O Acordo das Pandemias reforçará a desigualdade?

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Tratado poderia tornar a Saúde Global mais justa – mas países ricos resistem a incluir obrigação de apoiar os mais pobres, diz especialista. Prazo de negociação agora é curto: o mundo se submeterá a novos apartheids pandêmicos?

Por KM Gopakumar, autor convidado | Tradução: Rajnia de Vito

Com o apoio de diversos parceiros, Outra Saúde tem acompanhado as negociações do Acordo das Pandemias e, de forma única entre veículos de língua portuguesa, informado seus leitores sobre seu andamento por meio de uma série de textos. Nesta semana, os países-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) receberam o primeiro rascunho da redação do Acordo, sinalizando a chegada da reta final de negociações. Porém, como elucida KM Gopakumar, consultor jurídico da Third World Network (TWN), as perspectivas não são positivas: o texto do Acordo deveria estimular a solidariedade no enfrentamento das próximas emergências globais de saúde, mas “as negociações estão caminhando na direção oposta, legitimando a desigualdade”, ele denuncia. Nesta atualização, originalmente publicada nos Geneva Health Files, o especialista indiano relata os entraves a um Acordo que tenha a equidade como princípio: o principal deles, o desacordo do Norte Global – e da própria OMS – com cláusulas vinculantes de solidariedade com os países em desenvolvimento tanto no Acordo das Pandemias quanto na reforma do Regulamento Sanitário Internacional, atualmente em discussão. Boa leitura! (G. A.)


O Acordo das Pandemias reforçará a desigualdade?

Título original: On the Brink of Legitimizing Inequity: Negotiations at WHO for a Pandemic Instrument & Amending the IHR

A equidade está listada como “um princípio e uma abordagem norteadora” do atual texto-base para as negociações do novo Acordo das Pandemias.

“A equidade está no centro da prevenção, preparação e resposta às pandemias, tanto a nível nacional dentro dos Estados, entre e dentro dos países ou regiões, quanto a nível internacional entre os Estados […]”, de acordo com o Artigo 3 do texto de negociação, que estabelece e elabora o princípio da equidade.

Além desse novo tratado, a equidade também está presente na negociação de um acordo já existente: o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), que está em processo de ser reformado. A decisão do Comitê Executivo da ONU que estabelece o processo de reforma, também diz que as emendas devem guiar-se pela equidade, entre outros aspectos. A decisão 150 estabelece que “tais emendas devem ser limitadas em seu escopo e abordar questões específicas e identificadas, desafios – incluindo a equidade, os desenvolvimentos tecnológicos ou outros – ou lacunas que não poderiam ser abordadas de outra forma, mas que são fundamentais para apoiar a implementação e o cumprimento efetivos do Regulamento Sanitário Internacional (2005)”.

Apesar do mandato claro e inequívoco para solucionar questões que visam a equidade dentro do regime internacional de emergências de saúde, as negociações em ambos os processos, a escrita do Acordo de Pandemias e as emendas ao RSI, estão caminhando na direção oposta, legitimando a desigualdade.

As limitações do Regulamento Sanitário Internacional

Uma das lacunas mais evidentes no regime internacional de emergências de saúde é o vácuo legal no fornecimento de assistência financeira aos países para a promoção de uma a estabelecer a obrigação dos países de “prevenir, proteger contra, controlar e fornecer uma resposta de saúde pública à disseminação internacional de doenças”.

Ele efetivamente obriga 194 países (os Estados que assinaram o RSI) a avaliar eventos de saúde pública e informar a OMS dentro de 24 horas se esses tiverem o potencial de se tornar uma Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional (PHEIC). A partir da notificação, segundo o regulamento, o Diretor-Geral da OMS deve tomar a decisão de declarar ou não o evento como uma emergência. 

Entretanto, não há uma disposição explícita e legalmente vinculante no RSI que facilite a disponibilização e o acesso aos insumos de saúde necessários para conter a disseminação internacional de doenças. Assim, o RSI opera na prática apenas como um instrumento para fornecer informações sobre possíveis emergências, sem nenhuma obrigação correspondente dos Estados Partes ou da OMS de garantir assistência para os países.

Embora o RSI reconheça a necessidade de auxiliar os Estados Partes, ele não aborda de forma eficaz a desigualdade do nível de desenvolvimento entre os países. As disposições sobre assistência técnica foram elaboradas sem reconhecer as necessidades especiais dos países em desenvolvimento. 

