Por Urariano Mota
Filme “Operação Final”, na Netflix, não faz referência à passagem do criminoso de guerra Adolf Eichmann pelo Recife – um dos momentos decisivos para o sucesso da prisão e julgamento do nazista
Ao ver o filme “Operação Final” na Netflix, que narra o sequestro do criminoso de guerra Adolf Eichmann na Argentina, notei uma séria falta. Nele, em nenhum momento se fez referência à passagem do criminoso de guerra pelo Recife. No entanto, isso foi um dos momentos decisivos para o sucesso da prisão e julgamento do nazista.
Eu me lembrava dos textos do recifense Paulo Lisker, que depois emigrou para Israel, mas nunca esqueceu da sua origem do Recife. Para mim, era claro que Paulo Lisker contara sobre essa passagem. Hoje de manhã, fui procurar pelos textos – suspendi até a escrita do meu próximo livro (dor na consciência por isso). Mas como uma punição por minha falta, os textos sumiram da internet. Então fui pesquisar na minha caixa de e-mails como último recurso. E lá estavam, e lá descobri as peças raras de julho de 2013, que divulgo a seguir.
O título geral, assim como a pesquisa e recuperação dos textos são de responsabilidade de Urariano Mota. Mas os preciosos relatos, não. Olhem a seguir o que importa.
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INCIDENTE GUARARAPES
Por Paulo Lisker
O grande problema era como, depois de capturado, tirar o criminoso, o tenente-coronel da Gestapo Adolf Eichmann, da Argentina.
Isso, como dizemos nosotros, não seria “um café pequeno” (missão fácil).
O plano deveria ser muito bem-feito para superar todas e quaisquer dificuldades que viessem pela frente, trazê-lo são e salvo para Jerusalém e colocá-lo de pé ante seus juízes, que o julgariam pelos crimes hediondos que carregava desde a segunda guerra mundial, nos esconderijos concedidos gentilmente pelos colaboradores e nas fugas às carreiras pela América Latina.
No princípio, Israel não tinha nenhum interesse em participar das festividades de independência da Argentina*.
As relações entre os dois países não eram das melhores. Nem carne de abate casher permitiam exportar para Israel, ademais a “porta aberta” que ofereceu a Argentina a milhares de nazistas foragidos da Europa e procurados pelos aliados para levá-los a justiça. Isto já era o suficiente para não participar dos festejos na Argentina.
Esse país e seu governo, nunca em tempo algum, abriu a mão neste sentido ou permitiu a extradição desses nazistas.
Porém, quando chegou um telex ou um telegrama (era o que existia na época), codificado é claro, no gabinete do primeiro-ministro de Israel, o senhor Ben Gurion, que dizia laconicamente: “O Mate está barato, venham buscar”. Decifraram, entenderam que o “pássaro” que tanto procuravam foi capturado. Finalmente, Eichmannn estava nas mãos do pessoal do “Mossad”.
Então mudou tudo.
Imediatamente comunicaram ao governo argentino que Israel teria muito orgulho em participar das festividades do Centenário e o ministro de relação exteriores o Senhor Abba Eben, representaria o Estado de Israel e ademais iria para a parte artística, um grupo de danças folclóricas com orquestra e tudo mais.
Um avião (acho que foi um D 10) de empresa EL AL foi imediatamente requisitado e transformado numa nave oficial com os emblemas oficiais do Estado de Israel.
A força aérea israelita colocou à disposição toda uma equipe de pilotagem, a tripulação quase toda era de agentes do “Mossad” (Serviço secreto israelita).
O ministro foi escolhido “a dedo” pois era um poliglota e falava perfeitamente o espanhol (caso tivesse que ser entrevistado pela mídia local, fazer um pequeno discurso na Casa Rosada ou dialogar com os governantes argentinos nos encontros das festividades). O “grupo de danças folclóricas” denominado “maim, maim be sasson” – ou seja “água, água para alegria” –, eram quase todos agentes especiais do “mossad”. Estes para “quebrar o galho” tiveram até que aprender a dançar, mesmo que na “marra” (sem muita vontade para tal).
