Última etapa dos testes clínicos mostrou segurança e alta eficácia entre pessoas de 2 a 60 anos
Texto: Fabiana Mariz
Arte: Joyce Tenório* – Quinta, 1 de fevereiro de 2024
Uma vacina de dose única com tecnologia nacional e produzida pelo Instituto Butantan se mostrou eficaz e segura contra os sorotipos da dengue DENV-1 e DENV-2. Os dados do ensaio clínico de fase 3, realizado com 16.235 participantes em 16 centros de pesquisa espalhados pelo Brasil, acabam de ser divulgados em artigo publicado no The New England Journal of Medicine.
A eficácia geral do imunizante no período foi de 79,6% entre participantes sem evidência de exposição prévia à dengue e de 89,2% entre aqueles com histórico de exposição. A expectativa do instituto é submeter ainda este ano a vacina para aprovação da Anvisa.
“Quando falamos de vacina da dengue, estamos, na verdade, falando de quatro vacinas ao mesmo tempo. Esse é o aspecto mais difícil: fazer com que quatro vacinas contra os quatro tipos de vírus da dengue andem em caminhos paralelos e induzindo à proteção de forma equilibrada”, explica Esper Kallás, primeiro autor do artigo, diretor do Instituto Butantan e professor licenciado do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) ao Jornal da USP.
Se separarmos por idade, a eficácia foi de 80,1% entre os participantes de 2 a 6 anos de idade, 77,8% entre aqueles de 7 a 17 anos de idade e 90,0% entre aqueles de 18 a 59 anos. Já a eficácia contra DENV-1 foi de 89,5% e contra DENV-2 foi de 69,6%. DENV-3 e DENV-4 não foram detectados durante o período de acompanhamento.
“Em termos gerais, depois de dois anos [esse resultado de] 80% é excelente para esses dois tipos. Existem pequenas variações da faixa etária, mas o que é importante é que a gente tenha tido esse resultado”, relata Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) da FMUSP.
Os efeitos colaterais à vacina (dor de cabeça, fadiga, erupções avermelhadas na pele e dor muscular no local da aplicação, além de outros) ou ao placebo, dentro de 21 dias após a injeção, foram mais comuns com Butantan-DV do que com placebo (58,3% dos participantes e 45,6%, respectivamente).
Durante o período de estudo, os sorotipos DENV-3 e DENV-4 não foram detectados. Mesmo assim, o diretor do Instituto Butantan afirma que os pesquisadores estão atentos. “A vacina funcionou muito bem contra os tipos um e dois. Estamos acumulando mais informações contra os tipos 3 e 4, incluindo a indução de anticorpos contra a dengue.”
Para participar da pesquisa, os voluntários deveriam ter entre 2 e 59 anos, ser saudáveis ou ter uma doença clinicamente controlada. Eles foram separados e randomizados por idade (2 a 6 anos; 7 a 17 anos; e 18 a 59 anos).
“A vacina contra a dengue do Instituto Butantan representa um grande avanço para o País”, comemora Dimas Covas, professor da USP e ex-diretor do Instituto Butantan entre 2017 e 2022. “A publicação dos resultados iniciais do estudo clínico, que envolveu mais de 16 mil voluntários, mostrou elevada eficácia com apenas uma dose, o que a diferencia das vacinas de outras companhias. Também é um grande exemplo da importância de desenvolvermos a biotecnologia nacional.”
Atualmente, existem duas vacinas tetravalentes de vírus atenuados disponíveis no mundo. A Dengvaxia, aplicada em três doses, é licenciada em vários países e indicada para pessoas entre 9 e 45 anos. Porém, indivíduos não expostos previamente ao vírus têm risco aumentado de desenvolver dengue grave após a vacinação. A Organização Mundial da Saúde recomenda o uso da Dengvaxia somente em pessoas que tiveram contato com o vírus ou, se a triagem não estiver disponível, em áreas endêmicas (com soroprevalência – que é a proporção de casos de infecção – de pelo menos 80% aos 9 anos de idade).
Já a tetravalente Qdenga recebeu aprovação na Indonésia e na União Europeia. No Brasil, a formulação aprovada pela Anvisa em 2023 deve ser aplicada em duas doses e é indicada para pessoas entre 4 e 60 anos. Recentemente, o Ministério da Saúde anunciou sua incorporação ao Programa Nacional de Imunização (PNI) a partir de 2024.
