Declarações na CCJ expõem contradições do governo sobre o PL da dosimetria e reforçam acusações de articulação nos bastidores
Por Cleber Lourenço – Quarta, 17 de dezembro de 2025
O senador Alessandro Vieira (MDB-SE) acusou, durante a votação do PL da dosimetria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, a existência de suposto “grande acordo” para viabilizar o texto, envolvendo governo, oposição e até o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
A declaração foi feita em plenário, no momento mais tenso da sessão, e ampliou o desgaste político em torno da proposta, apresentada oficialmente como uma tentativa de modular penas aplicadas aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro.
Durante sua intervenção, Alessandro Vieira afirmou: “Quem nos acompanha está com dificuldade de entender o que está acontecendo. E eu sou um defensor da democracia, e democracia, repito, é o respeito pela decisão da maioria, mesmo quando a gente não concorda. Isso que está acontecendo aqui, a céu aberto”, disse.
“Mas, nos bastidores, o que está acontecendo é um grande acordo que envolve diretamente o ministro Alexandre de Moraes, que se entende no direito de interagir com os senadores e deputados, sugerindo inclusive texto, enquanto ao mesmo tempo, na tribuna da Suprema Corte, verbaliza o contrário”, completou..
O senador prosseguiu dizendo que “este texto que estamos votando é fruto de um acordo. Um acordo entre o governo Lula, parte da oposição e o ministro Alexandre de Moraes, dentre outros ministros que já verbalizam por aqui”. Vieira afirmou ainda que pode declarar “com absoluta tranquilidade” que Moraes “interagiu com senadores por diversas vezes em defesa desse texto”.
Na avaliação do parlamentar, o projeto produz efeitos contraditórios. “Esse texto vai beneficiar as pessoas que foram usadas como massa de manobra? Sim. E isso é bom. Ao mesmo tempo, vai beneficiar lideranças do movimento dito golpista, o que não é bom. Mas o conjunto da obra é resultado de um acordo, que se reconheça isso”, afirmou.
As declarações de Vieira dialogam diretamente com as acusações feitas pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), que apontou a existência de um acordo articulado pelo governo para permitir o avanço do projeto.
Para Renan, o texto aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado não corresponde ao que teria sido previamente apresentado aos senadores em reuniões reservadas, o que aumentou a desconfiança em torno da condução da matéria.
Alessandro Vieira afirmou ainda que a construção do texto e a forma como a votação foi conduzida revelam uma tentativa de acomodar interesses políticos sob o argumento de reduzir tensões institucionais.
“Não estamos falando de um ajuste pontual, mas de uma engenharia política ampla, que tenta resolver um problema criando outro”, afirmou. Para o senador, esse tipo de arranjo produz um efeito perverso ao normalizar negociações envolvendo crimes contra o Estado Democrático de Direito.
A repórter do ICL Notícias, Manuela Borges, entrevistou o senador Alessandro Vieira após a sessão na CCJ. Confira o vídeo:
A atuação de Jacques Wagner e a controvérsia sobre a articulação do governo
Na mesma sessão, o líder do governo no Senado, Jacques Wagner (PT-BA), explicou sua atuação durante a votação e afirmou que esteve ausente de parte da sessão por estar em reunião ministerial com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Eu quero começar explicando o motivo pelo qual eu estive aqui na sessão, mas não pude ficar porque eu estava na reunião ministerial do presidente Lula, a última do ano. Tanto eu quanto o senador Randolfe. E, portanto, foi até difícil eu sair para vir cá, porque o presidente exigia a presença de todos”, disse.
Wagner afirmou que decidiu atuar por conta própria para destravar a tramitação. “Eu fiz sem consultar o Presidente da República ou a ministra Gleisi, porque eu acho que quem está na política tem que ter coragem de se arriscar. A política sem risco não tem graça. E me arrisquei. Não me arrependo de ter vindo aqui pra ter feito um acordo de procedimento e não de mérito”, declarou.
Segundo o senador, a posição do governo e do PT foi contrária ao conteúdo do projeto. “No mérito, meu partido fechou questão contra esta matéria. O governo orientará contra essa matéria porque eu não acho menor o crime contra a democracia. O que nós vimos em 8 de janeiro de 23 é muito grave”, afirmou.
