com seis casas de farinha deveria ter um sorvete feito com mandioca, convidamos Bruno Modolo, cozinheiro e professor da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco para fazer a mentoria, e Andrea e Afra, donos da Bellucci, para serem parceiros da criação, que deveria atrelar tradição e inovação no produtos final”, diz ela.
Joélho detalha que, dentro do laboratório, passa a estudar a comunidade e sua relação com a mandioca mais a fundo. “A gente entendeu qual o forte da cultura alimentar, que era a prática das farinhadas, do plantar, do colher mandioca, do fazer farinha, do fazer goma. A partir daí, eu entendo que esse era o forte da minha comunidade. Então, a gente vai por este viés, de querer criar um sorvete feito à base de mandioca”, comenta.
À procura da mistura perfeita
Mas nem sempre o plano que se tem na cabeça dá certo na prática. Joélho conta que criar um sorvete de mandioca parecia quase impossível. “É difícil trabalhar com a mandioca, tem que ter todo um processo de manuseio para dar certo”. Mas, junto aos pesquisadores e tutores da escola, a solução veio. “A gente consegue utilizar a mandioca na base, faz uma base de sorvete feita de mandioca e a mandioca entra como estabilizante e emulsificante eliminando os industrializados dessa parte.”
Aí surge um outro percalço: a base de mandioca fica neutra, sem sabor. Mais pesquisa sobre a cultura alimentar de Conceição dos Caetanos é feita para resolver essa equação gastronômica: o que tinha presente nas mesas quilombolas que poderia somar e trazer um sabor autêntico à receita? “A gente tinha bastante farinha, o coco, em cada casa tem um pé de coqueiro, tinha a rapadura em abundância, porque em quase toda casa aqui é sagrado a rapadura na hora do almoço, e a gente tinha a manteiga da terra”. Pronto, a receita agora parecia estar completa.
“A gente pega esses alimentos e, junto com minha mentoria, eu penso em desenvolver uma farofa com todos esses ingredientes. A gente desenvolve uma farofa doce, que é jogada dentro da base de sorvete de mandioca e, por incrível que pareça, dá muito certo”, conta Joélho como quem ainda não acredita que encontrou a mistura perfeita.
O forte braço da escola de gastronomia entra no processo de maturação da ideia. Encontram parceiros e levam o jovem empreendedor aos possíveis caminhos para criar seu próprio repertório gastronômico do sorvete. “A escola foi fundamental, porque foi através dela que eu consegui realizar o sonho de desenvolver um produto”, diz Joélho.
“Antes era um sonho que eu tinha, criar um produto que fosse a cara da comunidade, mas talvez não enxergasse como poderia ser colocado em prática, então vem a escola e aposta todas as suas fichas para que o meu sonho fosse realizado. Sem ela, talvez, eu não teria conseguido realizar esse sorvete”, enfatiza Joélho sobre a importância da instituição nesse processo.
A análise sensorial do novíssimo produto aconteceu dentro de um evento gastronômico na capital, no qual teve 80% de aprovação. “A gente fez a análise sensorial do sorvete com várias pessoas do Brasil. Foi um marco maravilhoso”, conta um Joélho orgulhoso do feito.
“Poder ter um produto que desenvolvi do zero, que fala da essência da comunidade, que conta a cultura alimentar da comunidade. Eu, com apenas 21 anos de idade, ter um produto que eu posso dizer que tem minha assinatura junto com a assinatura da comunidade, que tem a nossa essência, é muita felicidade”, celebra.
Pesquisa conjunta
Vanessa explica que até chegar ao sabor tão almejado por Joélho e pela equipe da escola foram muitas etapas no processo de pesquisa. “A primeira delas foram as visitas técnicas às sorveterias da cidade para fazermos análise sensoriais de sorvetes que tivessem o mesmo conceito, a fim de compreender as combinações que seriam os primeiros testes”, conta.
A segunda etapa da pesquisa eram os testes para criar uma base de mandioca para evitar o emulsificante, produto ultraprocessado, e criar o crocante, que combinasse ingredientes produzidos na comunidade: farinha, coco e rapadura. “A fim de manter a crocância, utilizamos a manteiga da terra, produzida num sítio da comunidade”, acrescenta.
“Em paralelo, o design Allysson Brilhante, premiado por desenvolver rótulos de produtos alimentícios, desenvolvia a identidade da marca e a criação dos suportes para o sorvete. Ao final, fizemos a análise sensorial em parceria com o Mestrado em Gastronomia da UFC, tendo informações importantes para os acertos finais da receita.”
Até chegar ao sabor tão almejado por Joélho e pela equipe da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, foram muitas etapas no processo de pesquisa. / Foto: Jeny Sousa
Lançamento de sucesso
No dia 14 de julho, aconteceu o lançamento oficial do sorvete farinhada na Estação das Artes, em Fortaleza, e também foi um sucesso. Sucesso que impactou na sorveteria de Joélho, lá em Conceição dos Caetanos.
“Depois do lançamento, a sorveteria está um sucesso. A gente está aqui na correria para conseguir atender à clientela porque está vindo muita gente, está tendo um movimento muito grande e um retorno maravilhoso”, conta o criador.
“Está saindo como a gente esperava. A gente queria que, primeiramente, a população do quilombo fosse a primeira a gostar do sorvete, se apropriado, porque é um sorvete nosso, um sorvete criado, nascido e feito na comunidade”, comemora um Joélho gastrônomo, empreendedor e feliz dos resultados obtidos entre pesquisa, gastronomia e a perpetuação da cultura de seu povo por meio da cultura alimentar.
Para o futuro, Joélho tem sonhos grandes. “Espero poder ter uma linha de sorvete com a assinatura da nossa comunidade em grande escala e conseguir impactar todo o município, cidades vizinhas, podendo, talvez, construir uma grande fábrica onde a juventude da comunidade possa ter oportunidade de estar trabalhando junto, de trazer essa renda para sua família”, planeja.
Para ele, o projeto pode contribuir para a permanência da população tradicional no território. “Eu costumo dizer que a nossa tradição só vai se manter viva quando o jovem tiver condições de ficar no seu lugar sem precisar ir para outras cidades atrás de condições de trabalho para viver. Então, se eu tiver condições para trazer essa fábrica, eu vou conseguir impactar esses jovens.”
Em Fortaleza, é possível encontrar o sorvete farinhada, que traz no sabor a história do Joélho e do seu povo, nas lojas da Bellucci e no quiosque da Estação das Artes.
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Fonte: BdF Ceará / Foto: Jeny Sousa