Danilo Gonçalves Gaspar – Segunda,18 de março de 2024
1. Introdução
As questões de gênero demandam uma atenção especial no mundo do trabalho, de modo a permitir que o trabalho seja, efetivamente, um instrumento de realização da dignidade do ser humano trabalhador.
Para tanto, é imprescindível que temas como o uso do nome social e a utilização de banheiros de acordo com a identidade de gênero do/a trabalhador/a sejam objeto de debates e reflexões.
Esse breve texto se destina à reflexão do tema da utilização de banheiros de acordo com a identidade de gênero do/a trabalhador/a, fazendo uma abordagem teórica e prática, inclusive com pesquisa jurisprudencial.
2. Princípios de Yogyakarta, orientação sexual e identidade de gênero
Entender o tema requer, antes de qualquer coisa, enfrentar noções preliminares sobre orientação sexual e identidade de gênero, o que demanda o conhecimento acerca dos princípios de Yogyakarta.
A partir da constatação de que “violações de direitos humanos que atingem pessoas por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida, constituem um padrão global e consolidado, que causa sérias preocupações”, foram aprovados 28 princípios, um deles, inclusive, específico sobre o mundo do trabalho (princípio 12). São princípios, em essência, que “prometem um futuro diferente, onde todas as pessoas, nascidas livres e iguais em dignidade e prerrogativas, possam usufruir de seus direitos, que são natos e preciosos”.
Entre as definições trazidas no documento, encontram-se “orientação sexual” e “identidade de gênero”, respectivamente:
“COMPREENDENDO ‘orientação sexual’ como estando referida à capacidade de cada pessoa de experimentar uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como de ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas;”
“ENTENDENDO ‘identidade de gênero’ como estando referida à experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos;”
Assim é que, quando se fala em transexual, se dialoga com um ser humano cuja identidade de gênero (como a própria pessoa se sente em relação ao gênero) não corresponde ao seu sexo biológico, independentemente de realização ou não de cirurgia de redesignação sexual.
3. STF e identidade de gênero
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, há, no mínimo, três processos de suma importância sobre o tema.
O primeiro, ADI 4.275, julgado em 03/2018, concluiu que pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam a cirurgia.
O segundo, RE 670.422, cujo julgamento foi concluído em 08/2018, fixou teses de repercussão geral sobre o tema.
O terceiro, RE 845.779, já com repercussão geral reconhecida, mas ainda com julgamento sem conclusão, é também extremamente importante. O recurso, interposto no Supremo Tribunal Federal, discute a reparação de danos morais a uma mulher trans que teria sido constrangida por empregado de um de shopping center em Florianópolis (SC) ao tentar utilizar banheiro feminino.
Como se vê, no âmbito do STF, a temática vem sendo enfrentada de forma a garantir aos transexuais a realização da dignidade humana, vetor axiológico do estado democrático de direito brasileiro (artigo 1º, III, CRFB/88).
4. Exercício da identidade de gênero no âmbito da administração pública
Há, desde 2015, no âmbito da administração pública federal, especificamente no âmbito do Ministério Público do Trabalho (MPT), normatização acerca do tema. A portaria 1.036, de 01/12/2015, além de tratar da questão do uso do nome social, trata, de maneira específica, no artigo 4º, acerca do uso dos banheiros por pessoas trans:
“Art. 4º: No âmbito do Ministério Público do Trabalho, deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com o nome social e a identidade de gênero de cada pessoa.”
Como se vê, a norma do MPT garante, de maneira expressa, o direito ao uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero de acordo com o nome social e a identidade de gênero de cada pessoa.
E mais. Em seu parágrafo único, veda, também de forma expressa, uma das práticas comumente pensadas como solução para demandas de tal natureza deduzidas por pessoas trans: “Parágrafo único: É vedada a criação de espaços de uso exclusivo para pessoas travestis e transexuais”.
No ano de 2018, o Ministério Público da União (MPU), por meio da Portaria PGR/MPU nº 104, de 12 de dezembro de 2018, que alterou a Portaria PGR/MPU Nº 7, de 01º de março de 2018, passou a prever, no artigo 5º-A, que: “É garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito no âmbito do Ministério Público da União”.
São normativos, portanto, que, de forma concreta, garantem ao ser humano a utilização de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, de acordo com sua própria identidade de gênero, independentemente, é claro, de realização de cirurgia de redesignação sexual.
