Um caso no HC de Ribeirão Preto, dois no de São Paulo e vários pelo mundo fazem cientistas investigarem as causas. Respostas podem estar no sequenciamento genético, cultura viral e pesquisa de outros agentes infecciosos
06/08/2020Share on facebookShare on twitterShare on linkedin
Por Rosemeire Talamone e Valéria Dias
Decifrar o novo coronavírus e todas as suas consequências têm sido uma tarefa intensa e árdua para profissionais da saúde e a comunidade científica. Uma delas é saber se existe a possibilidade de reinfecção, uma vez que começam a surgir relatos sobre possíveis ocorrências. O primeiro caso aconteceu em Boston, nos Estados Unidos, conforme publicação do American Journal of Emergency Medicine, em junho.
Pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP investigam o caso de uma técnica de enfermagem que, em maio, apresentou os sintomas da covid-19 (quadro de cefaleia mais intensa que habitual que evoluiu para mal-estar, fraqueza muscular, sensação febril, leve dor de garganta e congestão nasal), desaparecidos em dez dias. Foi realizado um primeiro exame de RT-PCR (exame laboratorial que identifica moléculas do vírus), com material colhido no nariz e na garganta, e o resultado foi negativo. Mas como os sintomas persistiram, repetiram o exame no nono dia, confirmando, então, a presença do novo coronavírus. No décimo dia, os sintomas desapareceram.
Entretanto, 38 dias depois, 27 de junho, a paciente voltou a apresentar mal-estar, mialgia, cefaleia intensa, fadiga, fraqueza, sensação febril, dor de garganta, perda do olfato e diminuição do paladar, diarreia e tosse. Submetida a novo RT-PCR para o vírus SARS-CoV-2, o resultado foi positivo. Nos dois momentos a paciente evoluiu bem, não precisou de internação hospitalar.
Recorrência de Covid-19: cronologia
Cronologia dos eventos clínicos, epidemiológicos e laboratoriais relativos à recorrência de Covid-19 na paciente em questão.
Segundo o professor Fernando Bellissimo Rodrigues, o diagnóstico da covid-19 é baseado em três pilares: sintomas clínicos, exames laboratoriais e epidemiologia (contato com outros infectados), todos afirmativos nesse caso. “Ao que tudo indica, inclusive o exame sorológico, é que a paciente não desenvolveu anticorpos suficientes quando testou positivo em maio”, analisa o professor, que alerta tratar-se de um caso muito raro. Bellissimo afirma que será necessária uma investigação mais profunda para entender como a imunidade se comporta, o que pode contribuir até para o desenvolvimento das vacinas.
Perguntado sobre a possibilidade de resquícios do vírus terem permanecido no organismo da paciente, o professor lembra que, nesses casos, os pacientes não apresentaram sintomas novos, o que não é o caso dessa paciente de Ribeirão Preto. “Nesse caso, se fosse resquício do vírus, pelo que vem sendo relatado de outros casos no mundo, ela não teria novos sintomas, como a anosmia [olfato prejudicado], por exemplo, muito específico dessa doença e que ela não teve no primeiro teste”, diz. O professor lembra que estamos no meio de uma pandemia e ela teve novo contato com indivíduo positivo e, ainda, desenvolveu novos sintomas da doença, portanto, tudo leva a crer se tratar de uma reinfecção.
A possibilidade de que um ou mais dos exames virológicos e sorológicos tenham apresentado resultado falso-positivo também foi aventada. “Parece muito remota, dada a conjunção das evidências. Mas essa constatação traz implicações clínicas e epidemiológicas que precisam ser analisadas com cuidado pelas autoridades em saúde. Esse caso, por exemplo, foi notificado à Vigilância Epidemiológica Municipal, que repassou ao Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado”, informa o professor.
Para o professor Afonso Diniz Costa Passos, da FMRP e coordenador do Núcleo de Vigilância Epidemiológica do Hospital das Clínicas da FMRP, essa é uma doença muito recente e nova, com aprendizado muito lento. “No plano teórico tudo é possível, mas devemos lembrar que a possibilidade dessa ocorrência é extremamente rara, ou teríamos um quadro diferente dessa pandemia no mundo, portanto, não devemos de maneira nenhuma colocar pânico nas pessoas.”
Passos ainda enfatiza que, em epidemiologia, não se produz certezas, “com bons estudos se produz evidências, como a que aconteceu no HC-FMRP”.
Mais dois casos investigados no Hospital das Clínicas de São Paulo
Pesquisadores do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FMUSP) da USP, na capital paulista, também estão investigando dois casos de pessoas diagnosticadas há alguns meses com covid-19 e que agora, ao terem novos sintomas leves associados à doença, foram surpreendidas com o resultado positivo para SARS-CoV-2 ao fazerem um novo teste RT-PCR .