Os artigos que mencionam obrigações o fazem de forma muito geral, como o 5 e 13, que dispõem sobre vigilância e resposta de saúde pública. O Artigo 5.5 declara que “a OMS ajudará os Estados Partes, mediante solicitação, a desenvolver, fortalecer e manter as capacidades mencionadas no parágrafo 1 deste Artigo”. As necessidades especiais dos países em desenvolvimento são mencionadas apenas uma vez em todo o Regulamento. 

Quando há obrigações, elas são dispostas de forma condicional, enfraquecendo o seu caráter vinculante. O Artigo 44(2)(c) obriga a OMS a auxiliar os países em desenvolvimento, na medida do possível, “na mobilização de recursos financeiros para a construção, fortalecimento e manutenção das capacidades essenciais mencionadas no Anexo 1”. 

Tampouco há obrigações específicas para os países desenvolvidos, mesmo estes possuindo a maioria dos recursos tecnológicos do setor farmacêutico capazes de auxiliar na resposta a uma emergência de saúde pública a nível global. A falta de obrigações para os países desenvolvidos e para a OMS em auxiliar a implementação do RSI e facilitar o acesso a insumos de saúde torna o regulamento um regime injusto. Isso é especialmente verdadeiro à luz do fato de que esses insumos de saúde são desenvolvidos a partir de informações e materiais biológicos compartilhados pelos países em desenvolvimento.

O processo de alteração do RSI

Os países desenvolvidos estão envidando todos os esforços para prevenir que qualquer linguagem relacionada a promover a equidade seja inserida nas emendas do Regulamento Sanitário Internacional. Argumentam que o Acordo de Pandemia é o melhor lugar para abordar a equidade e também enfatizam a necessidade de preservar a versão atual do RSI. A Secretaria da OMS está seguindo a mesma linha e fez várias tentativas de rejeitar as propostas de alteração contidas no Artigo 13 A sobre acesso equitativo a insumos médicos e no Artigo 44 A sobre o mecanismo financeiro proposto para a implementação do RSI.

Transferir as disposições de equidade do RSI para o instrumento pandêmico prejudicaria a necessidade de equidade em emergências de saúde porque o escopo do Acordo de Pandemias é muito limitado. Pela definição que se está propondo no acordo, uma pandemia seria um evento de ordem ainda maior do que uma emergência de saúde pública. Assim, poucos eventos poderiam acionar o Tratado e as emergências de saúde pública de preocupação internacional ficariam relegadas a um instrumento que não versa sobre equidade. Portanto, a preservação do atual formato do RSI criaria um vácuo de equidade na resposta a emergências de saúde pública.

A marginalização da equidade no Acordo das Pandemias

1. Responsabilidades comuns, porém diferenciadas (CbDR)

O reconhecimento da desigualdade no nível de desenvolvimento entre os Estados Membros da OMS é um pré-requisito para tratar da equidade.

Nesse sentido, o texto da negociação traz de volta a Responsabilidade Comum, porém Diferenciada (CbDR) como um princípio e abordagem norteadora no Artigo 3 do Acordo de Pandemias. “Os governos são responsáveis pela saúde do seu povo, que só pode ser garantida com o fornecimento de medidas sociais e de saúde adequadas. Dada a desigualdade entre os países na promoção da saúde e no controle de doenças, especialmente doenças transmissíveis, fazendo disso uma ameaça comum a todos, os países desenvolvidos que detêm mais capacidades e recursos relevantes para responder a pandemias devem ter um grau proporcional de responsabilidade diferenciada em relação à prevenção, preparação, resposta e recuperação de pandemias globais por meio de meios eficazes de implementação, como transferência de tecnologia e know-how, bem como recursos financeiros”, diz o Acordo.

Entretanto, nenhum dos artigos subsequentes propõe obrigações específicas aos países desenvolvidos para auxiliar os países em desenvolvimento.

2. Acesso equitativo

Os artigos que tratam da equidade em temas de pesquisa e desenvolvimento, produção e distribuição (como os artigos 9 a 11 e 13) estão, em sua maioria, redigidos com condicionantes que enfraquecem o caráter vinculante que deveriam ter. A título de exemplo, no caput do Artigo 10 sobre produção sustentável se lê: “[…] reduzindo assim a lacuna potencial entre a oferta e a demanda, deverá se esforçar para“. Da mesma forma, o Artigo sobre transferência de tecnologia é qualificado com termos que não denotam obrigatoriedade, como promoção e incentivo. Enquanto isso, se propõe que as transferências de tecnologia sejam regidas por termos mutuamente acordados entre as partes. Isso sugere uma negociação entre as partes que não leva em conta a necessidade da mediação da OMS e a desigualdade de poder de barganha entre países em desenvolvimento de um lado e países desenvolvidos e entidades como laboratórios e companhias farmacêuticas  do outro. Completamente ausente nesses artigos são condições que ofereçam acesso previsível e garantam a diversidade produtiva para atender à demanda global e à concorrência.