De acordo com Esper Kallás, a vacina produzida pelo Butantan apresenta vantagens em relação às demais. “A distribuição de idade que pode ser vacinada é mais elástica. Começa em crianças a partir de dois anos de idade”, explica.
Dengue no grupo que foi vacinado X grupo placebo
Tecnologia nacional
A Butantan-DV começou a ser desenvolvida por um virologista do National Institute of Health (NIH) nos Estados Unidos. À época, Steve Whitehead buscou maneiras de enfraquecer os diferentes tipos de vírus existentes em seu laboratório. Deste processo, foram gerados 80 deles até chegar à combinação ideal dos quatro que fariam parte da vacina. “Nessas fases iniciais, os estudos estavam restritos aos Estados Unidos, onde eram feitos testes de cada um dos componentes isolados”, explicou Esper Kallás ao Jornal da USP em entrevista concedida em 2018. “A coisa foi dando certo e ele foi achando a combinação ideal desses quatro vírus até juntar em uma vacina só.”
O então diretor do Instituto Butantan Isaías Raw se interessou pela vacina e assinou um acordo com o NIH para adquirir a fórmula do imunizante no Brasil. Na ocasião, financiamentos da Fapesp foram essenciais para realizar as fases iniciais de transferência de tecnologia, ou seja, trazer o conhecimento da produção da vacina para o Instituto Butantan.
Para transformá-la em um imunizante viável, já que o NIH utilizava um preparado da vacina suspenso em líquido que deveria ser armazenado a uma temperatura de -70ºC, os pesquisadores do Butantan fizeram a liofilização da fórmula. “Você transforma a vacina líquida em um pó e isso permite que ela seja armazenada em uma temperatura refrigerada. O problema da distribuição logística praticamente acabaria”, relatou Esper Kallás.
Logo depois, um grupo de pesquisa escreveu um projeto para iniciar os ensaios clínicos de fase 1 (primeira etapa de testes, em um grupo pequeno de seres humanos, de uma medicação cuja eficácia foi comprovada na fase pré-clínica) no Brasil. Quando submeteram o projeto, a Anvisa permitiu iniciar os estudos já na fase 2, pois a primeira parte já tinha sido feita nos Estados Unidos. O desafio dos pesquisadores, além de verificar a segurança e a eficácia da vacina em um número pequeno de participantes (300), foi comparar a vacina líquida, produzida nos Estados Unidos, com a vacina em pó, produzida pelo Instituto Butantan. Até aquele momento, ainda não se sabia quantas doses seriam necessárias para garantir a imunização e se a vacina funcionaria para quem já havia tido dengue.
“A gente queria saber todos os detalhes com amostras mais frequentes de sangue para realizar a análise, visitas, checagem de eventos e efeitos colaterais que a vacina, porventura, pudesse induzir”, disse Kallas. “Documentamos algo que nenhum outro estudo tinha mostrado: a vacina do Butantan também tinha capacidade de instruir células do nosso sistema de defesa a combater o vírus, que é o que chamamos de imunidade celular. Isso deu muito ânimo, junto com as boas taxas de produção de anticorpos que começamos a ver, a procurar a Anvisa novamente e dizer que já tínhamos instrumentos suficientes para iniciar a fase 3, que seria o estudo definitivo.” A Anvisa aprovou e o projeto passou por vários comitês de ética até ser lançado no primeiro semestre de 2016.
Aumento de casos
Dados recentes divulgados pelo Ministério da Saúde mostram que, nas primeiras semanas de 2024, o Brasil já registrou um acumulado de 217.841 casos prováveis de dengue. São 15 mortes confirmadas até agora e 149 estão em investigação.
A vacina contra a dengue do Butantan é um dos poucos produtos desenvolvidos no País que estão tendo sua tecnologia transferida para a multinacional Merck Sharp & Dohme. Em 2018, a companhia fechou um acordo com o Butantan, concordando em pagar 100 milhões de dólares para ter acesso à tecnologia e poder explorá-la comercialmente fora do Brasil. “Esse acordo permitiu vários investimentos na área produtiva do Butantan, assim como na construção do Museu da Vacina”, comenta Dimas Covas.
Como os testes da vacina estão sendo finalizados, a expectativa é que ela seja enviada em breve para aprovação da Anvisa.
“São várias etapas que estão andando paralelamente. Uma delas é ter as informações completas para envio à Anvisa. Esperamos fazer isto no segundo semestre deste ano”, finaliza Esper Kallás.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
Fonte: Jornal USP