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Obra do compositor – nascido em 6 de agosto de 1910 – revela relação tensa com as mudanças da capital paulista
Por Gustavo Xavier – Editorias: Cultura – URL Curta: jornal.usp.br/?p=3437030
É no documentário Adoniran – Meu Nome é João Rubinato, escrito e dirigido por Pedro Serrano, que o artista plástico Elifas Andreato fala sobre o cochilo que Adoniran Barbosa tirava no sofá da recepção da Rádio Eldorado, em São Paulo. Já fora das rádios, o compositor andava pela cidade e ia regularmente à Eldorado, onde, mesmo sem ser funcionário, ganhou um crachá quando essa identificação passou a ser exigida. Numa ocasião em que marcara de se encontrar com Elifas, este chegou e viu Adoniran dormindo. “Essa imagem é triste para mim, até hoje. Assim que ele saiu da Record, ele passou a vagar sem um lugar, sem um porto seguro onde ele pudesse se reencontrar, com esses talentos todos que ele tinha. E essa imagem do sofá é melancólica, sim. Mas é uma tentativa de estar próximo de um mundo que se desfez, se esgarçou, não se sente mais parte, mas mesmo assim faz-se um esforço para estar perto.”
Essa ponderação de Elifas Andreato chama a atenção para a necessidade de enraizamento. E Adoniran, entre as muitas camadas de significados de sua obra artística, expressou muito bem essa posição de deslocamento entre mundos que se chocam, ou que, simplesmente, se sobrepõem. É, de certa forma, a história de “São Paulo, a cidade que mais cresce no mundo”.
A expressão acima foi o slogan das festividades do 4º Centenário da Cidade de São Paulo, em 1954. Pouco tempo antes, Adoniran compusera Saudosa Maloca, que seria gravada pela primeira vez em 1955. Não à toa, a canção se assenta na imagem de uma demolição. Pudera. No livro Formação Histórica de São Paulo, o historiador Richard Morse destaca que em 1920 houve 1.875 novas construções na cidade. Já em 1950 foram 21.600 novas construções, 11 vezes mais que 30 anos antes. A cidade crescia assustadoramente. A população aumentava, os carros cruzavam as ruas e avenidas. Os sons, ruídos, sotaques, cheiros, prédios e gentes se multiplicavam. E lá se iam as antigas malocas e, com elas, todo um modo de vida que era esmagado pela modernidade.
Como bom observador e andarilho, Adoniran soube captar esse processo de urbanização acelerada. A historiadora Maria Izilda Santos de Matos, que pesquisou vida e obra de Adoniran, escreveu sobre essa fricção entre o afeto ligado à cidade que se dissolvia e o incômodo com a cidade que se impunha. Assim diz ela no artigo A Cidade que Mais Cresce no Mundo – São Paulo território de Adoniran Barbosa: “O crescimento urbano era tenso de nostalgia, de uma cidade que não podia mais se recuperar, cujas memórias se alimentavam de lembranças vagas e telescópicas: quebra de valores tradicionais, destruição de vínculos afetivos, amizades, vizinhanças, cadeiras na calçada, serestas na garoa, feiras e festas, destruição de espaços e territórios”.
Como está refletido na música Despejo na Favela, de Adoniran Barbosa:
Adoniran nasceu em 6 de agosto de 1910, em Valinhos (SP), chamando-se, na verdade, João Rubinato. Mas, em 1918, a família se mudou para Jundiaí e, em seguida, para Santo André, em 1924. Nos anos 30, Adoniran já pegava o trem regularmente para São Paulo. Teimando em conseguir trabalhar no rádio, recebeu muitos nãos, principalmente como cantor. Em 1940, ingressou na Rádio Record, onde ficaria até meados dos anos 70. Lá, no programa Serões Domingueiros, conheceu o radialista e escritor Osvaldo Moles, que se tornou um de seus principais parceiros nos programas de rádio e na música.