Assim, uma pessoa que se enquadra, biologicamente, no sexo masculino, mas se identifica como pertencente ao gênero feminino, possui o direito de utilizar o sanitário destinado ao gênero feminino (gênero de sua identificação pessoal). Por sua vez, uma pessoa que se enquadra, biologicamente, no sexo feminino, mas se identifica como pertencente ao gênero masculino, possui o direito de utilizar o sanitário destinado ao gênero masculino (gênero de sua identificação pessoal).
5. Utilização de banheiros por pessoas trans no mundo do trabalho
No mundo do trabalho, as demandas de pessoas transexuais pela utilização de banheiros relacionados ao gênero que se identificam é uma realidade que ainda provoca reações das mais variadas ordens.
5.1 Aparente colisão de direitos fundamentais
Diante de um pedido de um/a empregado/a trans em utilizar o banheiro do gênero que identifica, há, comumente, a alegação de existir uma colisão de direitos fundamentais. Argumenta-se, no particular, que o direito da pessoa trans de utilizar o sanitário do gênero que se identifica colide com o direito da pessoa que se identifica com seu sexo biológico de não dividir espaços íntimos com pessoas de “outro sexo”.
Além de não haver colisão de direitos, há uma grande confusão entre “sexo” e “gênero”
5.1.1 Diferença entre sexo e gênero
Sexo é algo relacionado a fatores biológicos. Uma pessoa com cromossomos XX possui órgãos sexuais e reprodutivos femininos e, portanto, é designada como do sexo feminino. Por sua vez, alguém com cromossomos XY possui órgãos sexuais e reprodutivos masculinos e é, por isso, designada como do sexo masculino.
Por sua vez, gênero está vinculado aos fatores comportamentais da pessoa, de modo que quando o sexo e a identidade de gênero estão alinhados, fala-se em pessoas cisgênero (ou apenas “cis”).
Por outro lado, quando a pessoa “sente” que o sexo que, biologicamente, lhe foi atribuído no seu nascimento é diferente da sua identidade de gênero, fala-se em transexuais ou transgêneros (ou apenas “trans”).
O fato é que, sendo a noção de “sexo” algo unicamente biológico, não há qualquer colisão de direitos quando uma pessoa trans busca seu direito de usar o banheiro do seu gênero de identificação, afinal é seu gênero que corresponde ao seu comportamento e não ao seu sexo.
Portanto, quando uma mulher trans (sexo masculino e gênero feminino) utiliza o banheiro destinado ao gênero feminino, não há, com relação às mulheres “cis” (sexo feminino e gênero feminino), nenhuma diferença comportamental que justifique o ilusório argumento da colisão de direitos.
Quando há, e isso realmente ocorre, reação das próprias mulheres “cis” ao uso, por mulheres “trans”, do banheiro feminino, há, em essência, uma indevida confusão entre “sexo” e “gênero”, confusão essa, contudo, que, se mantida, pode violar frontalmente os direitos fundamentais das pessoas trans, seja com a negativa do uso do banheiro do gênero que se identifica, seja com criação de banheiros para “pessoas trans” (vedado, como se viu, inclusive, pela Portaria 1.036 do MPT), seja até mesmo com a imposição de que as pessoas trans utilizem os banheiros destinados às pessoas com deficiência, “solução” última que, além de violar os direitos das pessoas trans, prejudica a acessibilidade das pessoas que efetivamente possuem alguma deficiência.
5.1.2 Direito à utilização do banheiro da identidade de gênero do/a empregado/a
A materialização da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CRFB/88), quando analisada na órbita do tema objeto do presente texto, somente será materializada se for garantido pelo empregador o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com o nome social e a identidade de gênero de cada pessoa.
Essa é, no contexto em questão, a única solução capaz de concretizar os direitos fundamentais dos seres humanos, tanto aqueles que possuem sua identidade de gênero alinhada ao seu sexo biológico, quanto aqueles que possuem sua identidade de gênero distinta do seu sexo biológico.
O que rege a conduta humana são comportamentos. Por isso, são os comportamentos (e não as questões meramente biológicas) que devem servir de balizas para os relacionamentos interpessoais, inclusive no mundo do trabalho.
5.1.3 Análise jurisprudencial do tema
No âmbito da Justiça do Trabalho, já é possível encontrar decisões sobre o tema objeto do presente texto.
Inicialmente, pode ser destacado o Processo 000093977.2012.5.09.0003, julgado no âmbito do TRT da 9ª Região, no qual se debatia o caso de uma empregada trans impedida de usar o banheiro feminino e obrigada a utilizar o banheiro masculino. Prevaleceu, no caso, o voto divergente, tendo sido, ao final, deferida uma indenização por danos morais no valor de R$ 5.000 à autora da ação.
