Biólogo comprou a Hilux 0km em abril de 1998 e teve que fazer adaptações na suspensão para poder chegar em lugares remotos do Brasil
Por André Schaun
O Toyota Bandeirante foi o responsável pela fama de carros resistentes e inquebráveis da fabricante japonesa. Em outubro de 2024, tive o prazer de testar a última das 104.621 unidades do veículo produzidas em São Bernardo do Campo (SP), entre 12 de novembro de 1962 e 28 de novembro de 2001. Exatamente um ano depois, estou diante de uma prova viva do legado que o Bandeirante deixou: uma Hilux 1998 com 2,5 milhões de quilômetros rodados e motor original, intacto, que desafia o tempo.
A manhã calma e ensolarada daquela terça-feira, sob o ar fresco da Serra da Cantareira (SP), está longe de ser o cenário comum dessa imortal Hilux nas últimas décadas. A picape sempre foi pensada e usada para o trabalho.
Longas viagens entre São Paulo e Bahia, Piauí, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Santa Catarina ou qualquer outro lugar remoto do Brasil foram a fórmula para acumular uma quilometragem que equivale a 62 voltas no globo terrestre. O autor desse feito impressionante é o biólogo paulista Paulo Martuscelli — Paulão ou Falcon, para os mais chegados.
Falcon comprou essa Hilux SR5 4×4 Cabine Dupla em abril de 1998, em uma concessionária chamada Toyota Tsusho, na zona sul de São Paulo. O motor 2.8 diesel aspirado de quatro cilindros tem 78 cv de potência e 17,7 kgfm de torque, com câmbio manual de cinco marchas e tração 4×4. O desempenho está longe de ser uma das virtudes: o zero a 100 km/h é feito em longos 25,5 segundos e a velocidade máxima é de 133 km/h.
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O ruído a bordo é grande e os engates do câmbio são duros. Sabe o quanto isso importa? Nada! Não foi a pressa que fez essa picape rodar tanto até o odômetro travar: foi a eficiência para chegar até onde chegou. A Hilux foi lançada no Brasil em 1992, importada de Hamura (Japão). A partir de 1997, passou a vir de Zárate (Argentina).
Naquela época, já tinha opções mais potentes e turbinadas, como o 2.8 turbodiesel de 91 cv e o 3.0 turbodiesel de 116 cv. Entretanto, o que o biólogo precisava era de um motor que demandasse a menor manutenção possível, por isso optou pela versão aspirada.
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“Escolhi a Hilux porque era a única que entregava o que eu precisava. Em 1996, trabalhei na Ferrovia Norte-Sul, no Maranhão, e lá só tinha Mitsubishi L200 ou Hilux. Em campo, foi o verdadeiro teste que eu precisava para escolher qual comprar. Depois, fiz trabalhos no Acre — só tinha Land Rover Defender. Avaliando as qualidades, a durabilidade e o custo/benefício de todas, a Hilux era a única que aguentava o tranco, ainda que a L200 fosse mais ágil. Minha necessidade era um veículo para trabalho pesado e que ficasse parado o menor tempo possível”, relembra Paulo.
Depois de tirar a Hilux da concessionária, começou a saga para adaptar a suspensão. A única modificação que ele tinha de fazer era aumentar o aro das rodas, passando de 16 para 33 polegadas, além de deixar a suspensão apta a encarar condições extremas desbravando o Brasil.
O problema é que, na época, a Toyota não tinha nenhum kit pronto para atender sua principal necessidade. Logo, deixar o carro em uma oficina particular para realizar as modificações no melhor estilo “tentativa e erro” foi rotina comum nos primeiros anos, entre uma viagem e outra. Mesmo com as dificuldades, em dois meses já tinha rodado 40 mil km.
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Os mecânicos colocavam alargador no eixo dianteiro, direto na barra de torção, para conseguir adaptar a Hilux para pneus maiores, o que é péssimo para a segurança. A barra de torção é o componente da suspensão responsável por absorver impactos e manter a altura do carro. Os pneus maiores aumentam o peso e o torque nos cubos, rolamentos e braços de suspensão.
Com alargadores, esse esforço é ainda maior. Essa modificação muda a geometria e o centro de gravidade do veículo porque, em vez de o peso ficar distribuído no centro do carro, por causa do motor, fica mais para as laterais, o que força a ponta dos eixos até a quebra. Essa alteração também compromete a resposta da coluna de direção e muda o ângulo de esterço das rodas, o que pode deixar a condução bem perigosa.
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Na traseira, as oficinas removiam os feixes de mola originais e arqueavam o ferro para aumentar o ângulo e levantar a suspensão. Só que a peça original não é feita para sofrer essa alteração. Por isso, com o passar do tempo e os fortes impactos, esses feixes entortados voltavam para a forma original até quebrarem.