Moles também conheceu as transformações que se erguiam na primeira metade do século 20 em São Paulo. Nascido em 1913, em Santos, mudou-se ainda criança para a capital com os pais, indo morar no bairro do Pari. Era Moles que escrevia vários dos textos de programas em que Adoniran interpretava personagens variados, caricaturas dos tipos presentes na cidade. Histórias das Malocas, iniciado em 1955, foi o grande sucesso dessa parceria. Nesse programa, havia tipos como Charutinho, um malandro desocupado. Maria Izilda de Matos localiza aí um punhado de crítica social, uma vez que o personagem “trazia o caráter nostálgico da denúncia de uma cidade em construção-destruição, com movimento e ritmo assustadores num presente degradado, que só uma sintonia com esses tempos de transformação poderia captar: algo que muitos sentiam mas não sabiam transmitir”.
O geógrafo David Harvey tem mostrado a importância da urbanização para a alocação de excedentes da produção capitalista. Em suas palavras, no livro Cidades Rebeldes, refere-se assim à dinâmica diária dos capitalistas: “Eles começam o dia com certa quantidade de dinheiro e vão terminá-lo com mais dinheiro ainda (como lucro). No dia seguinte, eles precisam decidir o que fazer com o dinheiro excedente que ganharam no dia anterior. Isso os põe diante de um dilema faustiano: reinvestir para ganhar mais dinheiro ainda ou consumir esse excedente em prazeres. As leis impiedosas da concorrência obrigam-nos a reinvestir porque, se um não reinvestir, outro certamente o fará”.
É aí que entram as cidades, em contínuo processo de destruir-se e construir-se, como espaço de aplicação do excedente. Na Europa do século 19, isso significou construções de estradas, consolidação da rede ferroviária, construção de portos. Nos Estados Unidos após a Segunda Guerra, essa dinâmica apareceu em forma da enorme suburbanização do país, com modificações faraônicas das cidades e seus arredores. Mas os efeitos não são apenas paisagísticos, são também intimamente humanos. Por isso, com muita pertinência, Harvey lembra um excerto do sociólogo e urbanista Robert Park, ao refletir que a cidade “é a tentativa mais bem-sucedida do homem de refazer o mundo em que vive mais de acordo com os desejos do seu coração. Mas, se a cidade é o mundo que o homem criou, é também o mundo onde ele está condenado a viver daqui por diante. Assim, indiretamente, e sem ter nenhuma noção clara da natureza da sua tarefa, ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo”.
É por isso que Harvey destaca a importância de envolver as pessoas nas decisões sobre onde vivem, como expressão do direito à cidade. Afinal, “o direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade”.
Não é à toa que Saudosa Maloca, como um grito travestido de resignação, ecoa por gerações e virou uma espécie de hino de alguns movimentos de moradia. Adoniran foi uma antena desse processo em que a cidade, em vez de refletir os anseios profundos de seus moradores, tornou-se, de certa forma, seu inevitável sonho-pesadelo. No documentário Meu nome é João Rubinato, aparece a cena de Adoniran respondendo à pergunta da apresentadora de TV sobre o que São Paulo representa para ele. Com graça, ele crava: “O inferno que anda, que caminha louco por aí”.
Adoniran observador das ruas
O historiador André Augusto de Oliveira Santos pesquisa o cotidiano sonoro de São Paulo nas décadas de 30 e 40, período anterior ao sucesso de Adoniram como compositor. A época em que seus personagens apareciam mais nos programas de rádio do que nos sambas. “Tanto o Adoniran quanto o Osvaldo Moles se inspiravam muito nesses personagens urbanos das ruas de São Paulo: nos engraxates, no vendedor de vassouras, num vendedor de frutas, de legumes ou num pequeno malandro que está ali na rua dando um golpe, tentando descolar algum dinheiro.” E Santos completa: “Antes de Adoniran fazer sucesso no rádio, era ele mesmo um dos personagens dessas ruas. Era um desses personagens que faziam música nas calçadas”.
Num primeiro momento, Adoniran compunha a paisagem sonora como mais um dos trabalhadores que circulavam pela cidade. Depois, passa a estar presente na mesma paisagem sonora por meio de seu trabalho no rádio. Santos lembra que, nessas décadas, as pessoas deixavam os aparelhos voltados para a janela ou para a porta de casa. Portanto, ao passar na rua, escutava-se a programação das emissoras. Era mais uma forma de o então rádio-ator Adoniran adentrar o mosaico de sons da cidade.
