Uma proposta para a Reforma Sanitária Digital

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O texto publicado abaixo foi elaborado a partir da fala de Luiz Vianna Sobrinho, médico, pesquisador e membro da Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA), no debate “Dimensões éticas da transformação social em Saúde”. O encontro virtual aconteceu em 25/5 e foi organizado pelo Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde (Nethis), ligado à Fiocruz, e também contou com a presença de Klena Sarges (ICTB/Fiocruz), Feliz Rigoli (Consultor Sênior do Nethis), Natan Monsores (DSC/UnB) e Wagner Martins (CTS/Fiocruz Brasília).

Em sua manifestação, Vianna reflete, a partir do ponto de vista da bioética, sobre o novo momento que atravessamos, com o avanço acelerado das tecnologias baseadas em Inteligência Artificial (IA). Levanta, sobretudo, a necessidade de pensar o uso das ferramentas digitais no Sistema Único de Saúde, de maneira a torná-lo de fato universal – desde que utilize tecnologia construída fora do ciclo de competição-exploração e leve em conta a segurança dos dados da população. Vianna apresenta, a partir dessa reflexão, a proposta da ELA-IA para a chamada Reforma Sanitária Digital.

Fique com o artigo.

Passamos por um novo momento de boom tecnológico, que veio com a Era Digital e a Era da Informação, e hoje vivemos o mesmo zeitgeist de que há soluções para o futuro da humanidade. Mas permanece a constatação de que a posse, o domínio e o controle de todo esse saber – que é humano e social – continua concentrado como propriedade de poucos. Esse controle não apenas perpetua como é um dos instrumentos de manutenção da iniquidade ao longo da nossa história.

Nessa nova era, nós não mais transformamos tecnologicamente uma força da natureza – como a hidráulica, a eletricidade, a energia nuclear, ou mesmo a matéria biológica. Lidamos propriamente com algo que nos caracteriza como humanos: a capacidade cognitiva, as formas da razão e até mesmo a emulação de afeto.

Isso despertou o pensamento contemporâneo não somente para a questão ética, mas para a necessidade, antes de tudo, da busca da ontologia, da epistemologia e de toda a filosofia que se volta para o tema da técnica e da nossa relação com objetos tecnológicos.

O papel do bioeticista é estar atento a esse conflito – sem aceitar o estigma do pessimismo. Porque a gênese do nosso campo e o ímpeto da reflexão bioética não deve ser o do encantamento, mas sim a do espanto (o thauma, a atitude de sua raiz filosófica diante do mundo e dos seus conflitos). Um cacoete que trago que também deve estar presente na prática da medicina: pensar nos riscos de correr antes de recomendar o prazer dos exercícios.

Devemos tensionar a fala corriqueira de que estamos em uma progressão linear de desenvolvimento da tecnologia que vez por outra nos assusta, mas sempre será superada. Porque a História não tem essa lei natural.

O século XX trouxe, de fato, possibilidades reais de extinção física e a emergência climática está à nossa porta como uma realidade. Já o boom tecnológico da Era Digital com a Inteligência Artificial (IA) nos aparece na vertigem das últimas semanas e meses, principalmente com os novos modelos de geração de linguagem baseados em deep learning como os precursores Chat GPT, BARD e outros inúmeros que vão surgindo.

Agora, assistindo a vários mentores e desenvolvedores dessa tecnologia “pulando do barco” e as múltiplas vozes, de várias matizes, demonstrando a “corrida do ouro” estimulada pelo desenvolvimento e domínio desse poder tecnológico, tão concentrado, eu devolvo o comentário que tanto ouvi, mas como uma sincera pergunta: com toda essa insegurança, como “desmistificar a IA”?

Assim, penso que a primeira missão da bioética é estar atento. As potências dessas novas tecnologias devem ser exploradas para o bem comum (que caracteriza o princípio da beneficência). Mas temos também de pensar nas individualidades, temos de lidar com a precaução, com a ética da responsabilidade, com a equidade, com a preocupação com as gerações futuras e com a não-maleficência. Penso que a nossa principal função é dar plantão com a desconfiança. O bioeticista não deve se limitar à gestão de protocolos de segurança. O filósofo italiano Luciano Floridi destaca que é como a diferença entre jogar na regra e jogar bem. Jogar dentro da regra é uma tarefa que a própria IA poderia fazer…

A proposta do ELA-IA para o SUS

A bioética também precisa ser propositiva. Por isso, nos empenhamos em elaborar uma proposta que não se limitasse ao aparelhamento tecnológico das estruturas administradas pelo SUS, mas que fosse um programa voltado para um Sistema realmente Único, nacional. E se há uma parcela dos brasileiros que atualmente está coberta pela iniciativa privada, que oscila entre 20% a 25% da população, que ela esteja sob a governança de um sistema realmente único e do ministério da Saúde, como é dever do Estado.

Qual desenvolvimento tecnológico nós esperamos? Os escritos derradeiros de Celso Furtado têm apoiado a política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde mostrando que o desenvolvimento tecnológico tem de ser acompanhado pelo desenvolvimento social – do contrário, não teremos o desenvolvimento que esperamos.

Temos de pensar a partir da nossa realidade de país em desenvolvimento, com grandes assimetrias, com o conflito social agravado nos últimos anos. O segmento da população com renda domiciliar per capita de até R$ 500 mensais atinge mais de 60 milhões de brasileiros em 2021 – o menor índice desde o começo da série histórica em 2012. Aproximadamente 35 milhões de brasileiros têm ausência de acesso à água potável e 100 milhões dos habitantes não têm acesso à coleta de esgoto – somente 50% do volume de esgoto do país recebe tratamento. 

Apesar do país ter sido excluído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, a insegurança alimentar retorna, logo em 2015, em uma escalada acelerada de piora da situação. Em 2022, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer — o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave.

O país precisa assumir o quanto antes a posse completa e segurança dos dados de sua população. Isso será condição sine qua non para manter sua soberania e poder pensar nos modelos de parceria na geopolítica atual, onde há blocos bem definidos que dominam essa tecnologia. Quais parcerias estão dentro das nossas relações que podem realmente sair do ciclo de competição-exploração para um  novo momento de crescimento com cooperação?

Nós propomos, portanto: 1) Uma governança digital única e ampla de todo o sistema de saúde com a participação social, como as tecnologias de design participativo; 2) Governança do investimento privado em saúde digital, tarefa difícil, política, calcada através da regulação, com apoio popular; e 3) Uma câmara técnica, que discuta e avalise do ponto de vista ético as políticas públicas em saúde digital.

Precisamos de um grande programa nacional em que a saúde encampe a transformação digital encabeçando a retomada do desenvolvimento. Que aproveite a potência das tecnologias de IA também na retomada dos fundamentos, que ainda buscamos, da reforma sanitária. A transformação digital da saúde terá de ser a transformação social do país – e não é uma questão de aplicativos, mas de políticas públicas que utilizem o armamento tecnológico da IA para a reestruturação do sistema e da Atenção Primária no combate à iniquidade, à fome e à miséria. Seguindo as declarações desde o início deste governo, essa é a nossa guerra.

Fonte: Outra Saúde

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