Esse grupo de danças se apresentaria nos festejos ao aberto nos parques da cidade e daria o suporte necessário ao grupo que tinha aprisionado Eichmann semanas antes e o interrogava sobre a identidade, a sua atuação e responsabilidade como alto oficial nazista (Tenente Coronel da Gestapo), no Holocausto dos judeus na segunda grande guerra mundial.
Em Israel “quebraram a cabeça”, mas logo entenderam que não havia como trazer o “Mate barato” por vias convencionais.
Não existia nenhum caminho alternativo que não fosse num avião em missão diplomática, com gente graúda do governo israelí.
Dito e feito. O avião saiu de Tel Aviv, pousou num aeroporto da Europa e de lá para o aeroporto do Recife e finalmente aterrizou em Ezeiza, aeroporto de Buenos Aires.
Terminados os festejos, começou a verdadeira odisseia para sair da Argentina levando o nazista.
Deu um trabalho danado para passar todos os controles do aeroporto. Eichmann saiu apoiado por dois tripulantes, “vestido” com a farda e o passaporte oficial de copiloto. A cara toda enrolada em bandagem, meio grogue como se tivesse sofrido dias antes um acidente de automóvel. Para tal tinham um atestado da polícia sobre o acidente e outro do hospital, onde fora tratado, para qualquer eventualidade caso fosse necessário dar explicações as autoridades do aeroporto. Claro, tudo falso, nisso o “mossad” é especialista.
O verdadeiro copiloto saiu da Argentina de automóvel da embaixada israelí, atravessou as fronteiras sem problemas e chegou ao Brasil por Uruguaiana que faz fronteira aberta com o Uruguai.
Nessa longa viagem de carro, aproveitou para comer a gostosa comida crioula do nosso campo gaúcho (aquele gostinho, aquele cheirinho, até do mate de verdade, gostou demais). Comprou no caminho, para levar de presente, um monte de “ponchos” de diversas cores e qualidades.
Quando voltou, contou à sua família em Rehovot-Israel que só não comprou um quarto de uma rês, pois não dava como trazer, pois é a melhor carne do mundo. Dizem que isso é devido às condições climáticas e as boas variedades de pastos durante as diversas estações do ano no sul do continente americano.
De Uruguaiana, com avião de carreira da Vasp para Porto Alegre, e com a Varig, para o Recife, até pagou excesso de bagagem, mas fez isso com gosto.
Na cidade, se hospedou no Grande Hotel, se juntou com uma parte do “grupo de danças” que em tempo abandonara a capital argentina e ficaram à espera do avião, que deveria pousar no aeroporto dos Guararapes para abastecimento e embarcar para Israel.
O roteiro planejado dessa gente deveria ser mais que perfeito, caso contrário, todo o esforço e empenho em trazer A. Eichmann vivo para Jerusalém, poderia ir de “água abaixo” (ser um grande fracasso).
Entretanto, as autoridades no aeroporto de Buenos Aires, desconfiaram que o tal senhor desaparecido dias antes, encontrava-se no avião da El Al, de Israel.
Os motores roncando, esperando a ordem de decolar e nada.
Na realidade, as autoridades argentinas queriam interditar a aeronave e fazer uma busca minuciosa para tirar as dúvidas.
A Argentina, assim como, o Brasil, Paraguai, Chile, Bolívia, nunca confessaram que criminosos nazistas foram recebidos de mãos beijadas e os defendiam contra quaisquer buscas ou pedidos de extradição dos países aliados.
Então ninguém ou quase ninguém poderia nem de leve suspeitar que o tal desaparecido de dias atrás fosse algum nazista foragido que vivia muito bem com sua família no bairro Garibaldi de Buenos Aires.
Depois de capturado e colocado preso numa grande casa alugada, foi interrogado durante alguns dias e tiraram à confissão que o tal senhor Clemente, cidadão argentino, era na realidade a alta patente da Gestapo nazista Adolf Eichmann.
