Uma epopeia brasileira: cem anos da Coluna Prestes

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Quem conta esta história é Anita Leocádia Prestes, filha de Luis Carlos Prestes e Olga Benário

O ano de 2024 marca os cem anos de história da a Coluna Prestes, considerada uma das maiores marchas revolucionárias da história da humanidade. Foi uma verdadeira epopeia, uma marcha heroica que, partindo do Rio Grande do Sul em outubro de 1924, passou por 13 estados brasileiros, travou 53 combates e derrotou 18 generais do Exército brasileiro durante dois anos e três meses. Eram cerca de 1,5 mil homens e 50 mulheres comandados por jovens oficiais militares. A marcha foi de 25 mil quilômetros no sertão do Brasil, finalmente internando-se na Bolívia em 1927.

Quem conta com orgulho esta história é Anita Leocádia Prestes, filha do comandante Luis Carlos Prestes e sua mulher Olga Benário. Ela publicou sua tese de doutorado A Coluna Prestes, que está na 5ª edição pela editora Boitempo. Depois, publicou um resumo para jovens estudantes – Uma epopeia Brasileira, a Coluna Prestes – pela editora Expressão Popular. Aos 88 anos, Anita quer resgatar a verdadeira história da coluna comandada por seu pai iniciada há cem anos.

“A Coluna Prestes, que começou em 1924, aí no Rio Grande, que é uma das questões que eu estou procurando resgatar, porque existe muita falsificação e o anticomunismo que leva a falsificação contra a coluna, na medida que o Prestes se tornou comunista. Na virada dos anos 1930, isso foi um escândalo na época, ele passou a ser saco de pancada, combatido o tempo todo, até pelos ex-colegas da coluna, vários comandantes da coluna que ficaram furiosos com ele”, afirma a pesquisadora.

Segundo ela, isso levou a que, hoje em dia ainda fervilhem os casos de mentiras contra a coluna. “Quero aproveitar agora o centenário para justamente falar a respeito e esclarecer as pessoas, principalmente os jovens, que nos livros escolares, na literatura existente, tomam conhecimento de uma história muito falsificada. A Coluna Prestes terminou em fevereiro de 1927, emigrando para a Bolívia, sem ser derrotada, nunca sofreu nenhuma derrota, ao contrário, derrotou 18 generais do Exército brasileiro durante a marcha. Todos os combates que a coluna participou, ela saiu vitoriosa, porque aí a guerra de movimento teve muita importância.”

Anita recorda que enquanto a coluna estava transcorrendo, o Brasil era governado por Artur Bernardes (1922-1926), que mantinha censura à imprensa e estado de sítio. “Isso não permitiu que se tivesse informações verídicas sobre a coluna. Os jornais do governo, a imprensa sob censura, o tempo todo procuravam dizer que os rebeldes estavam derrotados, que tinham sido mortos, que não existia mais a coluna.”

Quando a coluna terminou, já no governo Washington Luiz, começou a haver uma certa abertura, continua Anita. “Pelo menos foi suspensa a censura à imprensa e o estado de sítio. Então, houve uma verdadeira enxurrada de jornalistas da imprensa da época, principalmente a imprensa do Assis Chateaubriand, indo à Bolívia para entrevistar os comandantes da coluna, os soldados. Tanto que se a gente pega os jornais da época, do início de 1927, tem reportagens enormes, com fotografias e tudo.”

Conforme relatou Anita ao Brasil de Fato RS, na campanha pela sucessão presidencial, a aliança liberal, das oligarquias dissidentes Minas, Rio Grande e Paraíba, apostavam justamente no prestígio do Prestes e da coluna para, enfim, se fortalecer, ganhar mais adeptos. “A campanha da Aliança Liberal, em 1929, 1930, foi feita sobre as bandeiras da coluna e do nome do Prestes. Embora o Prestes protestasse lá de Buenos Aires, mandava telegrama, protestava, mas as oligarquias dissidentes difundiam que ele estava apoiando a Aliança Liberal, o que não era verdade.”

O Cavaleiro da Esperança


O Cavaleiro da Esperança / Foto: Brasil de Fato

A partir de 1927, 1928, Prestes era o político de maior prestígio no Brasil, inclusive cotado para ser presidente da República. Então, surge o epíteto de Cavaleiro da Esperança. “Muita gente pensa que foi um livro do Jorge Amado, mas não foi. Foi bem antes. O Jorge Amado utilizou esse epíteto que surgiu em janeiro de 1928, 3 de janeiro de 1928, que é o aniversário do Prestes, quando ele fez justamente 30 anos. Então, nesse 3 de janeiro de 1928, saiu aqui no Rio de Janeiro um número de um jornal que se chamava A Esquerda. O Astrogildo Pereira, do Partido Comunista, que tinha estado na Bolívia com o Prestes, publica um artigo extenso sobre o Prestes e o jornal lança esse codinome de Cavaleiros da Esperança.”