Ao tratar do alcance do texto, Wagner fez uma das críticas mais duras ao projeto. “O que mais me incomoda é que nós não estamos tentando equacionar um problema do 8 de janeiro como a lei é. Ela é perene. Nós quase que estamos dizendo a quem queira de novo fazer uma insurgência contra a democracia: já tem uma proteção”, disse.
Para ele, a progressão de pena prevista funciona como um estímulo. “É quase que um convite. Pode bagunçar com a democracia que apenas será abrandada como está no texto”, afirmou.
Nos bastidores, porém, a avaliação de senadores que acompanham de perto a articulação política do Senado é amplamente negativa em relação à atuação de Wagner.
Segundo esses parlamentares, a negociação foi tratada como uma iniciativa pessoal do líder do governo, sem respaldo coletivo, descrita como uma articulação atrapalhada, desnecessária e sem qualquer obrigação política real de acontecer.
Para esse grupo, não havia ambiente adverso à tramitação do projeto que justificasse a pressa nem a construção de uma troca envolvendo outro tema legislativo.
A avaliação negativa é reforçada pelo próprio Wagner, que assumiu a responsabilidade pela articulação e disse que repetiria a decisão.
“Eu não tenho nenhum problema. Fiz. Faria de novo. Não negociei mérito, negociei procedimento. Concordamos em procedimento”, afirmou. Ao final, dirigiu-se aos colegas: “Se tiverem que bater, a responsabilidade é minha. Que batam em mim. Eu não tenho nenhum problema nem arrependimento do que fiz”.
Nos bastidores, no entanto, a leitura de senadores que acompanharam a articulação é de que a atuação de Wagner foi além de uma simples negociação de rito. Segundo esses relatos, aliados defendiam que a matéria fosse adiada por meio de um pedido de vista mais longo, de cinco dias, o que empurraria a votação para o ano que vem. Essa alternativa chegou a ser discutida com o presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA), mas foi descartada após intervenção direta do líder do governo.
A estratégia foi duramente criticada por parlamentares ouvidos pela reportagem, que afirmam não haver qualquer necessidade política para esse tipo de troca. Segundo senadores ouvidos pelo ICL Notícias, não havia indicativo de que a taxação das bets ou a redução de benefícios fiscais no Senado enfrentariam resistência ou dificuldades que justificassem um acordo dessa natureza. O próprio Senado havia aprovado, semanas antes, a taxação de fintechs com ampla maioria, registrando apenas um voto contrário.
Durante sua intervenção, Jacques Wagner assumiu a responsabilidade pela articulação e afirmou que repetiria a decisão. “A responsabilidade é minha. Se tiver que bater, batam em mim. Eu faria tudo novamente”, disse o senador, reforçando que sua intenção teria sido reduzir danos institucionais.
Esses senadores afirmam ainda que já havia, antes da sessão, a leitura de que quanto mais a votação do projeto de anistia ou de dosimetria fosse adiada, maior seria o escrutínio público sobre o texto, o que tenderia a dificultar sua aprovação e aumentar o desgaste político dos defensores da proposta. Mesmo diante desse cenário, Wagner optou por avançar com a articulação, assumindo o ônus político da decisão e transferindo o desgaste para o próprio governo.
A soma das falas públicas e das informações de bastidor expõe uma contradição central na estratégia do governo. Enquanto oficialmente orienta voto contrário e afirma rejeitar qualquer flexibilização em crimes contra a democracia, a liderança governista atuou para garantir que o projeto avançasse na CCJ, apostando em vetos presidenciais e eventual questionamento de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
Para críticos do PL, esse cálculo transfere ao STF a responsabilidade de corrigir um problema criado no Legislativo, normalizando a tramitação de propostas sensíveis com base na expectativa de controle posterior.
A votação na CCJ, marcada por acusações cruzadas e discursos duros, evidenciou que o PL da dosimetria se tornou mais do que um debate penal: virou um teste político sobre os limites da negociação quando estão em jogo os pilares do Estado Democrático de Direito.
Fonte: ICL Noticias /