As autoridades argentinas não são de todo idiotas e alguns deles começaram a desconfiar seriamente que o dito cujo desaparecido estava no tal avião judeu e passaram a pressionar abertamente as autoridades policiais, controle de passaportes (verificar todos os passaportes minuciosamente) e outros agentes alfandegários (Aduana), que estivessem de alerta com o contrabando de mercadorias (tinha disso na época, em que mercadorias diversas para deixar o país necessitavam de licenças especiais, fornecidas exclusivamente pelo departamento de exportação de bens de consumo). Que “abram os olhos” (máxima alerta) e abrissem toda e qualquer bagagem suspeita ou não suspeita, somente para causar nervosismo quando começar o embarque dos passageiros e da tripulação, em especial.
Qualquer pessoa suspeita seria imediatamente detida e interrogada, apesar da nave ser um avião oficial do governo israelí e nele viajariam, depois das festividades do tal Centenário de Independência que comemoraram durante uma semana, nada menos que o ministro de relações exteriores de Israel, o Senhor Abba Eben e seus assessores de gabinete, convidados oficialmente pelo governo local.
O ministro e o grupo de danças folclóricas que viera para dar duas ou três exibições artísticas ao ar livre na Praça de Mayo e uma exibição no teatro Colon. Quase todos desse grupo artístico era mormente composto por agentes do Mossad, que veio não para dançar e sim dar o necessário suporte aos agentes que durante semanas fizeram todo o trabalho de capturar o cidadão argentino, o senhor Clemente, o tal disfarçado A. Eichmann, nazista procurado nos quatro cantos do mundo.
As autoridades pressionaram até onde fora possível, avião parado na pista de decolagem, o cônsul israelí veio ao aeroporto para saber o que estava ocorrendo e comunicar a Jerusalém, reclamou das autoridades do aeroporto e do governo argentino.
– Pero que pasa com este avion? Este es un vuelo oficial carambas, que problemas hay para evitar su salida en tiempo para Tel Aviv? Miren que demora. Quiem es encargado? Favor, quiero hablar con el. Es posible?
Resposta não recebeu, impediam a decolagem do avião em missão oficial, não faltava muito para desencadear um incidente diplomático que poderia chegar ao rompimento das relações entre os dois países.
Dias antes, uma parte do “ensamble” do grupo de danças ao terminar a sua função de suporte, partiu num avião de carreira em direção ao Recife e se livrou deste vexame.
Lá, a comunidade israelita e os movimentos juvenis tinham programado uma serie de duas apresentações gratuitas no clube Hebraico e uma para o publico em geral no Teatro Santa Isabel, onde foram convidados o Governador do Estado Sr. Cid Feijó Sampaio, e o Prefeito, Miguel Arraes de Alencar, o recém designado Arcebispo de Recife e Olinda Don Carlos de G. Coelho e outras personalidades civis e militares (Se este evento foi realizado ou se as autoridades acima citadas presenciaram o espetáculo, não é do meu conhecimento, me desculpem).
No “fim dos contados” e muita discussão no aeroporto, entre as autoridades locais e a embaixada de Israel, o avião decolou com todos que estavam a bordo, sem nenhuma inspeção especial, afora o controle de passaportes e nisso não houve maiores problemas. Fim da agonia no aeroporto de Ezeiza, Buenos Aires.
Segundo as cartas de voo, as autoridades argentinas tomaram conhecimento de que o avião pousaria no Recife para abastecimento, pois naquela época um avião não tinha a capacidade de executar um voo direto de Buenos Aires par Tel Aviv. Em algum aeroporto neste trajeto deveria pousar para se reabastecer. Ao executar o voo de vinda, também houve aterrisagem no Recife.
Se fosse na África, o avião nunca mais decolaria, e caso fosse na Europa, fariam inspeção minuciosa, encontrariam o nazista Eichmann e mesmo contra a lei que impede fazer algo dessa natureza em voos diplomáticos, multariam a empresa (neste caso Israel), apreenderiam a aeronave até o pagamento do último vintém, libertariam o nazista, pois qualquer juiz sustentaria a hipótese de que neste caso fora perpetrada uma ação contra um cidadão inocente que se encontrava no avião contra sua vontade.
Assim são os europeus, conhecemos essa laia de colaboradores com os nazistas no seu tempo, e em uma semana teria Eichmann com a ajuda dos melhores advogados do continente e aí fim da “caça”.