A professora Anna Sara Shafferman Levin, da FMUSP, explicou ao Jornal da USP que a certeza sobre o que está acontecendo virá somente após uma investigação detalhada por meio de sequenciamento do material genético dos pacientes e da cultura em laboratório das amostras do vírus, além de testes que possam detectar a presença de outros agentes infecciosos. Também é preciso acalmar a população, pois geralmente os casos relatados apresentam sintomas leves e ainda não há evidências de que essas pessoas possam ser transmissoras da doença ou que haja algum problema com a imunidade delas.
“A gente tem conversado com as pessoas, e é um fenômeno bem frequente. Muitos que tiveram infecção dois ou três meses atrás, com a covid confirmada via RT-PCR, agora tiveram novos sintomas leves e um novo teste RT-PCR deu positivo”, conta a médica, lembrando que esse é um fenômeno mundial.
Esse quadro, relata Anna Sara, leva a uma série de perguntas: isso significa que é a mesma infecção? Ou a pessoa pegou covid-19 mais uma vez, pois foi exposta ao vírus novamente? Neste último caso, isso significaria que ela não desenvolveu imunidade na primeira infecção? Ou os sintomas que ela apresenta são, na verdade, de influenza, rinovírus ou de qualquer outra infecção que atinja as vias respiratórias, mas o teste continua positivo devido a fragmentos do vírus da infecção passada, visto que o teste pode ficar positivo durante muito tempo? Essas são algumas questões que estão norteando o trabalho dos pesquisadores. E atualmente há mais perguntas que respostas.
De acordo com Anna Sara, o resultado positivo e os sintomas podem ser explicados a partir de algumas hipóteses. A primeira delas é que o teste RT-PCR , por ser muito sensível, pode estar detectando um fragmento do vírus da infecção ocorrida meses atrás. E os sintomas poderiam ser resultado de alguma outra infecção respiratória que não a covid-19. “Neste ano, a predominância é do novo coronavírus, mas é preciso lembrar que outros vírus continuam circulando, como o da influenza ou o rinovírus”, relata. Neste caso, seria interessante recuperar a amostra da infecção anterior por covid-19 e fazer o sequenciamento genético das duas amostras para ver se é o mesmo vírus ou não.
Anna Sara conta que algo muito comum que acontece, principalmente em crianças, é elas apresentarem uma infecção respiratória por vírus e, meses depois, quando já estão bem, um exame positivo detecta a mesma infecção. Mas isso não significa que estejam, naquele momento, com a doença ou mesmo transmitindo. O mesmo poderia estar ocorrendo com essas pessoas que testaram novamente positivo para covid-19.
A pesquisadora levanta ainda uma outra possibilidade: que, de fato, seja o mesmo vírus, e esteja ocorrendo uma recidiva da covid-19. Há também outra hipótese que não pode ser descartada: a pessoa se expôs ao vírus e foi infectada novamente. São casos que levantam dúvidas quanto à existência ou não de imunidade para a covid-19, mas é preciso cautela ao analisar os dados.
Diante de tantas perguntas, é preciso investigar tudo com muita calma. A médica recorda que há relatos semelhantes no Brasil e em vários lugares do mundo e até agora ninguém chegou a conclusão nenhuma. “Ninguém conseguiu provar que houve, de fato, uma reinfecção ou mesmo se há ausência de imunidade [para covid-19] nessas pessoas”, diz.
Talvez tenhamos essas respostas somente após o sequenciamento genético das amostras e da cultura do vírus em laboratório, além dos testes para detectar outros agentes infecciosos. “Essas investigações não são feitas de uma hora para outra. É fácil fazer testes para outros agentes, para outros vírus, são testes relativamente fáceis. Agora, recuperar a amostra do passado, se é que ela existe, e fazer sequenciamento genômico para ver se os vírus são iguais são técnicas mais demoradas, coisas mais complicadas”, aponta a pesquisadora.
Segundo Anna Sara, esses relatos trazem uma repercussão importante para os cientistas, no sentido de trazer respostas para as questões levantadas. Mas não fazem muita diferença para a população, visto que os sintomas relatados pelos pacientes são leves. O que precisa ser enfatizado, ressalta a médica, é que, diante desse quadro, muitas pessoas estão angustiadas, então é preciso manter a calma. Os cientistas estão investigando muito mais para entender o que está acontecendo do que pelos sintomas que as pessoas têm apresentado. “As pessoas ficam com resfriado e decidem fazer o teste de novo porque ficam temerosas, mas os cientistas querem saber o que está acontecendo”, finaliza.
Fonte: Jornal USP