Telemedicina: mercado tenta capturar o SUS por dentro

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Ministério da Saúde e CFM começam a implantar a UBS Digital. O que poderia ser um grande avanço no atendimento da população está prestes a ser entregue ao setor privado. Movimento sanitarista precisa despertar para disputa crucial

O ministério da Saúde avança, a passos largos, na aprovação e implementação da telemedicina no Sistema Único de Saúde (SUS). O Conselho Federal de Medicina (CFM), aliado do governo, publicou, em 5 de maio, uma resolução que regulamenta a prática de oferecer serviços médicos por meio de tecnologias da informação. 

Um mês depois, o próprio ministério publicou uma portaria em consonância, e anunciou a criação do programa UBS Digital. Trata-se de uma iniciativa para instalar, em 323 municípios em “áreas remotas” do país, a infraestrutura para oferecer “saúde digital” à população. Para Luiz Vianna Sobrinho, médico e doutor em bioética, é essa a questão mais importante para o SUS, hoje.

Vianna explica sua preocupação, em entrevista ao Outra Saúde. O fato é que as empresas e o mercado nunca antes se interessaram pela Atenção Primária – área em que o SUS é mais forte. Isso acontece porque o principal recurso dela é o humano: profissionais que trabalham com pediatria, prevenção, redução da mortalidade infantil, educação, vacinação. Não há insumos para serem vendidos, mas serviços – que não dão retorno monetário. 

Ou não davam: com as tecnologias de informação, é possível vender sistemas que podem alcançar os 75% da população brasileira que dependem completamente do SUS – e ainda recolher os dados de saúde delas. Vianna percebe que, com a crise econômica, que pode fazer com que cidadãos deixem de conseguir pagar planos de saúde, essa é a nova janela de oportunidade para o mercado. Mesmo as maiores empresas de tecnologia como Google e Apple já perceberam seu enorme potencial lucrativo. E, entre os defensores do SUS, ainda não se percebe em profundidade o perigo a que o sistema está exposto.

Em artigo demagógico, publicado na Folha na segunda-feira (27/6), o ministro Marcelo Queiroga exalta a iniciativa. “No governo do presidente Jair Bolsonaro, o fortalecimento da atenção em saúde, primária e especializada, se tornou prioridade do Ministério da Saúde, visando ampliar o acesso ao sistema público de saúde a todos os brasileiros”, mente o bolsonarista. Mas, algumas linhas depois, no artigo, está o que Vianna enxerga como a chave para entender o motivo de tal discurso: “percebo uma nova perspectiva para a saúde pública no Brasil – e também para as instituições privadas que atuam nesse ramo”.

“Ele é o ministro dos negócios”, relembra Vianna. “Para ele, é uma oportunidade para o funcionamento das empresas”. O autor explica que o mercado viu enfim uma brecha para lucrar em cima do SUS – com dinheiro público, de maneira mais enraizada e capaz de coletar dados em massa. O insumo, além de lucrativo, é barato: com um telecentro e a contratação de profissionais que tenham o conhecimento técnico das ferramentas, é possível atender o Brasil inteiro. “E não há qualquer debate com a sociedade”, lamenta.

Vianna pensa que o SUS e o movimento sanitarista ainda não despertaram para a disputa da tecnologia na Saúde. Em seu livro O Ocaso da Clínica (2021), ele analisa a Medicina de Dados e sua presença cada vez mais inescapável. Defende que é preciso disputá-la e, em meio à quarta revolução industrial, o SUS deveria recuperá-la em favor da Saúde e dos brasileiros – e não de corporações.

Mas as empresas – e o ministério que trabalha para elas – estão ocupando espaços rápido demais, sem contestação. E não precisava ser assim, alerta Vianna, porque as instituições públicas, principalmente universidades federais, já trabalham no amplo desenvolvimento da tecnologia da informação. “São elas que deveriam estar liderando essa transformação”, afirma, e lista algumas: a Fiocruz, Ao Inova USP, a UERJ, as Universidades Federais Fluminense, da Bahia, do Ceará e do Rio Grande do Sul. “O que se pode fazer com uma ótica coletiva pública com visão de SUS tem de ser através de instituições públicas.”

Fonte: Outra saúde

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