A convergência de diversos elementos da cultura sonora e musical de São Paulo na formação e na expressão de Adoniran é destacada pelo professor José Geraldo Vinci de Moraes, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Ele acaba servindo como catalisador de vários processos. Nas composições, assim como em sua forma de cantar, Adoniran leva o universo de sua experiência em rádio, com as características dos programas humorísticos, dos programas ao vivo, das imitações.
“Um outro aspecto sonoro e não propriamente musical é a questão da fala, ou seja, das prosódias e das falas presentes na cidade. Então, todo o linguajar que, desde o início do século 20, foi produzido pelos vários imigrantes, sobretudo os italianos, também se apresenta nas composições e nas interpretações dele”, explica Moraes. O professor sublinha que a fala caipira também se amalgamou nessa confluência de falas. E que sua utilização artística era uma prática bem anterior a Adoniran, haja vista, por exemplo, o escritor Juó Bananére.
Mas mesmo sendo uma prática artística já conhecida, seu jeito de incorporar os diversos modos de falar presentes nas ruas paulistanas só ganhou maior consideração a partir da publicação de um texto do crítico literário e professor da USP Antonio Candido. Foi na contracapa do primeiro LP gravado por Adoniran, em 1975. Lá, Antonio Candido defendeu o compositor com observações como estas: “Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal da nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das escolas, se alia com naturalidade às deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém, exatamente como por todo esse País. (…) A fidelidade à música e à fala do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua cidade de modo completo e perfeito”.
Parte dessa expressão completa e perfeita da cidade, no dizer de Antonio Candido, remonta a uma tradição que vinha desde o início do século 20. Eram as modinhas paulistanas. Como José Geraldo Vinci de Moares explica, as pessoas usavam bases melódicas já existentes e colocavam letras diferentes, servindo como uma espécie de imprensa falada, comentando fatos da cidade, geralmente trágicos. Esse caráter de comentador de eventos trágicos, dramáticos, amorosos e humorísticos da cidade, transformando-os em suas composições, encontrou em Adoniran um continuador.
Iracema, eu nunca mais eu te vi/ Iracema, meu grande amor, foi embora/ Chorei, eu chorei de dor porque,/ Iracema, meu grande amô foi você/ Iracema, eu sempre dizia/ cuidado ao atravessá essas rua/ Eu falava, mas você não me escuitava não,/ Iracema, você travessô contramão/ E hoje ela vive lá no céu/ E ela vive bem juntinho de Nosso Senhor/ De lembrança, guardo somente suas meia e seus sapato/ Iracema, eu perdi o seu retrato./ (declama chorosamente) Iracema, fartavam vinte dias/ Pra o nosso casamento/ Que nóis ia se casá/ Você travessô a São João/ Vem um carro te pega/ E te pincha no chão/ Você foi pra assistência, Iracema/ O chofer não teve curpa, Iracema/ Paciência, Iracema, paciência”.
Como o historiador André Augusto de Oliveira Santos destaca, uma das marcas da obra de Adoniran é a preocupação com a parte mais humilde e pobre da população. Além da marginalidade, as pessoas também eram vitimadas pela mudança de ritmo e de novos códigos da cidade. Como Iracema e tantos outros que iam, tragicamente, lembrando o fluxo incessante de automóveis que tomavam as ruas, atropeladas por um ambiente que se acelerava. Sobre essa canção, Maria Izilda de Matos comenta em seu artigo: “A cidade mostrava-se violenta em seu crescimento, as transformações urbanas são irreversíveis, criando uma visão idílica de um tempo-espaço perdido diante do progresso, um tipo de inconformismo que se aproxima da resistência e aponta a denúncia, apregoa a paciência e deixa claras a dor e as tensões da violência urbana”.
Adoniran foi um mestre na sensibilidade em relação a essas mudanças. Com Antonio Candido, em 1975, podemos sintetizar as minúcias desse criador entre mundos conflitantes: “Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da Cantareira, o Triângulo, as cantinas do Bexiga, Adoniran não a deixará acabar, porque graças a ele ela ficará, misturada vivamente com a nova mas, como o quarto do poeta, também ‘intacta, boiando no ar’”.