Conforme Anita, este é um momento de grande entusiasmo em torno da coluna e da figura do Prestes, que depois, quando ele lança o Manifesto de 1930, aderindo à política do PCB, da luta por uma revolução agrária e anti-imperialista, se torna um renegado para as classes dominantes no Brasil. “Essa era a palavra de ordem que ele adota e aí é abominado, criticado violentamente, inclusive pelos ex-colegas dele, tenentes como Juarez Tavares, Oswaldo Cordeiro de Farias, ficam todos contra o Prestes. E passam, aí você vê a história da coluna, que eles mais ou menos cultivavam até 1930… A partir daí eles procuram até silenciar a história da coluna, não falar, porque para falar na coluna e não falar no Prestes era difícil. Então eles preferem silenciar ou falsificar também.”

Um movimento liberal

Anita conta que o tenentismo era um movimento liberal e que suas palavras de ordem eram a favor do voto secreto, contra a corrupção da velha Republica, pela liberdade, enfim palavras de ordem que não tocavam a população rural da época. Por isso a marcha manteve sempre o mesmo número de combatentes. Seu percurso foi muito maior do que o da grande marcha do povo chinês, liderada por Mao Tse Tung. Mao andou na frente de um milhão de camponeses por 9 mil quilômetros enquanto Prestes encerrou sua marcha com menos combatentes do que no início embora tenha percorrido 25 mil quilômetros.

Durante a coluna foi impresso O Libertador, órgão revolucionário que era o jornal da coluna. Saíram cinco números em São Luís Gonzaga, no Rio Grande do Sul, quando começou a organização da coluna. E depois mais outros quatro pelo Brasil afora.

“Principalmente no Nordeste, no Maranhão, no Piauí, foram editados outros números. Quando eles paravam alguns dias, porque a coluna não podia parar muito tempo, porque era guerra de movimento, não permitia isso, porque eles não tinham armamento nem condições para enfrentar as tropas governistas diretamente. Então eles se esgueiravam o tempo todo, justamente jogavam uma tropa governista contra outra tropa governista, várias vezes aconteceu isso. Mas quando eles paravam em algum lugar, alguns dias, sendo possível, eles editavam o jornal. Tanto que no meu livro, eu apresento fotos de alguns números do jornal.”

Não houve desistências


Sentado, Luis Carlos Prestes é o quarto da esquerda para a direita / Divulgação

Mais ou menos um quarto dos combatentes morreram. Eles estavam embrenhados no meio do mato. Morreram de doença que não tinha tratamento ou de ferimento. “É interessante que deserções, houve poucas. Houve um pouco no início aqueles maragatos. Desistiram alguns. Quando eles viram que tinha que sair do Rio Grande e perder os cavalos, muitos maragatos desistiram. Mas depois, mais ou menos, se mantinha aquele mesmo grupo. Isso da parte do Rio Grande”, conta Anita.

Já da coluna que saiu de São Paulo, foi diferente, continua ela. “Na Foz do Iguaçu, eles sofreram uma derrota muito séria. Pouca gente fala nisso. Na realidade, o que aconteceu ali foi uma adesão de uma parte do pessoal de São Paulo, liderado, sem dúvida, pelo Miguel Costa, que aderiram à coluna Prestes que saiu do Rio Grande. Foi uma marcha difícil, perseguidos o tempo todo pelas tropas legalistas, derrotando as tropas legalistas, mas chegaram vitoriosos lá em Foz do Iguaçu. E disseram que não iam desistir, porque os paulistas estavam querendo desistir. Essa que é a verdade.”

Segundo Anita, foi uma coluna na sua maioria de praças, tinha apenas 12 oficiais. “O resto eram sargentos, soldados, cabos, tinha também população civil. Isso que era o grosso da coluna. Saiu do Rio Grande do Sul e tiveram poucas adesões pelo caminho. Algumas, mas poucas. Principalmente no Nordeste. Porque o discurso da coluna não mobilizava a população rural de jeito nenhum. Nem eles estavam também interessados com a visão dos tenentes, que eram muito militares. O próprio Prestes dizia, nós éramos muito militares na época. Achavam isso, que eles iam fazer a revolução para o bem do povo.”