Só restava mesmo pousar e reabastecer no Recife.
Lá estava programada uma pequena recepção das organizações judaicas em homenagem ao ministro israelita e seus acompanhantes, e o embarque da outra parte do “grupo de danças”, que fazia uma turnê no Recife e que não era nada menos que o pessoal de suporte do “Mossad” que saíra em tempo de Buenos Aires e aguardava no Recife, sob esse disfarce.
Algumas horas de voo em direção ao hemisfério norte, a aeronave não tinha a capacidade de fazer direto Buenos Aires-Tel-Aviv e necessitava pousar no Recife (pois em outros aeroportos fora do Brasil não teria nenhuma viabilidade).
Aí era necessário se reabastecer de combustível, revisão mecânica completa antes do voo transatlântico, comida e informação sobre as condições atmosféricas.
Com o fracasso das autoridades no aeroporto de Buenos Aires, e se comendo de raiva, não perderam um minuto de tempo e logo comunicaram aos aeroportos de possível pouso desta aeronave as suas sérias suspeitas de que esta nave levasse um cidadão argentino raptado (radio foto acompanhava a informação), um grupo de guerrilheiros urbanos (naquele tempo isto estava em moda), uma série de produtos argentinos de exportação proibida, entre eles, sementes de pastagem, sêmen de gado local, produtos semiacabados de couro e lã cuja exportação estava terminantemente proibida sem os devidos “permisos”(licenças de exportação).
Claro que quando isso chegou às mãos das autoridades recifenses, não foi necessário fazer outra coisa, dar permissão de pouso e imediatamente interditar a sua saída do Brasil.
Dizem as mas línguas que logo essa gente cheirou que desse voo sairia muita “grana de propina” (dinheiro para suborno) **, pois onde há judeus, também há dinheiro, ainda mais com esta séria denúncia recebida dos “colegas” portenhos.
Então, se tem “muamba”, tem dinheiro. Então vamos apertar esses judeus.
Estamos nos Guararapes, o avião foi desviado a uma pista lateral no fim do campo.
Nada de abastecimento de combustível, corrente elétrica, limpeza (SATO), alimentação cusher (casher), encomendada em Miami e que estava desde ontem nas câmaras frigoríficas do aeroporto, nada de nada. Viaturas policiais e bombeiros de todo lado, cordão de isolamento, proibindo ao publico ou à mídia se aproximarem, o sol inclemente, a pista ardia e dentro do avião um inferno de calor, pois estava proibida toda e qualquer ajuda ao avião até que fosse permitida uma inspeção rigorosa de todos os itens enviados de Buenos Aires, e o pior deles, o resgate do cidadão argentino raptado.
Assim começou o “incidente Guararapes”.
* Comemoração de 150 anos da independência.
Ver livro de Neal Bascomb, Eichmann Hunting.
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INCIDENTE GUARARAPES
(continuação)Paulo Lisker
Estamos agora no aeroporto dos Guararapes, no Recife.
O avião da EL AL (de Israel em missão oficial, vindo de Buenos Aires), depois do pouso foi desviado para uma pista lateral no fim do campo.
Nada de abastecimento de combustível, corrente elétrica, limpeza (SATO), alimentação cusher (casher), encomendada em Miami e que estava desde ontem nas câmaras frigoríficas do aeroporto, nada de nada. Um isolamento esquisito e inexplicável, pois era uma aeronave em missão diplomática.
Mas na América Latina, naquela época, tudo era possível, não existia nada inexplicável.
Viaturas policiais e bombeiros de todo lado, cordão de isolamento proibindo ao publico ou à mídia se aproximarem.
O sol inclemente do nosso Nordeste, vento nem pra remédio, calmaria total, nada se bulia, a pista ardia feito o fogo do inferno.
Abriram todas as portas do avião para amenizar o infernal calor dentro da nave, mas nada ajudava, nem água para beber ou para descarga dos banheiros sobrava, um verdadeiro inferno.
Da torre de controle comunicaram num inglês mixuruca (básico, sem gramática), que a demora era pelo fato das autoridades não terem recebido consentimento de inspecionar o avião e até lá todos e quaisquer serviços de terra do aeroporto estavam suspensos. Agora, decidam vocês como agir diante de tal exigência.
