“Será vingança de sangue”, diz um soldado, num funeral. Outro bloqueia a porta de uma casa em chamas, para que não escape ninguém. Na TV, apresentador detona, ao vivo, bombas em área povoada. Quanto mais cruel, mais o sionismo se perde
Por Sebastian Ben-Daniel, no Middle East Eye | Tradução: Glauco Faria – Quinta, 21 de novembro de 2024
Alguém “normal”, na definição do dicionário, é um sujeito comum, racional: não anormal. Os relatos sobre o funeral do soldado Shuva’el Ben-Natan me parecem anormais.
Ao elogiá-lo, seu irmão disse: “Queremos vingança! Vocês entraram em Gaza para se vingar do maior número possível de pessoas, mulheres, crianças, qualquer pessoa que vissem, o maior número possível, era isso que vocês queriam. E neste dia, um ano depois daquele dia de Simchat Torá, pensando que massacraríamos o inimigo, massacraríamos todos eles, os expulsaríamos de nossa terra aqui… Todo o povo de Israel terá o direito de se vingar de sua morte, vingança de sangue, não vingança por queimar casas, não vingança por queimar árvores, não vingança por queimar carros, mas vingança pelo sangue derramado dos servos [de Deus]”.
Em seguida, um de seus colegas soldados acrescentou: “Você era o mais feliz, o mais otimista e o mais bobo da unidade. Vimos isso pela primeira vez em Gaza, quando você incendiou uma casa sem permissão, movido pelo astral”.
Seu amigo Shlomi concluiu: “Prometo a você que entraremos no Líbano novamente, em Gaza e em todos os vilarejos de Samaria, e nos vingaremos, lutaremos até o fim e não pararemos. Quando você estava em Gaza, eles o chamavam de ‘Shuvi, o Madlik’ [madlik em hebraico significa incendiário mas também, na gíria, um cara legal] porque quando você saía de uma casa, colocava fogo nela. E nós vamos queimar – o que vamos queimar? Shubik, o que vamos queimar? Que eles comecem a sentir medo! Até que a redenção chegue – lutaremos até o Monte do Templo!”
Toda a mídia comercial israelense que cobriu o funeral cortou esses momentos. Em um longo artigo no noticiário noturno Ulpan Shishi de de sexta-feira, Ruti Shiloni relatou apenas os elogios que não incluíam confissões de crimes de guerra. Evidentemente, esse último não lhe pareceu incomum ou digno de notícia.
As reportagens subsequentes abordaram a mídia cooptada no Irã e os jornalistas da Al Jazeera suspeitos de serem combatentes do Hamas. Em certo momento, o apresentador de TV Danny Kushmaro detonou, durante um programa, os explosivos que arrasaram uma casa.
Quando estava de licença do exército, há exatamente um ano, Shuva’el Ben-Natan atirou e matou Bilal Saleh, 40 anos, enquanto este colhia azeitonas perto de sua casa. Saleh estava desarmado e não representava ameaça mortal a ninguém, mas Ben-Natan o matou a tiros.
Em outubro do ano passado, esse foi o modus operandi de muitos colonos da Cisjordânia, que aproveitaram o massacre de 7 de outubro para atormentar os palestinos durante a colheita da azeitona. O chefe do conselho regional de Samaria, Yossi Dagan, apressou-se em declarar naquele sábado que nada havia acontecido. Dagan é um colaborador próximo do pai de Ben-Natan, que dirige a Yeshiva Rechelim, de onde vieram os assassinos de Aisha a-Rabi.
Em seu discurso fúnebre, o amigo do jovem Ben-Natan viu esta história de forma diferente: “Eu tinha muita admiração por você. Havia malditos militantes lá, terroristas, que o maldito exército… permitiu que se aproximassem dos assentamentos. Você atira, fala, os expulsa… Eles [as autoridades] nem sequer interrogaram os árabes”.
Embora o caso permaneça em aberto, e ainda que Ben-Natan tenha dito a pessoas próximas que queria assassinar mulheres e crianças, ele foi posteriormente enviado para lutar em Gaza. Para deixar os rapazes da reserva felizes, ele incendiou uma casa – provavelmente o fez mais de uma vez, daí o apelido Shuvi, o incendiário.
Ninguém que presenciou esse fato achou que era um problema; pelo contrário, Ben-Natan era normal e bem-quisto. O exército evidentemente também pensava assim, pois depois de Gaza ele foi enviado para o Líbano. A trágica coincidência, de seu ponto de vista, é que se não tivesse recebido imunidade por ter matado Bilal Saleh, ele provavelmente estaria vivo hoje. Preso, mas vivo.
