Capitais começam a suspender campanhas por falta de imunizantes. Brasil aplicou 2,5 doses por 100 habitantes, acima da média da América do Sul, mas bem abaixo dos líderes Israel, Reino Unido e EUA.
Em 17 de janeiro, a imagem da enfermeira Mônica Calazans percorria o país como a primeira pessoa no Brasil a receber a vacina contra a covid-19, minutos após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizar o uso da Coronavac.
Um mês depois, 5,6 milhões de doses foram aplicadas no Brasil, apenas 2,5 por 100 pessoas, e diversas cidades, como Rio de Janeiro, Cuiabá e Salvador, anunciam a suspensão da vacinação por falta de imunizantes. Enquanto isso, a pandemia atinge seu pior momento, com média móvel de mortes diárias acima de mil há 28 dias, e a variante do Amazonas, mais transmissível, chega a outros estados.
O início da vacinação contra a covid-19 foi aguardado com expectativa e conflitos em todo o mundo, devido ao risco à saúde trazido pelo coronavírus e o impacto das medidas de distanciamento social na economia. No Brasil, a tensão foi agravada pela condução política da pandemia, com o presidente Jair Bolsonaro minimizando a gravidade da doença, o Ministério da Saúde distribuindo medicamentos sem efeito contra a covid-19 e a coordenação entre governo federal, estados e municípios na área de saúde se enfraquecendo.
Em 16 de dezembro, quando o país contava mais de 180 mil mortes pela doença e a pressão aumentava, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, perguntou: “Para que essa ansiedade, angústia?”. O início da imunização em nível federal acabou sendo acelerado pelo governador de São Paulo, João Doria, com a parceria entre o Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac para trazer as doses da Coronavac ao Brasil.
Temendo ficar para trás de seu possível adversário nas eleições de 2022, Bolsonaro orientou o Ministério da Saúde a comprar as doses da Coronavac, contrariando sua promessa anterior, e mobilizou o Itamaraty para adquirir emergencialmente 2 milhões de doses prontas da vacina de Oxford-AstraZeneca produzidas na Índia, enquanto a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aposta do governo federal para trazer esse imunizante ao Brasil, não iniciava as suas entregas.
O alívio do início da vacinação, com os braços erguidos e o discurso de esperança feito pela enfermeira Calazans, durou pouco. Logo surgiram novas tensões sobre a importação do ingrediente farmacêutico ativo (IFA)para preparar as vacinas, hoje um insumo escasso e disputado por diversas nações. Tanto no caso da Coronavac como na de Oxford-AstraZeneca, o IFA é produzido na China, país com a qual Bolsonaro mantém uma relação ríspida. Aos poucos, o insumo começou a chegar ao Brasil, ainda em quantidade insuficiente para manter o cronograma de vacinação em todo o país.
A falta de doses provocou uma reação dura dos prefeitos nesta terça-feira (16/02). Em nota, a Confederação Nacional dos Municípios disse ser “necessária, urgente e inevitável” a troca de Pazuello, e a Frente Nacional dos Prefeitos atribuiu a escassez de vacinas a “sucessivos equívocos do governo federal na coordenação do enfrentamento à covid-19”.
Performance comparada
O ritmo lento de vacinação contra a covid-19 não é um problema exclusivo do Brasil, pois os produtores não conseguem atender à demanda mundial. São poucos os casos de sucesso, como Israel, que já administrou 76 doses por 100 habitantes, Reino Unido, com 23 doses, e mesmo os Estados Unidos, com 16 doses pelo mesmo critério. Na União Europeia, que ministrou até o momento 5 doses por 100 habitantes, a Comissão Europeia tem sofrido críticas contundentes pela velocidade da imunização e, por sua vez, passou a responsabilizar as fabricantes por atrasos.
O desempenho do Brasil, de 2,5 doses por 100 habitantes, é superior à média dos países da América do Sul, onde foram aplicadas até o momento 1,8 doses por 100 habitantes. A Argentina, que começou a imunização antes, em 29 de dezembro, com a russa Sputnik V, aplicou 1,35 dose por 100 habitantes. E o México, na América Central, aplicou 0,6 dose por 100 habitantes, uma das piores marcas da região. Os dados são compilados pela plataforma Our World in Data, organizada por pesquisadores da Universidade de Oxford, e vão até o dia 15 de fevereiro.
A exceção entre os países da América Latina é o Chile, que aplicou 11,2 doses por 100 habitantes, graças à chegada de um lote da Coronavac em fevereiro. Tanto a Argentina como o México e o Chile enfrentaram atrasos nas entregas de vacinas contratadas de fornecedores variados, incluindo Pfizer-Biontech, Oxford-AstraZeneca e Sputnik V.
Mesmo assim, o Brasil poderia estar hoje “muito mais à frente” no ritmo de vacinação, não fossem alguns obstáculos nesse processo, segundo a especialista em saúde pública Elize Massard da Fonseca, professora da FGV. Ela diz que o país é reconhecido por sua capacidade de executar grandes campanhas de imunização e era “esperado” que tivesse um desempenho melhor que Argentina e México.
Entre os problemas que atrasaram a vacinação no país, ela menciona a descoordenação entre governo federal, estados e municípios, que atrasaram a compra da Coronavac e atrapalham a distribuição das doses, embates diplomáticos entre o governo Bolsonaro e a China, que teriam prejudicado o acesso ao IFA com mais rapidez, e a falta de um acordo em nível federal que incluísse a transferência de tecnologia para produção local da vacina de Oxford-AstraZeneca já em dezembro, mesmo que para uma empresa privada. O acordo em vigor prevê a transferência da tecnologia para a Fiocruz, mas somente no segundo semestre do ano.
Apesar de reconhecer que o Brasil poderia estar melhor no ritmo de vacinação, Fonseca afirma ser inadequado comparar a performance do país com os Estados Unidos ou com a União Europeia, que tinham muitos mais recursos e instrumentos para investir, com antecedência, em diversas vacinas quando ainda não se sabia se elas seriam eficazes ou não. Da mesma forma, ela diz ser problemático usar o Chile como base de comparação, que tem uma população onze vezes menor que a do Brasil.
Mais vacinas, outra estratégia
O Brasil não tem tantos recursos como os países ricos, mas deveria ter insistindo no ano passado em negociações com mais produtores e precisa acelerar essa diversificação de fornecedores para evitar mais mortes, diz a vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Isabella Ballalai.
Ela afirma que as parcerias realizadas pela Fiocruz e pelo Butantan foram acertadas, porém o país “falhou” ao não ter imaginado que a chegada das doses iria demorar. Em agosto, a Pfizer ofereceu ao governo brasileiro 70 milhões de doses, com entrega a partir de dezembro, mas não houve interesse para a compra, entre outros motivos porque o laboratório exigia ser isento de responsabilidade por eventos adversos.
“O Brasil desconsiderou muitas possibilidades de negociações porque entendeu que estava bem posicionado. Mas ainda precisamos dessas vacinas, e estamos demorando muito. Estamos em negociação para comprar a Sputnik, a vacina da [indiana] Bharat, com a Pfizer, com a Jansen, mas ainda não tem nada de concreto”, diz. Para Ballalai, o país deveria fechar novos acordos para acelerar a vacinação e reduzir também o risco de circulação de novas variantes do vírus.
O virologista Fernando Spilki, professor da Feevale e coordenador da Rede Corona-ômica, que faz o sequenciamento genético das variantes do coronavírus, também salienta que o atual ritmo de vacinação é muito lento em relação aos desafios do país para enfrentar a pandemia.
“Não estamos numa velocidade de vacinação que seria ideal para o bloqueio de variantes. A isso se soma o Carnaval, quando, por mais que tenha sido proibido, houve aglomerações, a volta às aulas e a nova variante de Manaus”, diz. Para ele, o Brasil deveria ter adotado negociações mais agressivas com os produtores de vacina com antecedência, e tentado transferir a tecnologia para produção local com mais rapidez.
Spilki defende uma alteração na estratégia de vacinação no país, que teria dificuldades políticas de implementação. Em vez de distribuir as doses de forma proporcional à população, ele sugere priorizar áreas onde o descontrole da pandemia é maior, inclusive por causa das variantes, para fazer “cordões de vacinação”.
Regras variadas entre municípios
Outro problema da fase inicial de vacinação no Brasil foi a adoção de regras diferentes entre os municípios para determinar quais trabalhadores do setor de saúde seriam considerados no grupo prioritário para receber a vacina, diz Fonseca, da FGV.
O primeiro planejamento do Ministério da Saúde, apesar de recomendar que o imunizante fosse aplicado prioritariamente aos trabalhadores da saúde que estivessem na linha de frente contra a covid-19, colocava todos esse profissionais no grupo prioritário, deixando brechas para que cada município escolhesse outros critérios, incluindo, por exemplo, pessoas que não trabalham com doentes ou aposentados.
Um dos municípios que adotou critérios mais amplos para a vacinação dos trabalhadores da saúde foi o Rio de Janeiro, que ofereceu as doses a profissionais com pelo menos 60 anos, incluindo psicólogos, professores de educação física e veterinários. Na segunda-feira, o Rio anunciou que terá de interromper sua vacinaçãopor falta de doses, quando ainda estava imunizando seus moradores com 83 anos ou mais.
“Temos profissionais que não estão na linha de frente já vacinados, enquanto falta para a população com maior risco de morrer, os mais idosos”, diz Fonseca. Um novo lote de vacinas Coronavac deve chegar ao Rio na próxima semana.
Ballalai, da SBIm, também diz que a variação das prioridades entre os municípios provocou confusão e dúvida na população. Na semana passada, o Ministério da Saúde determinou que os profissionais da saúde vacinados nesta primeira fase fossem os da linha de frente de atendimento à covid-19, mas já era tarde, segundo ela. “Já tinham aberto o leque”, diz.
Fonte: DW