Suprema Corte deverá revogar precedente que criou “direito ao silêncio” nos EUA

justiça

Por João Ozorio de Melo – Domingo, 12 de junho de 2022

Tudo indica que a Suprema Corte dos Estados Unidos vai revogar o precedente de 1966 que instituiu a “advertência de Miranda” em todo o país. E, provavelmente, deixar para cada estado a atribuição de legislar algo parecido.

A Suprema Corte deve deixar para cada estado a atribuição de legislar sobre o tema
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Quem não é advogado provavelmente não sabe o que é a “advertência de Miranda (Miranda warning)” ou o que são os “direitos de Miranda (Miranda rights)”. Mas o conteúdo desse precedente vai soar familiar para quem já viu filmes ou séries americanos com cenas de prisão, em que o policial recita os direitos constitucionais do cidadão detido: “Você tem direito de ficar calado. Tudo o que disser poderá e será usado contra você em juízo. Você tem direito a um advogado”.

Sem essa advertência antecipada, a polícia só pode pedir ao suspeito que forneça seu nome, data de nascimento e endereço — mais nenhuma informação. Um policial também pode advertir o suspeito de que, se ele não pode contratar um advogado, o juiz vai nomear um dativo. E perguntar se, com essas informações em mente, quer falar com ele.

Popularmente, o direito de não se incriminar ao ser interrogado por agentes dos órgãos de segurança ficou mais conhecido como o “direito ao silêncio” — uma estaca do sistema criminal dos EUA, que protege o cidadão detido contra abusos dos investigadores, como o de interrogatório coercitivo, de mentir sobre provas obtidas etc.

O direito foi consagrado por decisão da Suprema Corte no caso Miranda v. Arizona. Ernesto Arturo Miranda foi condenado com base apenas em sua confissão escrita e assinada do crime de sequestro e estupro e foi sentenciado a um período de 20 a 30 anos de prisão. A Suprema Corte anulou a condenação porque a polícia não explicou a Miranda seus direitos antes de interrogá-lo.

O tribunal mandou de volta o processo à primeira instância, com a instrução de que os promotores não podem usar a confissão de um suspeito como prova em julgamento se ele não for advertido de seus direitos — a não ser que o réu renuncie explicitamente a eles, de forma consciente, inteligente e voluntária. Mesmo assim, o suspeito pode, a qualquer tempo, mudar de ideia, solicitar a presença de um advogado e não confessar mais nada.

A instituição “direitos de Miranda” deixará de existir como uma regra válida para todo o país, mas os direitos do réu de ficar calado, não se incriminar e ser representado por um advogado permanecem, porque estão sedimentados na Quinta e na Sexta Emendas da Constituição dos EUA. Será extinto apenas o mandato federal de anunciar ao suspeito detido seus direitos constitucionais.

Desses direitos, o mais popular é o de ficar calado, que ganhou uma expressão própria: plead the Fifth (ou take the Fifth), que significa exatamente se recusar a falar ao ser interrogado por agentes de órgãos de segurança ou por uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Se o suspeito virar réu, essas duas emendas lhe garantem outros direitos, tais como ao devido processo a um julgamento rápido e público, na jurisdição em que o crime foi cometido, a um júri imparcial, a ser informado sobre a natureza e causa da(s) acusação(ões), de confrontar as testemunhas contra ele (através seu advogado) e de ter um processo compulsório para obter testemunhas a seu favor.

Extinto o procedimento de praxe da polícia de anunciar ao suspeito detido seus direitos, como previstos na “advertência de Miranda”, caberá a cada estado legislar sobre a matéria. E à polícia local agir como for estabelecido localmente.

Ao transferir para os estados essa responsabilidade — da mesma maneira que irá fazer com o direito ao aborto, ao anular o precedente que o legalizou em todo o país — a Suprema Corte vai criar uma situação em que a legislação sobre o direito ao silêncio vai se transformar em uma colcha de retalhos.

Haverá retalhos maiores e menores porque, além dos estados, condados e municípios também têm suas próprias leis penais e poderão legislar sobre o tema. E serão retalhos multicoloridos porque, em alguns lugares, vão seguir o espírito liberal-democrata (azul), em outros, o espírito conservador-republicano (vermelho) e ainda em outros, alguns espíritos intermediários (meios-tons).

Os estados democratas vão, provavelmente, aprovar leis que espelhem o conteúdo da “advertência de Miranda” — e, quiçá, até melhorá-lo um pouco. Nos estados republicanos, não se pode esperar muita boa-vontade a favor dos suspeitos de crime. Uma das bandeiras eleitorais mais badaladas pelos políticos republicanos é a de ser “duro contra o crime” — significando não dar colher de chá.

Portanto, não será uma prioridade nas assembleias legislativas controladas por republicanos regulamentar esses direitos constitucionais das pessoas detidas pela polícia. Ou podem ser regulamentados, mas a legislação pode dar mais asas para os detetives serem mais bem-sucedidos em seus interrogatórios.

Para se valer de seus direitos, sejam quais forem em um estado ou outro, os suspeitos terão de conhecê-los por conta própria. Nesse caso, a condenação de Ernesto Miranda não teria sido anulada, porque ele não tinha conhecimento desses preceitos constitucionais.

Fonte: Conjur

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