Se as coisas ditas no funeral tivessem sido escritas em um esquete satírico sobre um grupo religioso, elas seriam consideradas antissemitas. Mas para as pessoas que estavam no funeral, entre elas um ministro do governo que propôs jogar uma bomba atômica em Gaza, os elogios soaram perfeitamente normais. O mesmo vale para os amigos do soldado e para os oficiais da IDF presentes. Não apenas normais, mas motivos de orgulho, notáveis em seu obituário e na forma como Ben-Natan deveria ser lembrado: como o soldado determinado a assassinar mulheres e crianças — quanto mais, melhor — um cara que se divertia queimando casas.
No exército israelense de hoje, quantos Shuva’el Ben-Natan existem determinados a se vingar e a assassinar crianças – especificamente, agora, em Gaza?
De acordo com investigações recentes realizadas por importantes jornalistas estrangeiros, são muitos. Foram acumuladas inúmeras evidências de crianças baleadas na cabeça e no peito. Em Israel, é claro, isso é recebido com as alegações de sempre: não aconteceu, é notícia falsa. E se aconteceu, não foi intencional. Ou se foi intencional, o soldado era uma maçã podre, por que generalizar? E, de qualquer forma, não há inocentes em Gaza, e o culpado é o Hamas.
Mas não são maçãs podres, nem tolos. Um soldado judeu israelense muito observador, em um pogrom no vilarejo de Um Safa, incendiou uma casa com uma família dentro, apoiando uma cadeira contra a porta para garantir que a mãe e seus filhos fossem queimados vivos. Ele está em Gaza neste momento?
Aviad Frija confirma com orgulho para a mídia que ele de fato matou uma pessoa que havia largado sua arma (infelizmente, descobriu-se que a vítima era judia). Ele acabará servindo no Líbano devido à escassez de soldados de combate?
Três soldados da Brigada Kfir matam a tiros uma criança em um carro e são absolvidos porque as armas não foram testadas. Um oficial atira em uma ponte na estrada 443. Um soldado atira em um bebê em um vilarejo na Cisjordânia porque viu os faróis de um carro. O “procedimento do mosquito” força os civis de Gaza a se tornarem escudos humanos para os soldados que vasculham os túneis do Hamas, porque as vidas dos habitantes de Gaza valem menos do que uma bateria de drones. Oficiais sionistas religiosos pedem a destruição de vilarejos e a fome de civis e depois se ofendem, quando são chamados de “comedores de morte”.
Alguém ainda acha que a matança em Gaza não se deve, pelo menos em parte, à mesma sede de vingança que animou os elogios no funeral de Shuva’el Ben-Natan?
Desde outubro passado, muitos colonos foram recrutados para as unidades locais de defesa civil e receberam armas dos militares. Vestindo uniformes ou portando armas do exército israelense, esses colonos cometeram inúmeros ataques com motivação ideológica contra residentes palestinos nos territórios ocupados. A polícia não investiga, porque os suspeitos são “soldados”. O exército também não investiga, porque esses incidentes “não são uma atividade militar”. E a violência continua, enquanto a fiscalização fica entre as brechas.
Na sexta-feira, um foguete do Hezbollah matou dois civis no vilarejo de Majd al-Krum, uma comunidade árabe. Nos comentários sobre as reportagens da mídia, os leitores elogiaram o míssil que matou os moradores que tiveram o azar de ser árabes, e essa resposta se tornou a norma. Comentando abertamente, usando seus nomes completos, os leitores declararam que “duas pessoas [morreram] – isso não é nada”, “não está claro por que a postagem é tão triste”, e muito mais na mesma linha.
É claro que se uma professora árabe tivesse escrito algo remotamente parecido nas mídias sociais, ela teria sido presa e vendada. Os árabes que, em funerais, pediram explicitamente o assassinato foram tratados sumariamente como homens-bomba.
Mas no Israel de hoje, os ministros pedem sem hesitação a limpeza étnica, as pessoas comemoram a morte na internet, os soldados queimam casas e seus amigos se divertem, e um público inteiro prefere abandonar os reféns à tortura desde que consigam um pedaço de terra em Gaza para si.
Dos casamentos de ódio de uma década atrás, agora passamos aos funerais de ódio – e não há o menor indício de investigação, o que talvez sugira que algo incomum possa estar acontecendo. Talvez os terroristas judeus sejam de fato os normais aqui, e as poucas pessoas que estão chocadas sejam as loucas.
*Este é um artigo de Sebastian Ben-Daniel, um acadêmico e escritor israelense frequentemente conhecido como John Brown. Ele foi publicado originalmente na edição em hebraico do Haaretz e foi traduzido pelo Middle East Eye sem alterações editoriais. Ben-Daniel é professor de ciência da computação na Universidade Ben Gurion do Negev, em Israel, e contribui para a revista +972 e o Haaretz, entre outros.
Fonte: Outras Palavras / Usando colete a prova de balas e capacete, o apresentador israelense Danny Kushmaro senta-se sobre escombros em Gaza, instantes antes de detonar explosivos que destruíram um prédio de apartamentos/Foto: Outras Palavras