Domingo, 28 de Agosto de 2022
por Matheus Rocha | Folhapress
Confrontadas por denúncias de fraudes no sistema de cotas e por reivindicações dos movimentos negros, universidades públicas decidiram criar bancas para avaliar a autodeclaração dos candidatos, documento no qual o estudante diz ser preto ou pardo para ter direito às ações afirmativas.
Em alguns casos, as instituições promovem até cursos e oficinas para capacitar os avaliadores para a identificação.
Essas comissões realizam a chamada heteroidentificação, ou seja, processo em que a identificação racial é feita por outras pessoas, e não apenas pela declaração dos estudantes. É isso que faz a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) desde o primeiro semestre de 2020.
A medida foi implementada após a instituição receber denúncias de que pessoas brancas haviam feito uso indevido das cotas raciais. Em 2019, a instituição criou primeiro uma comissão para avaliar 428 notificações.
Em um segundo momento, estabeleceu a comissão de heteroidentificação para atuar de forma preventiva e descobrir possíveis fraudes antes de a matrícula ser feita. A UFRJ diz que, após a instalação, as denúncias praticamente zeraram.
Coordenadora da Câmara de Políticas Raciais e da comissão de heteroidentificação da UFRJ, Denise Góes explica que a banca que avalia os cotistas é composta por três membros da comunidade universitária, isto é, professores, alunos ou técnicos. Além disso, a composição da banca tem diversidade de gênero e raça.
Os membros do colegiado se reúnem de forma presencial com o estudante, que lê na frente do grupo uma declaração explicando por que se considera negro.
Para que a autodeclaração seja aceita, é preciso haver uma decisão unânime entre os três membros. O resultado costuma sair em cerca de 15 minutos. Em caso de dúvida, o candidato é encaminhado a uma comissão de recursos, formada por cinco membros.
A dúvida, explica Goés, acontece em geral na hora de avaliar pessoas pardas. Para encarar essas situações, os avaliadores precisam frequentar um curso sobre temas como etnia, interseccionalidade e racismo brasileiro.
“Não é simplesmente sentar numa cadeira e dizer quem é branco, negro e pardo. É entender os mecanismos da sociedade brasileira em relação ao racismo, à exclusão e à desigualdade”, diz ela.
Outra instituição que aposta em cursos para formar avaliadores é a UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), de Minas Gerais.
Diretor de ações afirmativas da instituição, Julvan Moreira de Oliveira diz que os membros da comissão precisam acompanhar um curso de 20 horas sobre questão racial. Segundo ele, a universidade também ministra oficinas onde os avaliadores fazem exercícios para identificar diferentes grupos.
O pesquisador afirma ainda que as denúncias de fraude caíram depois que a comissão verificadora foi instalada, em 2019. “Possivelmente a criação da banca inibiu pessoas que gostariam de fraudar o sistema de cotas.”
Tanto a UFRJ quanto a UFJF usam como critério de avaliação o fenótipo do candidato, ou seja, as características físicas dele, como cabelo, cor da pele e formato do nariz e da boca.
Nesse caso, o que está em questão é saber se o estudante é percebido pela sociedade como negro em razão de sua aparência. Nessa identificação, pouco importa o parentesco do candidato.
Se ele se declara negro porque sua mãe é desse grupo, mas ele não é visto dessa maneira pelas pessoas, a tendência é que a autodeclaração seja indeferida.
RACISMO NO BRASIL É BASEADO NO FENÓTIPO
Autora do livro “Racismo Brasileiro: Uma História da Formação do País” (Todavia), Ynaê Lopes dos Santos afirma que pessoas negras no Brasil sofrem racismo em razão de seus traços físicos, motivo pelo qual o fenótipo é o principal critério para verificar a autodeclaração. “Aqui, o preconceito é de marca e não de origem”, diz a pesquisadora.
Preconceito de origem, explica ela, é aquele contra qualquer pessoa com ascendência africana, mesmo que ela tenha traços considerados brancos. Esse tipo de discriminação prevaleceu dos Estados Unidos, enquanto no Brasil o racismo é baseado sobretudo em traços físicos.
“A nossa história é de quanto menos eu parecer negro, melhor. Mas isso não impede o pardo de sofrer violência. A polícia não para só preto retinto. Os agentes de opressão sabem muito bem quem é preto.”
O processo de verificação baseado no fenótipo já foi alvo de contestação. Em 2017, por exemplo, o Ministério Público Federal recomendou que a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) suspendesse o processo de aferição de candidatos que foram denunciados por supostas fraudes.
À época, o órgão disse que os estudantes relatavam “sentimento de constrangimento e discriminação” por causa da verificação.
Presidente da comissão de verificação racial da universidade, Edilson Nabarro diz que, em 2017, a universidade indeferiu a autodeclaração de cerca de 260 candidatos por causa de denúncias.
Apesar disso, afirma ele, os alunos seguem com vínculo ativo na universidade em razão das recomendações do MPF.
“A reitoria fez uma série de tratativas para ajustar a continuidade das investigações nos termos que o Ministério Público propunha, mas não houve consenso”, diz Nabarro, acrescentando que as investigações sobre as supostas fraudes estão paradas desde 2017.
Já o Ministério Público Federal diz que não bloqueou as investigações de fraude, mas sim garantiu que elas respeitassem garantias constitucionais.
“A recomendação era para que a UFRGS agisse, mas dentro da aplicação do procedimento correto, que é o da lei 9.784, que trata sobre procedimentos administrativos. A única recomendação foi para que se investigasse, mas com a garantia da ampla defesa e do contraditório”, diz o órgão.
Professora do Departamento de História da UnB (Universidade de Brasília), Mariléa de Almeida diz que as bancas de verificação racial são respaldadas por um amplo arcabouço legal.
Um desses dispositivos é a ação declaratória de constitucionalidade 41, na qual o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu, em 2017, ser constitucional o uso da heteroidentificação para evitar fraudes nas cotas em concursos públicos.
“As bancas se tornaram ferramentas imprescindíveis para a implementação dessa política pública e para assegurar que ela corrija as desigualdades fundamentadas nas diferenças raciais”, diz a pesquisadora.
Fonte: Bahia Notícias