Ministro tenta provar que não demorou a agir na crise de Manaus, enquanto investigação avança com anuência do STF e senadores cobram explicações. Funcionários reclamam que estão sendo enviados à cidade sem missão definida
BEATRIZ JUCÁSão Paulo – 15 FEV 2021 – 21:10 BRT
Quase um ano depois da confirmação de seu primeiro caso de covid-19, o Brasil se vê diante de um Ministério da Saúde imerso em uma longa lista de desgastes. O cerco contra as ações do ministro Eduardo Pazuello se fechou ainda mais nesta segunda-feira, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski autorizou que a Polícia Federal realize diligências para apurar as ações do mandatário durante o colapso da saúde do Amazonas, quando faltou oxigênio para os doentes graves. Entre as medidas autorizadas estão o acesso à troca de emails institucionais envolvendo o ministério e as secretarias estadual e de Manaus sobre os problemas, novos depoimentos da fornecedora dos cilindros, a White Martins, e o levantamento de gastos de aquisição e distribuição de cloroquina, hidroxicloroquina e de testes para detectar o coronavírus. Lewandowski determinou ainda a identificação e o depoimento dos desenvolvedores do aplicativo TrateCOV, que, conforme relatou reportagem do EL PAÍS, indicava o uso da cloroquina para qualquer tipo de paciente que acessava a planaforma.
O grave colapso do sistema de saúde de Manaus ―onde pacientes com covid-19 morreram asfixiados― e a abertura do inquérito de investigação na Polícia Federal para apurar se houve omissão de Pazuello elevaram a pressão sobre uma pasta já marcada por controvérsias no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus. Enquanto o ministro da pasta mergulha em um malabarismo retórico para agora negar medidas como, por exemplo o estímulo ao tratamento precoce a partir do uso de medicações sem eficácia contra a doença e tenta convencer que não demorou a negociar vacinas, um novo elemento tem injetado mais pressão ao cenário: a possibilidade de abertura de uma CPI no Senado. O clima de tensão vem repercutindo internamente no trabalho de técnicos da pasta, que criticam “missões atabalhoadas” para Estados do Norte, vistas por eles como uma estratégia de defesa para mostrar ações proativas diante das investigações. Nos bastidores políticos de Brasília, a sensação é a de que, por enquanto, as explicações dadas por Pazuello na semana passada ao Senado não foram convincentes o suficiente. O Planalto ainda trabalha para impedir a CPI.
Na última quinta-feira (12), Pazuello foi participou de uma sessão organizada por senadores governistas para dar a ele a chance de ser ouvido antes da decisão sobre a instalação da possível CPI. O ministro abraçou a missão. Chegou a comparar as derrotas da Alemanha nas duas grandes guerras mundiais para pedir aos senadores que não abrissem uma nova frente de combate à pandemia ―a política― e se ativessem a uma guerra técnica conjunta para enfrentar o vírus. Argumentou que um embate político neste momento poderia desarticular a estratégia do Governo. “Queria fazer o meu alerta: a Alemanha perdeu a guerra duas vezes porque ela abriu a frente russa. Todo mundo avisou ao ditador que não devia abrir a frente russa, e ele abriu. Não há como manter duas frentes”, afirmou o ministro. “Se nós entrarmos em uma nova frente nesta guerra, que é a frente política, nós vamos ficar fixados. Se fixarmos a tropa que está no combate, vai ser mais difícil ganhar a guerra.”
Para se defender de uma suposta demora nas ações para socorrer Manaus, Pazuello disse que após ouvir relatos de “gente se contagiando mais que o normal” feitos por amigos e familiares da cidade, reuniu sua equipe ainda em dezembro. Determinou a transferência de recursos ao Estado e decidiu enviar uma equipe técnica para analisar a situação no local. Mas o grupo, chefiado pela Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, chegou em Manaus apenas dias depois, em 3 de janeiro. A missão produziu um documento da pasta que reconhecia a “possibilidade iminente de colapso do sistema de saúde, em 10 dias”. Mas, segundo Pazuello, não houve nenhum alerta específico sobre um colapso de oxigênio. No dia 14 de janeiro, hospitais da cidade colapsaram e faltou até este insumo básico. Pessoas morreram asfixiadas.
Conforme contou Pazuello aos senadores, o problema de oxigênio começou a ser apresentado apenas em 7 de janeiro, quando recebeu uma ligação da Secretaria da Saúde pedindo ajuda para o transporte de oxigênio de Belém a Manaus. Um relatório de sua equipe dois dias depois apontou, conforme o ministro, que o foco de uma reunião no Estado havia mudado pelo relato de colapso dos hospitais e problemas técnicos na rede de oxigênio. Segundo Pazuello, técnicos afirmaram que o desabastecimento resultava de “problema na rede de gás do município” e de “deficiência na gestão dos hospitais”. “Rede de gases são os tubos de gases e não o oxigênio que vai dentro. Pressurização entre o município e o Estado é regulação entre um e outro.” E argumentou que só teria responsabilidade no colapso de Manaus se houvesse faltado recursos para a compra, mas não pelo desabastecimento.