Uma aeronave levando um ministro e sua equipe de assessores numa missão oficial, só mesmo no terceiro mundo.
Nesta situação caótica, o nazista raptado e o médico que vinha dopando-o estavam na primeira etapa do voo ocupando os últimos assentos, mas ao se aproximar do Recife ao tocar o solo, o nazista recuperou os sentidos e começou a espernear, gritar, jogar-se em contra a janela, então não houve outra solução a não ser colocar o nazista e o médico dentro de um grande caixote previamente preparado em Israel e que já vinha de Telaviv, e estava na parte traseira do avião, de onde foram retiradas duas fileiras de assentos, exatamente prevendo essas situações de desespero e pânico do nazista, ou que a dopagem perdesse os efeitos desejados.
O relato do diálogo entre o chefe da equipe do “Mossad” e o médico já ouvi de outrem que estava presente na ocasião.
– Que médico é você? Você, meu caro doutor, ainda não aprendeu a dopar este safado nazista, que agora achou a hora de fazer algazarra? Desse jeito, logo, logo estará toda a polícia do aeroporto dentro do avião e não importa a “puta que o pariu”, que o ministro de relações exteriores, todos seus assessores e o próprio avião estejam numa missão diplomática. Pelo amor de Deus, taca-lhe meio litro de entorpecente para que vá dormindo descansado e quietinho até Telaviv. É uma ordem, cumpa-a agora sem discutir, está escutando? Nem uma palavra a mais, seu médico de “meia tigela” (inexperiente, na língua do povo). Comigo, noutra missão dessa natureza, nunca mais, pode esquecer!
(Era o calor infernal perturbando o cérebro dum agente dos mais experientes em situações impossíveis).
O médico. branco feito cal, não ficou devendo nada ao seu chefe e respondeu à altura:
– O senhor quer me substituir? O senhor tem alguma experiência médica de anestesista? Não está vendo que este “quarto de frango” (em hebraico, “reva of”, referia-se ao físico do dopado), nem peso suficiente tem para receber quantidade de entorpecente para mais de duas ou três hora? Se quiser eu dou uma dose galopante bem maior que a normal nestas condições, mas terá que me dar ordem por escrito, pois o resultado será fatal e um defunto chegará a Telaviv. Isto será de sua total responsabilidade!
Segundo o meu conhecimento das leis, o tribunal não vai aceitar alguém nestas condições para prestar depoimento de porra nenhuma, então decida já, quer me substituir como médico? Ou vai me deixar fazer o trabalho?
Também o cérebro do médico estava em pandarecos pelo calor que fazia dentro do avião e a tensão nervosa de todos com a nave interditada e a sua decolagem ninguém sabia para quando seria.
Não houve outra solução a não ser meter o nazista e o médico dentro do caixote e ali dopá-lo na medida em que o médico optasse.
Um agente propôs dar uns tabefes bem merecidos e fazer calar o nazista, porém o chefe não permitiu, alegando que agora o dito cujo estava em território israelí e segundo as leis em Israel, dar este atendimento ao prisioneiro é terminantemente proibido. Assim terminou esse vexame dentro do avião e o ministro nem ficou sabendo de nada. Todos ansiosos à espera da ordem de decolagem que não chegava.
Estava proibida toda e qualquer ajuda ao avião até que fosse permitida uma inspeção rigorosa de todos os itens enviados de Buenos Aires, e o mais importante era investigar a presença do cidadão argentino raptado e resgatá-lo são e salvo das mãos criminosas dos judeus do “Mossad”.
Assim começou o incidente Guararapes.
As notícias correm rápido e a colônia israelita do Recife ficou a par da chegada do avião de Buenos Aires com o ministro de relações exteriores, Sr. Abba Eben, seus assessores, e um grupo de danças folclóricas israelí que vieram participar das festas de centenário daquele país.
Representantes da comunidade já estavam na sala especial de embarque para personalidades importantes (VIP, recém-inaugurado), no intuito de recepcionar e dar as boas-vindas aos passageiros israelitas em missão diplomática em trânsito no Recife.