3. Obrigações preexistentes de cooperação

Ao relutar em compartilhar tecnologias, os países desenvolvidos estão convenientemente ignorando suas obrigações com a Convenção sobre Armas Biológicas, que cria uma obrigação para os Estados Partes de cooperar com outros Estados ou organizações internacionais no campo da bacteriologia para a prevenção de doenças ou para outros fins pacíficos. O Artigo X(1) estabelece: “…as Partes da Convenção que estiverem em condições de fazê-lo também cooperarão contribuindo individualmente ou em conjunto com outros Estados ou organizações internacionais para o desenvolvimento e a aplicação de descobertas científicas no campo da bacteriologia (biologia) para a prevenção de doenças ou para outros fins pacíficos”.

4. Regulamentações rigorosas que podem comprometer o acesso

A implementação de regulações mais rigorosas está se tornando uma desculpa para impulsionar a agenda dos monopólios farmacêuticos. Uma das estratégias é a proposta de incorporação de medidas adotadas pelo Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos para Uso Humano (ICH) e pelo Fórum Internacional de Reguladores de Dispositivos Médicos (IMDRF) no artigo 14, que trata do fortalecimento das diretrizes regulatórias. No entanto, essas medidas são completamente inacessíveis para os países em desenvolvimento.

A maioria das normas do ICH e do IMDRF está fora do alcance da maioria dos fabricantes [farmacêuticos] de países em desenvolvimento. A adoção obrigatória das normas ICH e IMDRF ameaçaria a demanda por uma produção diversificada de insumos médicos. O efeito contraditório que o reforço da regulação teria para a equidade foi ressaltado em uma Reunião de Oficiais de Regulamentação da OMS em 2001:

“As implicações para a saúde pública da aplicação de diretrizes de maior complexidade técnica nos países em desenvolvimento podem ser de longo alcance… Se esses fornecedores não conseguirem atender ao que podem ser padrões de qualidade não comprovados, o impacto adverso da retirada desses medicamentos na saúde da população pode ser muito mais dramático do que o risco háptico representado pelo não cumprimento dos padrões do ICH.”

Do lado oposto a essa demanda, tendo em vista balancear seus possíveis efeitos, não há nenhuma previsão de um mecanismo que facilitaria a transferência de tecnologia e a produção sustentável nos artigos 10 e 11. A única referência no Artigo 11 está no trecho que propõe “desenvolver e fortalecer mecanismos multilaterais, conforme apropriado, que facilitem a transferência de tecnologia e know-how para produtos relacionados à pandemia em termos voluntários e mutuamente acordados”.

Essa disposição não tem fundamento para se concretizar.

5. Acesso e repartição de benefícios

Um artigo importante para a promoção da equidade, e que tem sido o principal alvo dos países desenvolvidos, especialmente da União Europeia, é o artigo 12, que trata do Acesso a Dados de Patógenos e Repartição de Benefícios (PABS). No contexto desse artigo, países desenvolvidos estão tentando se livrar das obrigações internacionais em torno do acesso e compartilhamento de benefícios estabelecidas na Convenção sobre Biodiversidade (CBD) e no seu Protocolo de Nagoya. A proposta apresentada pela UE torna, por um lado, o acesso a patógenos uma obrigação legal e, por outro, faz da repartição de benefícios uma opção. A abordagem da UE serve aos propósitos dos países desenvolvidos, que já investiram na coleta de dados ao estabelecer o Bio-hub e o Hub para Inteligência Pandêmica e Epidêmica, bancos de dados e materiais biológicos estabelecidos na Suíça e na Alemanha, respectivamente. 

Há uma orquestração para acomodar a proposta da UE por meio de uma proposta de subgrupo, deixando de lado uma proposta mais abrangente feita pelo grupo da África e o Grupo pela Equidade. Esta confere a mesma importância ao acesso e à repartição de benefícios.

