Dizer que a crise climática causa sofrimento não basta – ou poderíamos “resolver” a questão com mais drogas psiquiátricas. Há alternativa: combater a desigualdade, que agrava eventos extremos, será decisivo para uma resposta coletiva ao problema
Por Claudia Braga, em sua coluna para o Outra Saúde
Nos últimos anos, a saúde mental se tornou cada vez mais prioritária na agenda de governos e sociedades, incluindo no Brasil. Contudo, esse processo não acontece sem percalços. Proliferaram-se também as discussões rasas e as interpretações mercadológicas sobre o sofrimento psíquico. Elas muitas vezes predominam na busca de possíveis respostas – individuais ou coletivas – que podem ser implementadas em nossa realidade, em especial nas formas do cuidado. Buscando contribuir com as discussões em profundidade no âmbito da saúde mental, Outra Saúde apresenta com alegria aos leitores sua nova coluna. Por ela, será responsável Claudia Braga, professora do curso de Terapia Ocupacional da USP, ex-consultora de saúde mental da OPAS e coordenadora do grupo Saúde Mental Global – Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, Drogas e Desinstitucionalização. Todas as terceiras quintas-feiras do mês, este boletim veiculará instigantes reflexões como a que se segue, em que Claudia aborda os atuais desafios da saúde mental à luz da crise climática. Boa leitura! (G. A.)
Ocorrendo até esta sexta-feira (22/11) em Baku, no Azerbaijão, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2024 (COP 29) é um momento decisivo para avançar em acordos e compromissos para frear os impactos das mudanças climáticas e atender às necessidades dos países mais vulneráveis a elas. Dos muitos impactos que as mudanças climáticas provocam (e que vêm sendo agravados pela tragédia política geral), é considerável o impacto sobre o bem-estar – o que exige novas respostas dos sistemas de saúde, em especial para a saúde mental. A questão é: quais respostas temos que construir também nesse campo?
Responder essa pergunta exige que, primeiro, a gente reflita sobre outra questão: como cuidamos da saúde mental? O que nos leva a uma terceira (e mais importante) pergunta: em que termos estamos definindo o que é saúde mental? É a partir de certo entendimento sobre o que é saúde mental e o que promove saúde mental que vamos responder com mais ou menos qualidade ao problema das mudanças climáticas.
As mudanças climáticas são uma realidade de enormes consequências na vida das comunidades, como vimos nas inundações no Rio Grande do Sul e na seca da Amazônia. Esforços internacionais, ainda insuficientes, têm sido empreendidos para reverter esse cenário e seus impactos, principalmente na saúde, segurança alimentar e habitação, conforme a Organização das Nações Unidas (ONU) vem afirmando. Sobre a saúde, a Organização Mundial da Saúde (OMS) assinala que as consequências climáticas estão entre as maiores ameaças à saúde global, incluindo à saúde mental.
Nesse contexto, na 77ª Assembleia Mundial de Saúde realizada em junho de 2024, foi aprovada a resolução sobre Mudanças Climáticas e Saúde, que aponta: “Eventos e condições climáticas extremas cada vez mais frequentes estão tendo um impacto crescente no bem-estar, nos meios de subsistência e na saúde física e mental das pessoas, bem como ameaçando os sistemas de saúde e as instalações de saúde”. A necessidade de agir está posta.
Uma abordagem individualizada será eficaz
Há duas principais linhas de ação se constituindo para uma abordagem de saúde mental no contexto das mudanças climáticas.
A primeira dessas linhas parte da ideia de que as mudanças climáticas intensificam fatores de risco para problemas de saúde mental, e podem levar ao desenvolvimento de problemas de saúde mental e ao agravamento daqueles já existentes. Ou seja, as mudanças climáticas, somadas a experiências de vulnerabilidade e problemas ambientais e econômicos, podem levar ao tensionamento das relações sociais, sentimentos de medo e tristeza, e experiências entendidas como estresse, ansiedade e depressão.
É nessa linha que temos observado emergirem novos conceitos para descrever sentimentos pessoais e coletivos relativos às mudanças climáticas, como eco-ansiedade (ou ansiedade climática) e solastalgia. A compreensão aqui é que as mudanças climáticas podem causar sofrimento, vivido como problema de saúde mental pelas pessoas, e que muitas vezes ganha o nome de um diagnóstico psiquiátrico, esteja ele consolidado e ou em invenção. Daí, suas respostas se centram na oferta de cuidados de saúde mental com abordagens mais ou menos individualizadas.