“Colocar alargador de eixo é um crime com a engenharia do carro, assim como arquear os feixes de mola. A gente erra por não conhecer. Demorei dez anos para achar um mecânico que conseguiu acertar a geometria correta da Hilux. Ele levantou a carroceria pelo chassi usando bucha de poliuretano e não direto pela barra de torção. Na traseira, coloquei feixes de molas forjados com o ângulo correto, aí a resistência ficou bem maior”, explica o biólogo.
Até o limite
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Seja com a caçamba lotada de plantas no sul da Bahia, seja isolado no meio do mato, em parques ou em áreas de conservação ambiental, Falcon fez sua Hilux 1998 girar o odômetro até o limite. Com quase 1,2 milhão de km rodados, no final dos anos 2000, os cabos de aço da engrenagem que giram o odômetro arrebentaram e pararam de movimentar a peça.
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Mas, então, como ele tem controle da quilometragem? Os pneus Geolandar Yokohama ATS 33 são trocados, em média, após 80 mil ou até 100 mil km rodados. Assim, desde que o odômetro travou, Paulo se organiza pelos registros das trocas dos pneus para calcular a quilometragem aproximada e programar as revisões da Hilux.
E a pilha de papéis é grande. O biólogo brinca que a Hilux só foi lavada em lava-rápido uma vez na vida e conta que o segredo da longevidade está no cuidado mecânico. Trocas de óleo, velas, correia dentada, bomba d’água e componentes essenciais do motor são seguidas à risca. A embreagem foi trocada duas vezes, por desgaste natural, sendo a primeira após 1,3 milhão de km percorridos.
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Os amortecedores especiais são substituídos a cada 100 mil km. O estofamento no interior já foi trocado por inteiro, mas acreditem: o estepe ainda está no mesmo lugar desde 1998 e o escapamento é original. Em razão das condições climáticas enfrentadas nas viagens, a bateria do carro foi alterada de 75 Ah para 90 Ah. A carroceria é cheia de marcas e riscos que só um carro com 2,5 milhões de histórias pode ter.
Em 2010, quando a picape já havia rodado 1,6 milhão de km, o filho de Falcon, Daniel Martuscelli, convenceu o pai a comprar um SW4 1996 com motor V6 3.0 turbodiesel de 152 cv. Desde então, para trabalhos que demandam mais velocidade, o biólogo usa o SUV. Mas quando a missão exige transporte de carga e não há tanta pressa — afinal, a picape não ultrapassa 80 km/h —, a imortal Hilux é convocada até hoje para colocar seus mil quilos de capacidade à prova.
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Em tempos em que quase tudo é feito para durar pouco, essa Toyota Hilux 1998 é quase uma afronta. Não é conforto, velocidade ou tecnologia que ela oferece. É confiança — uma das coisas mais difíceis de consquistar na vida. É saber que, se depender dela, o destino será alcançado. Que venham os 3 milhões de km.
Em tempos em que quase tudo é feito para durar pouco, essa Toyota Hilux 1998 é quase uma afronta. Não é conforto, velocidade ou tecnologia que ela oferece. É confiança — uma das coisas mais difíceis de conquistar na vida. É saber que, se depender dela, o destino será alcançado. Que venham os 3 milhões de km.
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“Foi o lugar mais longe”
A maior distância que Paulo percorreu com a Toyota Hilux foi entre a Serra da Cantareira, na região da Grande São Paulo (SP), até uma cidade chamada São Gonçalo do Gurgueia, no sul do Piauí, a cerca de 2 mil km de distância. Ná época, o biólogo era pesquisador de campo e fazia a coleta de materiais genéticos de araras-azuis.
Foram três dias para ir até o local, duas semanas rodando por lá e três dias para voltar. Ao todo, entre ida e volta, ele dirigiu mais ou menos 6 mil km apenas nessa viagem. Já Santa Catarina é “logo ali”, e Falcon faz o chamado “bate e volta” entre São Paulo e Florianópolis com frequência, rodando cerca de 1,5 mil km entre ida e volta em um só dia.
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Toyota Hilux 1998
| Ficha técnica |
| Motor: Dianteiro, longitudinal, 4 cil. em linha, 2.8, aspirado, diesel |
| Potência: 78 cv a 3.800 rpm |
| Torque: 17,7 kgfm a 2.000 rpm |
| Câmbio: Manual, 4 marchas, tração 4×4 |
| Direção: Hidráulica |
| Suspensão: Indep., braços sobrepostos (diant.) e eixo rígido (tras.) |
| Freios: Discos ventilados (diant.) e tambores (tras.) |
| Pneus: 215/80 R18 |
| Tanque: 65 litros |
| Caçamba: 776 litros |
| Peso: 1.725 kg |
| DIMENSÕES |
| Comprimento: 4,85 m |
| Largura: 1,69 m |
| Altura: 1,80 m |
| Entre-eixos: 2,86 m |
Fonte: Jornal USP / Toyota Hilux 1998 — Foto: Renato Durães/Autoesporte