(A TWN relatou mais sobre essa estratégia aqui: Tentativa de marginalizar a proposta da África e do Grupo de Equidade sobre o Sistema PABS)

6. A hesitação para se comprometer com o financiamento

A falta de financiamento adequado é outra desigualdade importante no contexto do Regulamento Sanitário Internacional. É importante enfrentar essa lacuna por meio do estabelecimento de um mecanismo financeiro, o que incluiria um fundo. Contudo, as negociações no Grupo de Trabalho que vem conduzindo as negociações sobre as emendas ao RSI não progrediram muito.

Já no Acordo de Pandemias, o artigo 20 propõe o estabelecimento de um mecanismo financeiro, juntamente com um fundo comum. O fundo comum deve servir “para fornecer financiamento suplementar e direcionado para apoiar o fortalecimento e a expansão das capacidades de prevenção, preparação e resposta à pandemia e, conforme necessário, para a resposta emergencial no dia zero de um evento, através de Partes Cooperantes quando outros recursos não estiverem acessíveis por meio das entidades de financiamento existentes”, diz o texto.

O fundo comum seria considerado um último recurso para obter assistência financeira para a implementação do instrumento de pandemia em todos os seus aspectos: prevenção, preparação, resposta e recuperação. O mecanismo financeiro está previsto para “aumentar a eficácia e a eficiência dos mecanismos financeiros existentes e futuros, dentro ou fora da OMS, inclusive fornecendo recursos financeiros adicionais”.

No entanto, é óbvio que os mecanismos existentes e futuros não têm nenhuma obrigação legal de seguir as orientações do mecanismo do Acordo de Pandemias. No momento, não há nenhuma obrigação proposta ou mesmo um estímulo para que os países desenvolvidos forneçam recursos financeiros para a implementação do RSI ou do Acordo. Isso somente contribuirá para as desigualdades existentes na obtenção de financiamento. 

7. Uma justificativa para a extração de dados?

Embora as disposições sobre equidade sejam propostas com condicionantes como “dar seu melhor esforço”, a linguagem sobre vigilância e transferência de dados no texto de negociação contém obrigações concretas. As obrigações propostas no Artigo 4.3 estendem as obrigações de vigilância não apenas à saúde pública, mas também às doenças zoonóticas. Além disso, o texto da negociação propõe obrigações para que os Estados Membros cumpram várias diretrizes internacionais, incluindo as que tratam de saúde e resistência antimicrobiana.

Algumas dessas diretrizes exigem a troca de dados, como o Plano de Ação Conjunto por uma Saúde Única, desenvolvido em parceria entre a OMS, FAO, OIE e PNUMA, que resultaria no compartilhamento de dados. Muitas dessas diretrizes ou planos de ação promovem a transferência de dados sem repartição de benefícios. A inclusão da Resistência Antimicrobiana (AMR) expande o escopo do instrumento e torna  diretrizes internacionais como o Plano de Ação Global sobre Resistência Antimicrobiana (AMR) juridicamente vinculantes, o que também imporia obrigações de vigilância. Uma vez que a vigilância esteja em vigor, a transferência de dados é uma conclusão lógica.

8. Legitimando a desigualdade

Os processos do RSI e do Tratado correm o risco de limitar as obrigações legais de equidade aos “melhores esforços possíveis” e, ao mesmo tempo, expandir as obrigações de vigilância e transferência de dados. Além disso, a nível do ritmo das negociações, o tom mudou drasticamente. Hoje, os Estados Membros são advertidos que a negociação sobre o texto propriamente dito, que sequer começou, deve se encerrar em apenas 3 meses, até maio de 2024. No entanto, há um ano, o primeiro rascunho do texto tinha sido apresentado e as negociações em cima do texto poderiam já ter começado.

Nesse ínterim, o Bureau, responsável pela metodologia de trabalho estabelecida e por gerenciar o processo de negociação, favoreceu países desenvolvidos e ultrapassou as suas atribuições. Exemplos disso estão na opção por dispersar as discussões em sessões informais e subgrupos, que desfavorecem o acompanhamento pela as delegações de países em desenvolvimento, e também na redação do texto em que se baseia as negociações, onde o Bureau decidiu apagar ou priorizar determinadas medidas. 

Já se especula que na 9ª Sessão do Órgão de Negociação Intergovernamental (INB), quando se espera que as negociações baseadas em texto para o Acordo de Pandemias comece, tanto o Bureau quanto a Secretaria da OMS vão desencorajar sugestões textuais. Esse cronograma e essa abordagem irrealistas seriam usados para reforçar e legitimar a desigualdade por meio de emendas ao RSI e de um novo Instrumento Pandêmico.


Revisão: Guilherme Arruda

Fonte: Outra Saúde / Foto: BRAC

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