Artigo de autoria do economista e professor Cleiton Silva de Jesus
Cleiton silva de jesus*
O novo arcabouço fiscal, apresentado ao público no último 30 de março, foi desenhado para que, sob condições normais de crescimento econômico, a despesa do governo cresça ao longo do tempo em uma velocidade menor que a receita líquida de transferências para Estados e municípios. O parâmetro de proporcionalidade escolhido foi 0,7, ou seja, a taxa de crescimento da despesa de determinado ano, descontada da inflação, deve ser igual a 70% da taxa de crescimento da receita do período anterior, também descontada da inflação. A fim de evitar que a despesa cresça muito nos períodos de forte expansão da atividade econômica (que coincidem com os períodos de alto crescimento da arrecadação) e que a despesa caia nos períodos de recessão (que coincidem com os períodos de queda na arrecadação), a regra também estipula um piso e um teto para a taxa de crescimento real da despesa governamental. O piso escolhido foi 0,6% ao ano, que é aproximadamente igual à taxa de crescimento anual da população brasileira, e o teto foi 2,5% ao ano, que é igual a taxa média de crescimento real da despesa entre 2011 e 2022. A existência de um teto e de um piso para a taxa de crescimento da despesa governamental arrefece, mas não necessariamente elimina, o caráter pró-cíclico da política fiscal brasileira. Minimizar a pró-ciclicalidade da política fiscal é um aspecto positivo da regra proposta.
Há outros detalhes na regra que envolve algumas despesas específicas e que vamos desconsiderar nesta análise, mas algumas implicações de médio prazo do novo arcabouço fiscal que parecem claras são as seguintes: i) a despesa governamental deve crescer sempre acima da inflação; ii) a despesa per capita tende a crescer; iii) a despesa como proporção do PIB tende a cair e iv) o saldo primário do governo tende a melhorar. O crescimento real e per capita da despesa governamental aumenta a viabilidade da oferta de serviços públicos e da assistência social para uma população cada vez mais envelhecida e, ainda, ajuda a consolidar o nosso cambaleado estado de bem-estar social. A queda da participação dos gastos governamentais no PIB juntamente com a melhora gradativa do saldo fiscal primário minimiza tanto os riscos de uma trajetória explosiva para a dívida pública quanto de uma crise inflacionária. O novo arcabouço fiscal, portanto, foi desenhado também para compatibilizar, dadas as restrições, a “responsabilidade fiscal” e a “responsabilidade social”.
Neste ano o saldo primário do governo será deficitário, isto é, a despesa governamental sem contabilizar os juros da dívida será maior que a receita líquida. A expansão dos gastos públicos em 2023 será significativa, posto que a Proposta de Emenda Constitucional da Transição (PEC 32/2022) elevou o teto dos gastos e autorizou despesas fora do limite. Partindo deste ponto, a nova regra fiscal também estipula uma meta ambiciosa para a trajetória do saldo primário do governo para o período 2023-2026. Esta meta começa com um déficit de 0,5% do PIB em 2023 e diminui gradativamente meio ponto percentual do PIB a cada ano, sempre com intervalo de tolerância de 0,25 ponto percentual do PIB para mais ou para menos. Estabeleceu-se uma espécie de punição para o caso de descumprimento da meta de saldo primário do exercício anterior: a taxa de crescimento da despesa do ano corrente passará a ser de 50% (e não mais 70%) da taxa de crescimento da receita passada, até o saldo primário alcançar o intervalo da meta pré-estabelecida para o ano. A imposição deste tipo de punição serve para reforçar o compromisso da autoridade fiscal com o equilíbrio intertemporal das contas públicas.
Embora a regra para o crescimento da despesa proposta garanta a melhora do saldo primário do governo no médio prazo, ela não garante que a meta para a diferença entre receitas e despesas seja alcançada em cada ano até 2026. Para que a trajetória do saldo primário seja compatível com a meta, saindo de um déficit primário neste ano e alcançando um superávit primário de 1% do PIB em 2026, é preciso que haja uma combinação benigna de crescimento econômico e crescimento da arrecadação. Não é algo fácil. Como o PIB não pode crescer muito acima do seu potencial por sucessivos anos, o alcance das metas de saldo primário está condicionado a um aumento recorrente da receita. Embora o Ministro da Fazenda tenha enfatizado que cobrará impostos “de quem não paga”, que melhorará o “sistema de tributos” e que vai trabalhar no “combate à sonegação” e na “recomposição da base fiscal”, ele precisa detalhar para a sociedade os detalhes do seu plano.