Pode também ser destacado o Processo 0003365-15.2013.5.02.0038, julgado no âmbito do TRT da 2ª Região, envolvendo um caso de uma empregada trans que era obrigada a usar o banheiro de pessoas com deficiência.
No que tange ao processo em questão, vale a pena destacar o depoimento prestado por uma das testemunhas ouvidas no processo, que revela, com detalhes, a situação vivida pela empregada:
“(…) que a autora utilizava o banheiro de deficientes porque se ela utilizasse o banheiro masculino ou feminino haveria constrangimentos; que foi determinação da supervisora que a autora utilizasse o banheiro dos deficientes; que o banheiro de deficiente não tenha fechadura; que o depoente já foi acompanhando a autora, por solicitação dela, ao banheiro para garantir que ninguém adentrasse; (…)”
Ao final do julgamento, foi deferida uma indenização por danos morais no valor de R$ 20 mil à autora da ação.
Importante citar ainda o julgamento do Processo 0010043-62.2017.5.18.0005, julgado no âmbito do TRT da 18ª Região, envolvendo um caso de uma empregada trans impedida de usar o banheiro feminino e obrigada a utilizar o banheiro masculino.
Por fim, é válido trazer à baila a decisão da 5ª Turma do TST nos autos do TST-RR-11190-88.2015.5.15.0131, cujo acórdão foi publicado no dia 08/03/2024:
“(…)
- Em relação à conduta empresarial de proibir o uso do banheiro feminino, verifica-se, da mesma forma, o dano moral sofrido pela Autora. Importante registrar que não se trata de privilegiar o direito do empregado em detrimento do direito do empregador, mesmo porque os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa encerram direitos fundamentais situados no mesmo plano hierárquico (CF, art. 1º, IV), mas de propor, diante de aparente conflito de interesses, a solução que melhor se coadune com os postulados constitucionais e justrabalhistas, tendo como norte a eficácia horizontal dos direitos humanos.
(…)
- O Tribunal de origem, portanto, ao corroborar a conduta da empresa e condicionar a utilização do nome social à mudança no registro civil e a utilização do banheiro à cirurgia de redesignação de sexo, violou, dentre outros, o direito de personalidade da empregada, bem como o seu direito à dignidade (art. 1º, III, da CF), à liberdade e à privacidade (artigo 5º, caput e X), sendo devida a reparação pelo dano moral sofrido mediante a condenação da empresa ao pagamento de indenização por danos morais. Recurso de revista conhecido e provido.” (TST – 5ª Turma – PROCESSO Nº TST-RR-11190-88.2015.5.15.0131 – DJE 07/03/2024 – relator ministro Douglas Alencar Rodrigues).
Como se vê, a decisão em questão deixa claro que, situações dessa natureza, revelam um “aparente conflito de interesses”, devendo a solução perpassar pela escolha que melhor se coadune com os postulados constitucionais e justrabalhistas, tendo como norte a eficácia horizontal dos direitos humanos.
6. Conclusão
Repetindo o que foi dito no tópico 5.1.2, a materialização da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CRFB/88), quando analisada na órbita do tema objeto do presente texto, somente será materializada se for garantido pelo empregador o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com o nome social e a identidade de gênero de cada pessoa.
Essa é, no contexto em questão, a única solução capaz de concretizar os direitos fundamentais dos seres humanos, tanto aqueles que possuem sua identidade de gênero alinhada ao seu sexo biológico, quanto aqueles que possuem sua identidade de gênero distinta do seu sexo biológico.
O que rege a conduta humana são comportamentos. Por isso, são os comportamentos (e não as questões meramente biológicas) que devem servir de balizas para os relacionamentos interpessoais, inclusive no mundo do trabalho.
No mais, caso o empregador se veja diante de uma situação de resistência por parte dos/as empregado/as “cis”, compete ao empregador materializar uma política de conscientização de todos os trabalhadores da empresa, de modo que se garanta um meio ambiente de trabalho livre de qualquer conduta discriminatória.
Vale registrar, por fim, que a citada política de conscientização, prioritariamente, deve ser implementada por todos os empregadores com a maior brevidade possível, de modo não apenas a impedir da continuidade de conflitos discriminatórios por questões de identidade de gênero, mas sobretudo evitar que tais conflitos se iniciem. A prevenção dos conflitos, no particular, é, essencialmente, a melhor forma de preservação da dignidade do ser humano trabalhador (artigo 1º, III, da CRFB/88).
- Danilo Gonçalves Gasparé juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, doutorando em Direito (UFBA), mestre em Direito Privado e Econômico (UFBA), membro do Instituto Bahiano de Direito do Trabalho (IBDT) e professor de Direito e Processo do Trabalho.
Fonte: Conjur /