“Os fatos relatados puros e secos indicam deficiência na gestão dos hospitais por colapso e dificuldades técnicas em redes de gases. Em momento algum fala sobre falta de oxigênio, colapso de oxigênio ou previsão de falta de oxigênio”, afirmou o ministro. Ele defendeu que, a partir do momento em que ficou clara a dificuldade de abastecimento do insumo hospitalar, agiu com apoio logístico para o envio de cilindros, requisitou usinas de produção e organizou a transferência de pacientes para hospitais federais de outros Estados, bem como abriu mais leitos. Segundo ele, a estratégia agora é fabricar oxigênio no Amazonas e em outros Estados do Norte que enfrentam problemas de abastecimento do insumo. A tentativa de explicar o colapso, no entanto, não parece ter arrefecido o clima no Senado, embora o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, esteja “protelando” a abertura da CPI, segundo um senador ouvido pelo EL PAÍS. Em entrevista à imprensa, ele disse que agora conversará com lideranças sobre a pertinência de instalá-la neste momento.
Pressão interna na atuação do Ministério
As críticas que já vinham sendo feitas às ações do Ministério da Saúde no combate à pandemia ganharam mais força a partir do colapso de Manaus e impactaram internamente nos trabalhos da pasta. Contribuiu para esta pressão a publicação de um documento assinado por Mayra Pinheiro, secretária que liderou a primeira missão de visita ao Estado, que contradiz o próprio ministro quando ele diz que não recomenda medicamentos sem eficácia comprovada para a covid-19. Em ofício enviado à Secretaria da Saúde de Manaus, ela dizia ser “inadmissível” a não-utilização de medicações como o antimalárico cloroquina e o antiparasitário ivermectina para controlar a pandemia em Manaus. A exposição do documento pela imprensa e a investigação sobre a atuação da pasta elevaram a pressão sobre outros secretários e diretores, responsáveis por assinar os documentos que oficializam ações e orientações da pasta.
Segundo funcionários do ministério ouvidos pelo EL PAÍS na condição de anonimato por medo de represálias, o nível de cobrança às equipes técnicas aumentou desde a investigação pedida pela PGR, especialmente aos que trabalham com o Centro de Operações de Emergência (COE). “Relatórios que tragam informações comprometedoras do dia a dia geram polêmica. Há um óbvio tensionamento no ar para que o ministro consiga justificar no inquérito que ele tomou as decisões que deveria. Está usando a estrutura do ministério de forma atabalhoada para dar conta de construir alguma justificativa plausível”, diz um funcionário que atua há mais de 10 anos na pasta.
Pazuello intensificou as viagens a Manaus desde a crise sanitária e a abertura das investigações. Um dia após a sabatina no Congresso ―onde alguns senadores avaliam que ele não conseguiu sanar dúvidas e convencê-los de sua atuação proativa―, ele anunciou que embarcaria outra vez para a capital do Amazonas para tratar da crise. Nas últimas semanas, o ministério também tem ampliado o envio de técnicos do Ministério da Saúde para apoiar gestores locais. Mas funcionários da pasta contam que estas viagens têm sido determinadas sem missões claras e coordenadas, como normalmente ocorria.
Um deles contou que técnicos estão sendo convocados para viajarem e só então verem com os gestores locais como poderiam ajudar no enfrentamento à crise. “Não tem um planejamento prévio do que se vai fazer lá. Uma colega enfermeira que trabalha com gestão contou que foi perguntada no Amazonas se ela poderia ajudar no hospital”, diz. Outro funcionário, que foi convocado para viajar, disse que o clima internamente já era tenso, mas piorou a partir da investigação. “A polêmica em relação a estas viagens é que foram decorrentes do inquérito. As viagens não têm plano. Servidores e até bolsistas são escalados de um dia pro outro. Há uma exigência equivocada de uma participação de pessoas de cada secretaria independentemente se têm relação com o problema a ser resolvido”, critica. Ele argumenta ainda que técnicos não estão preparados para resolver o problema de uma hora para outra e que as decisões estratégicas partem dos dirigentes. “É desproporcional para a responsabilidade de um técnico”, acrescenta.
Em meio à crise, as coletivas técnicas da pasta, que já vinham sendo espaçadas no ano passado, passaram a ser marcadas por um amplo hiato. A última aconteceu em 13 de janeiro, mesmo com uma nova variante do vírus potencialmente mais transmissível se espalhando pelo país. É neste momento que a pasta apresenta suas análises epidemiológicas de como a pandemia avança pelo Brasil. Geralmente, os encontros eram conduzidos pelos secretários, já que a frequência de Pazuello sempre foi pequena.
Fonte: El País