Segundo o que me relataram, estavam presentes o Senhor Moishe Troper, um erudito em hebraico moderno, que foi incumbido de fazer um pequeno discurso na língua que Jesus falava, o senhor Benjamim Berenstein, representando o “Bnai Brith” do Recife (organização de múltiplas atividades em prol da comunidade), Dr. Tandeitnick (cônsul honorário de Israel, não oficial e ligado à Agencia Judaica), Samuel Schor, Salomão Jeroslavsky, J. Zaverucha, S. Averbuch (Organização Unificada prol Israel), dona Berta Margolis (entidades judaicas femininas). Um jovem representando os movimentos juvenis (Não recordo o nome), até a Organização Vitka Kempner (judeus progressistas) enviou, se não me engano, a senhora Hulak, com um grande buquê de flores tropicais.
Esse encontro nunca aconteceu e o quadro original de Abelardo da Hora que trazia o Sr. Moisés Schwartz, muito bem embalado, comprado (ou regalado pelo artista), para presentear o ministro israelita foi entregue a um dos participantes do grupo de danças antes deles passarem pela seção de controle de passaporte do embarque. Dizem que esse quadro está até hoje exposto num dos corredores da “Knesset” (O parlamento israelí em Jerusalém).
Com tudo isso, como terminou esse incidente que trouxe tanta controvérsia no acontecido?
Na minha terra, no Recife, era costume dizer-se em situações como estas: “Chegou a hora da onça beber água”.
Contam que senhor Benjamim e senhor Averbuch, assim como os outros componentes da comitiva israelita, resolveram ir pedir satisfações ao administrador do aeroporto que comandava toda essa “guerra santa” contra o avião que pousara no Recife.
– Senhor Malaquias, me desculpe, mas qual o problema para que esse avião seja atendido? Já se passou quase meia hora e o avião não foi atendido pelos serviços normais de terra, que qualquer aeroporto no mundo oferece logo depois do pouso. Que crime cometeu essa gente que está numa pista isolada como se fosse um bando de terroristas? Não esqueça que é um voo diplomático e que todas as nações respeitam, serviço nenhum deve faltar para permitir sua decolagem logo depois. Isso é o normal? Então o que acontece nesse caso?
-Seu nome? – pergunta o comandante do aeroporto.
– Meu nome é Benjamin, primeiro secretário do “Bnai Brit”, organização judaica do Recife. E o meu amigo aqui se chama Averbuch, membro da secretaria permanente da Organização Unificada. Neste momento estamos representando toda a comunidade judaica do Recife e pedimos de Vossa Excelência uma explicação para o caso.
– Senhores, o problema pode ser resolvido em dois minutos. Recebemos uma denúncia que nesse avião, que saiu de Buenos Aires, existe a possibilidade de que na sua carga poderia haver mercadorias que estão proibidas de sair da Argentina sem as devidas licenças de exportação. Queremos verificar essa questão, e se tudo estiver em ordem, enviaremos um telex e a coisa estará resolvida. Este é o inspetor chefe senhor Hugo Caldas*. Ele irá ao avião e fará uma rápida inspeção no porão do avião. Se tudo estiver como nos papeis oficiais, não haverá mais motivo do avião continuar a esperar para decolar. Posso ordenar a inspeção?
Os dois senhores logo abanaram com a cabeça em sinal de consentimento, pois não se falava de inspecionar dentro do avião, nem da procura de um cidadão argentino desaparecido dias atrás em Buenos Aires, pois isto já seria a mais séria violação de um voo diplomático, então tudo bem.
Os dois judeus desconfiaram que o problema não se reduzia somente nesta inspeção de bens que necessitavam de licença de exportação, e logo veio o “tiro na mosca”.
– Vejam, meu estimados senhores, esta empresa não tem linha de pouso constante e permanente nos Guararapes. Neste caso, todos os gastos com este avião são algo diferente daqueles de carreira normal, em que os pagamentos são feitos através de transações financeiras oficiais. Neste caso, todos os gastos deste pouso deverão ser cobertos em moeda corrente (à vista), e logo depois todos os serviços serão imediatamente conectados.
Pode mandar conectar tudinho que seja necessário para pôr o avião em condições de decolar para Tel Aviv.