Participaram também cerca de 50 mulheres, umas 30 do Rio Grande do Sul e umas 20 de São Paulo. “Eram mulheres simples, do povo, tirando lá de São Paulo, que tinha duas enfermeiras da Força Pública de São Paulo. Eram mulheres simples, geralmente companheiras dos soldados.”

Anita afirma que eles contribuíram para “desmascarar aquele exército que estava totalmente bichado, desmascarar aquela política do interior, eleição de bico de pena”. A principal palavra de ordem deles era voto secreto. Tudo isso contribuiu para solapar o poder oligárquico que governava o Brasil na Primeira República. E o próprio avanço do capitalismo também erodia, a crise era geral. “Principalmente a partir de 1922, a República Velha estava em crise. Crise econômica, crise militar, crise política e cultural. Vários aspectos dessa crise. Em particular, a coluna que foi o momento culminante do tenentismo, que durou mais, teve maior repercussão, contribuiu para que realmente em 1930 as oligarquias dissidentes conseguissem derrubar aquela chamada República Velha.”

Para ela, o grande ensinamento da coluna é a força do povo brasileiro. “Você vê pessoas simples, grande parte delas analfabetas, lutam com grande garra e grande entusiasmo quando estão empolgados por uma ideia e têm lideranças nas quais acreditam. E isso acontecia na coluna. Eles estavam convencidos. Lutavam pela liberdade e conquistar a liberdade era derrubar o Artur Bernardes, que era considerado um déspota. Então, derrubando o Artur Bernardes, ia se poder fazer um governo que respeitasse a Constituição de 1891, que não era respeitada, que estabelecesse o voto secreto, eleições justas e, enfim, separar a justiça eleitoral, que não existia.”

Como a coluna realmente virou uma grande família, afirma Anita, os comandantes tinham um prestígio muito grande, o Prestes e os outros comandantes, porque eles levavam a mesma vida dos soldados, comiam a mesma comida. “Quando tinha montaria, a montaria era para os doentes, para os feridos, eles iam a pé. O Prestes fez grande parte da coluna a pé, porque não tinha montaria. Eles conseguiam montaria de vez em quando. E quando conseguiam, era assim, para os que estavam doentes, os que estavam feridos. Uma coisa que dava uma confiança muito grande aos soldados da coluna é que eles sabiam que ninguém seria abandonado pelo caminho. Feridos, com problemas sérios de saúde, eram levados nos ombros dos camaradas, mas ninguém era abandonado pelo caminho. Então, existia uma solidariedade muito grande e uma iniciativa muito grande dos soldados.”

Uma guerra de movimento

Prestes foi contrário aos ensinamentos da Academia Militar que preconizavam a guerra de posições, apreendida dos franceses. Ele baseou-se na guerra de movimentos baseada na experiência das revoluções gaúchas.

As famosas potreadas que foram criadas logo no início, ainda no Rio Grande do Sul. Essas potreadas eram grupos de cinco, seis soldados que saíam, se separavam da coluna para conseguir alimentos, comida, montaria, e conseguir a coisa mais importante, informação sobre o movimento das tropas inimigas.

Essas potreadas iam e voltavam. Não tinha nenhuma obrigação. Eles faziam isso porque tinham consciência disso. Traziam as informações e o comando da coluna, que era feito de militares competentes, que traçavam os planos da guerra de movimento.

“Então, essa guerra de movimento foi importantíssima e, para que ela funcionasse, precisava das potreadas. E as potreadas eram isso. Eram os olhos da coluna. Isso criava uma solidariedade interna, que eu senti quando estive em 1987 entrevistando muita gente. Para eles, a coluna foi o grande momento da vida deles, quando eles se sentiram gente, se sentiram tratados com respeito. Vários deles falaram isso. Porque, normalmente, eram gente que depois voltou para o Rio Grande e viviam em condições precárias, trabalhadores, com muita dificuldade, muito sacrifício. E a coluna, para eles, tinha sido um momento de libertação.”

E continua: “Então, essa que eu acho que é a grande lição. Quando tem uma palavra de ordem, compreende? Um lema que mobiliza e, ao mesmo tempo, comando, comandantes nos quais se acredita, o povo brasileiro também tem muita garra e luta com heroísmo, muita gente morreu. Sacrificaram a vida para dar um tiro e alertar o resto da coluna que o inimigo estava se aproximando. Mas eles mesmos levaram tiro. Eles eram caros, assim, pessoas heroicas”.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul / Foto: Reprodução


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