Através de técnicas de simulação é possível estimar qual é a expectativa de crescimento da receita líquida compatível com alcance do centro da meta de saldo fiscal primário dos próximos anos. Esta simulação foi feita assumindo que a meta será alcançada em 2023, o que é bastante incerto, e que o PIB crescerá de acordo com as projeções da Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda: 2,34% em 2024, 2,76% em 2025 e 2,42% em 2026. Ressalta-se que estas projeções para o crescimento do PIB são mais otimistas que as projeções dos economistas de mercado e do próprio Banco Central. Ainda assim, considerando estas hipóteses, as nossas estimativas sugerem que a receita líquida do governo deverá crescer entre 5% e 5,2% ao ano a partir de 2024 para que a trajetória do saldo fiscal primário ande em linha com o centro meta pretendida pelo Ministério da Fazenda. Este é um esforço de arrecadação da ordem de R$ 100 a 120 bilhões por ano em valores atuais, ou um aumento na receita líquida de aproximadamente 1 ponto percentual do PIB entre 2024 e 2026. Alcançar o centro da meta de saldo fiscal pretendida pelo Ministério da Fazenda exigirá muito esforço, além de habilidade política. Ademais, caso não haja um esforço adicional de arrecadação e a receita cresça em linha com o PIB a partir de 2024, de modo que a razão entre essas variáveis permaneça constante, o saldo fiscal primário do governo ficaria longe da banda inferior das metas entre 2024-2026, mesmo com a punição prevista. Neste caso, o superávit primário só seria alcançado mais tarde, entre 2026 e 2027, e não mais em 2025.
O superávit primário é uma das variáveis levadas em conta quando se fala em estabilização da dívida pública como proporção do PIB. As outras duas variáveis é o crescimento do próprio PIB e a taxa real de juros. Quanto mais alta for o nível de endividamento e quanto maior for a diferença entre a taxa real de juros e o crescimento do PIB, maior também é o superávit fiscal primário requerido para estabilizar a dívida pública em certo patamar. A nossa leitura é que o novo arcabouço fiscal possui também um objetivo auxiliar: sinalizar para os agentes econômicos que a trajetória da dívida pública não crescerá para sempre. De fato, em um dos cenários apresentados pelo Ministério da Fazenda nota-se que a razão entre a dívida bruta e o PIB parte de 75,1%, em 2023, e termina 2026 no patamar de 77,3%. Neste cenário a dívida cresce em todo o horizonte de quatro anos, mas ela cresce a taxas cada vez menores. Disso se segue que, caso a geração de superávits primários seja mantida recorrentemente após 2026, a dívida se estabilizará em algum momento após 2027. Não seria o fim do mundo, é verdade, mas cabe questionar se este cenário é factível com parâmetros macroeconômicos razoáveis.
Também por meio de simulação é possível estimar aproximadamente a trajetória da taxa real de juros necessária para que o cenário da dívida do Ministério da Fazenda acima citado se verifique. Para tanto, assumiu-se que o centro da meta de saldo primário é sempre alcançado, que o crescimento do PIB é igual ao projetado pela SPE e que os entes subnacionais mais estatais devam contribuir com 0,3% do PIB no superávit primário do setor público consolidado em todos os anos entre 2024-2026. A taxa real de juros implícita neste cenário em que a dívida pública não se estabiliza até 2026 é de 4,46%, 4,54% e 4,60% em 2024, 2025 e 2026, respectivamente. Estas são taxas bem menores do que as vigentes no momento. É fato que as taxas reais de juros (e o custo médio da dívida) tendem a cair caso o compromisso com o equilíbrio fiscal seja interpretado como crível, mas é difícil afirmar se estas taxas caminharão sustentadamente para um nível abaixo de 4,5% ao ano. Levando isto em conta, o resultado desta análise implica que pelo menos um dos três movimentos benignos deve ocorrer, sem prejudicar a evolução das demais variáveis, para que a dívida se estabilize até 2026: i) o PIB crescer bem mais do que as projeções; ii) a sequência de saldo primário surpreender positivamente; iii) a taxa real de juros se deslocar para um patamar significativamente mais baixo. Estes movimentos não parecem tão plausíveis.
A despeito da dificuldade em se vislumbrar um cenário propício para o alcance integral das metas fiscais ao longo dos próximos quatro anos, inclusive porque as metas são deliberadamente ousadas, a nossa avaliação do novo arcabouço fiscal é positiva. A sinalização de que o equilíbrio fiscal será perseguido no médio prazo sem negligenciar a responsabilidade social é desejável e bem-vinda. Os preços dos ativos responderão na direção esperada à medida em que os agentes econômicos incorporarem a percepção de que realmente haverá uma melhora na situação fiscal do país na velocidade que é politicamente factível. Parece seguro afirmar que maior previsibilidade do cenário fiscal pavimenta o caminho para a taxa de juros cair (sem pressionar a inflação) e para a economia crescer sem muita volatilidade, gerando o círculo virtuoso. A comunicação assertiva das autoridades econômicas e políticas é essencial neste processo, assim como a divulgação detalhada dos parâmetros utilizados para o estabelecimento das ambiciosas metas fiscais. Nisso elas têm deixado a desejar.
*Doutor em Economia pela UFPR e Professor da UEFS