Tem o senhor a lista dos gastos?
– Olhem, não é pouca coisa. Combustível, serviço sanitário, água, energia, armazenamento da comida nas câmaras frigoríficas, taxas distintas de pouso, segurança etc.
– Quanto é isso tudo somado? – perguntou o senhor Benjamim.
O homem não respondeu, entregou ao senhor Benjamin uma folha com números e perguntou:
-Quanto tempo levará para arrumar esta quantia?
-Uma hora, até uma hora e meia. O senhor, entretanto, dê as ordens necessárias para que todo o trabalho seja iniciado e que no máximo 4 horas depois do pouso, o avião já esteja no ar. Combinado, doutor?
-Tem a minha palavra de honra!
Ninguém sabe (talvez saibam, porém não contam) a soma em dinheiro. Mas era uma quantia fabulosa.
O pagamento chegou ao aeroporto em três malas cheias de dinheiro. Dizem que parte dele teve origem do Banco Cooperativo Judaico (aquele que funcionava na Travessa do Veras), outra parte era oriunda da Organização Bnai Brit, que tinha um fundo especial para “problemas” dessa natureza, e outra, de uma campanha relâmpago feita entre os judeus ricos do Recife, sob o lema “Gmilut Chassidim” ou “Pidion Shvuim” (originado do hebraico bíblico), nos dois casos tem a ver com a compra da liberdade de prisioneiros. Neste caso, o prisioneiro era o Avião da EL AL.
O grupo de danças, que fez o turnê no Recife e esperava o embarque, eram uns 16 entre homens e mulheres. Em menos de meia hora, passaram pelo controle de passaportes sem problemas, até o portador do passaporte argentino de Ricardo Clemente (lembram quem era o dito cujo?), não despertou nenhum problema do guarda que carimbou o visto de saída.
O pessoal deixava o Recife alegre, carregando as mãos cheias de coisas compradas no mercado de São José. Era bonecos de pau preto, bonecos de barro de Vitalino ou dos seus alunos, pinturas decorativas de Chico da Silva (aquele que põe nas suas pinturas a impressão digital do seu polegar), quilos de passas e castanha de caju e do Pará (me falta o gostinho do ranço dessas passas e do caju em geral).
Alguns já iam com seu chapéu de couro de vaqueiro, sandálias sertanejas e até rendas do Ceará. No Recife tem muita coisa bonita pra levar de presente para um país no Oriente Médio.
O voo transatlântico correu às “mil maravilhas”, todos agora calmos e apaziguados, pois cumpriram uma missão que prometeram a seus pais e avós, aqueles que se foram na fumaça das chaminés dos crematórios dos campos de concentração, e daqueles remanescentes que carregam, até seu último suspiro sobre a face da terra, o número de prisioneiro no seu antebraço, “lembrança amarga” do campo de concentração na Europa nazista.
Eichmann foi julgado em Jerusalém, condenado à morte na forca, seu corpo cremado e as cinzas espalhadas no mar, para que não ficasse dele nem memória.
Falando sério, será que ainda tem gente que sustente a teoria de que tudo isso foi uma “estória para boi dormir” ou uma “fabula urbana” e nada disso aconteceu na realidade? Será?
(Fim de O INCIDENTE GUARARAPES, Eichmann no Recife.
*Copiado do blog do senhor Hugo Caldas que inspecionou o avião da EL AL, interditado nos Guararapes
Já imaginou você, ignorando tudo, na maior inocência, atender ao avião da El Al, Israel Airlines que voltava das festividades da independência da Argentina trazendo sequestrado no porão, dentro de um caixote, desacordado, o ex-oficial SS Adolf Eichmann, fruto de uma bem-sucedida ação do Mossad? Pois é, atendi ao avião, fiz depois a inspeção geral de costume e não notei nada de anormal. E o Eichmann estava lá dentro, dormindo o sono dos injustos. Dopadinho que só ele!
Essas coisas aconteciam e era a mais banal das normalidades. Hoje, com o passar dos anos e o devido distanciamento, me dou conta de que era o tempo, juntamente com a História, passando…
Fonte: Vermelho.org