Pensar a resposta às mudanças climáticas a partir do coletivo
Por sua vez, a segunda linha parte da constatação de que mudanças climáticas tornam mais frequentes emergências relacionadas a eventos climáticos extremos, com impactos que afetam a vida em geral, incluindo a saúde mental das pessoas.
Aqui, a resposta consiste em integrar o componente da saúde mental nas respostas ampliadas ao problema da emergência climática. As ações possíveis incluem estruturação e disponibilização de serviços em vários níveis, mobilização de suporte comunitário e apoio social, oferta de primeiros cuidados em saúde mental para sofrimento agudo, fortalecimento dos cuidados de saúde mental ofertados nos sistemas de saúde, proteção e promoção dos direitos das pessoas com problemas de saúde mental graves, e construção de fluxos e mecanismos de encaminhamentos entre serviços baseados na comunidade, incluindo os de assistência emergencial que fornecem comida, água e abrigo.
Nesse caso, a compreensão é que as mudanças climáticas provocam emergências climáticas em grande escala, sendo preciso responder à situação de emergência em sua complexidade. Daí a abordagem focada na organização de sistemas e estruturas de gestão, incluindo oferta de cuidado, em uma resposta de saúde pública integrada às necessidades gerais das pessoas e comunidades, sendo a saúde mental uma das dimensões da vida que é inteiramente impactada.
É inegável que alguns grupos populacionais estão mais em risco do que outros no contexto das mudanças climáticas, dependendo das vulnerabilidades e desigualdades existentes. No último relatório do The Lancet Countdown, Marina Romanello e colegas constatam que, “embora nenhuma região não seja afetada, as populações mais vulneráveis e minoritárias, que muitas vezes contribuíram menos para as mudanças climáticas, são desproporcionalmente afetadas”.
Isso, elas argumentam, é “uma consequência direta de injustiças estruturais e dinâmicas de poder prejudiciais, tanto entre os países quanto dentro deles”.
Enfrentar as iniquidades sociais para promover saúde mental
Em outubro de 2024, foi apresentado na Assembleia Geral das Nações Unidas um novo relatório do Relator Especial para Pobreza e Direitos Humanos da ONU, que trata da relação entre pobreza e saúde mental. O relatório sustenta com base em estudos que há uma relação significativa entre situação de maior pobreza e experiência de problemas de saúde mental. Isso se dá não exatamente pela renda mais baixa – mas porque, em razão da desigualdade e insegurança econômica pela diferença de renda, as pessoas de baixa renda vivem estresses constantes e condições de vida desfavoráveis.
Fatores como insegurança alimentar, moradia precária e vulnerabilidade a conflitos e violência também são listados como catalisadores de problemas de saúde mental. Afinal, são problemas na vida das pessoas. Ou seja, o contexto de vida impacta a saúde mental – algo óbvio, mas que segue sendo negligenciado nas respostas aos problemas de saúde mental, incluindo no cenário de mudanças climáticas, mesmo com a relação entre saúde mental e determinantes sociais sendo há tempos estabelecida.
É preciso lembrar que a experiência de sofrimento se dá nos cenários da vida cotidiana e nas relações. Portanto, a resposta em saúde mental – com foco nos indivíduos ou na organização de sistemas – precisa partir do reconhecimento das possibilidades que são ofertadas às pessoas e comunidades e o que é vivido por elas. Se alguém tem ou não moradia adequada, trabalho e renda seguros e relações de suporte de qualidade, sua experiência do impacto das mudanças climáticas muda radicalmente. E se isso é determinante da experiência, é nisso que as políticas públicas e legislações precisam incidir.
Reconhecer isso é necessário para romper com uma visão restrita de causa-efeito de mudanças climáticas e sofrimento individual – que tantas vezes é reduzido ao nome de estresse, ansiedade e depressão, e produz frágeis respostas focadas em terapia e medicalização que não alteram os fatores que determinam sofrimentos.
Mesmo considerando o que tem se denominado de ecoansiedade, uma espécie de preocupação em relação às mudanças climáticas, não é preciso muito para concluir que é mais eficaz construir políticas e leis sérias de proteção ambiental e de preparação de sistemas para lidar com mudanças climáticas. Promover a experiência de segurança e amparo a partir do conhecimento de que se tem moradia adequada, rede de suporte e trabalho assegurado – essa abordagem vai muito mais longe do que ofertar formas individuais de terapias para lidar com o sofrimento das pessoas.
Uma abordagem de saúde mental na resposta às mudanças climáticas requer – como requer qualquer abordagem de saúde mental – produzir respostas às desigualdades sociais.
Fonte: Outra Saúde / Porto Alegre durante enchentes entre o final de abril e início de maio de 2024. Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini