- Chris Baraniuk
- BBC Future – Domingo, 15 de maio de 2022
As coisas que as pessoas jogam no lixo podem revelar de tudo — desde a alimentação desregrada, passando por hábitos sexuais e até segredos da Coreia do Norte!
Boiando sobre o esgoto, retida por um cabo convenientemente longo, lá estava uma pequena rede de pesca. Um funcionário municipal de Baltimore, nos Estados Unidos, inclina a rede suavemente no lodo fétido e retira da superfície seu prêmio tão cobiçado: um preservativo usado.
No final dos anos 1980 (época do auge da epidemia de Aids nos Estados Unidos), uma equipe de especialistas de saúde quis monitorar se as pessoas estavam seguindo as recomendações de praticar sexo seguro. Para isso, eles começaram a contar os preservativos lançados no esgoto, que acabavam nas estações de tratamento. E, no início de 1988, os funcionários estavam encontrando 200 a 400 preservativos todos os dias.
“Claro que não é um trabalho muito agradável, mas é importante”, contou na época à agência de notícias Associated Press um supervisor de monitoramento da Aids da secretaria de saúde local.
Desde então, autoridades de outros países vêm utilizando o mesmo método. Em 2006, trabalhadores dos esgotos de Eswatini (antiga Suazilândia) estimaram que o uso de preservativos havia aumentado em 50% naquele país africano.
Eles observaram que os contraceptivos têm o tamanho exato para obstruir o segundo conjunto de filtros das estações de tratamento, o que permite que eles sejam contados. Zâmbia também observou um grande aumento do uso de preservativos em 2015, quando milhares deles entupiram os esgotos da capital, Lusaka.
O lixo pessoal, mesmo nas suas formas mais repugnantes, é outra fonte de dados sobre uma pessoa. Os resíduos, sejam eles lançados ao esgoto, descartados ou reciclados, carregam um mundo de informações sobre as escolhas e comportamentos das pessoas, que muitas vezes não podem ser obtidas de outra forma.
‘Janela para a vida real das pessoas’
As pessoas que se atrevem a examinar os detritos humanos são chamadas de “garbologistas” e seus esforços nos ajudam a entender de tudo, desde a saúde e as escolhas alimentares das pessoas até as ações de regimes políticos cheios de segredos.
Existe uma clareza reconfortante no estudo do lixo, para o antropólogo Thomas Hylland Eriksen, da Universidade de Oslo, na Noruega. “Ele oferece uma janela muito direta e privilegiada para a forma de viver real das pessoas”, afirma ele.
O termo “garbologia” foi criado pelo escritor e ativista americano A. J. Weberman no início dos anos 1970, mas foi o antropólogo William Rathje, também americano, quem levou a garbologia para o terreno científico, poucos anos depois.
No seu estudo agora famoso, The Tucson Garbage Project (“O projeto do lixo de Tucson”, em tradução livre), Rathje e seus colegas vasculharam aterros sanitários, escavando e classificando grandes pilhas de resíduos descartados pelos moradores da cidade que fica no Estado americano do Arizona.
Ele também comparou (mediante permissão) o conteúdo das latas de lixo de indivíduos com o que eles informavam em questionários sobre seus hábitos de comida e bebida — e descobriu que as pessoas claramente minimizam a quantidade de alimentos não saudáveis e de álcool que elas consomem.
Nas décadas que se seguiram, a garbologia também viria a ajudar os pesquisadores políticos e historiadores frente à inexistência ou difícil acesso às fontes oficiais de informação.
Lixo histórico
Na década de 1990 e no início dos anos 2000, pesquisadores perceberam que eles poderiam desvendar a história da Revolução Cultural chinesa pesquisando pilhas de resíduos de papel jogadas fora por autoridades ou moradores locais.
Jeremy Brown, historiador da Universidade Simon Fraser, no Canadá, foi um desses pesquisadores. Frustrado pelo acesso limitado que lhe foi concedido aos arquivos oficiais, ele ia todos os fins de semana aos mercados de pulgas de Tianjin, no norte da China, à caça de resmas de documentos descartados e agrupados para venda.
Quando os vendedores dos mercados de pulgas souberam o tipo de coisas que ele estava procurando, eles passaram a procurar em pilhas de lixo. Graças aos esforços desses comerciantes, Brown conseguiu adquirir documentos que demonstravam, por exemplo, como a deportação de pessoas da área urbana para a zona rural havia sido orquestrada pelos governos locais.
“Foi uma grande descoberta que nunca teria sido possível sem os mercados de pulgas, sem essas coisas que estavam a caminho da destruição”, ele conta.
Mais recentemente, a garbologia ajudou outras pessoas que tentavam pesquisar sobre um país ainda mais fechado e enigmático: a Coreia do Norte. Em fevereiro, o jornal inglês The Guardian noticiou que o professor sul-coreano Kang Dong-wan havia recolhido mais de 1,4 mil embalagens de produtos norte-coreanos, levadas pela água ao longo do litoral da Coreia do Sul.
O interessante dessa pesquisa é que as embalagens de doces mais recentes eram coloridas e sofisticadas, indicando mudanças culturais sutis em um país onde a vida diária sofre fortes restrições.
Enquanto isso, o arqueólogo Grzegorz Kiarszys, da Universidade de Szczecin, na Polônia, vasculhou o lixo encontrado em volta de algumas bases táticas abandonadas de armas nucleares soviéticas, esperando encontrar indicações sobre as atividades secretas realizadas no local.
Ele afirma que técnicas remotas, como fotografias aéreas e varreduras a laser, além de imagens públicas de satélites dos anos 1960 e 1970, ajudaram-no a estudar alguns desses locais. Mas foi através da pesquisa do lixo encontrado nas antigas bases que ele conseguiu formar um panorama de como era a vida das pessoas que moravam ali.
Os resíduos são, em grande parte, domésticos. Há muitas lâminas de barbear, batons, máscaras e sacos de leite em pó vazios — além de brinquedos, já que as famílias dos soldados haviam sido destacadas para esses locais. Curiosamente, ele encontrou brinquedos relativamente caros, como peças de Lego, que não eram disponíveis para o público em geral durante a era comunista na Polônia.
“Parece que as autoridades soviéticas tinham algum acesso a moeda estrangeira”, ele conta.
O lixo, embora seja rapidamente esquecido pelos que o produzem, inevitavelmente age como uma expressão um tanto grosseira da sociedade. Leila Papoli-Yazdi, arqueóloga da Universidade Linnaeus, na Suécia, usou a garbologia para melhor compreender a demografia das pessoas que vivem na capital iraniana, Teerã.
Pesquisando o lixo doméstico que é descartado nos cestos colocados nas esquinas da cidade, ela conseguiu detectar diferenças claras entre os diversos bairros. Havia, por exemplo, amplas evidências de uso de drogas nos bairros de renda mais baixa.
Em uma região, ela e sua equipe se surpreenderam ao encontrar uma quantidade incomum de papel nos sacos de lixo que elas examinaram. Ocorre que a população local havia mudado nos últimos anos e agora representava um grupo de indivíduos da classe média que haviam sido malsucedidos, mas eram mais propensos a ler jornais que os moradores das classes mais baixas.
“Os novos moradores, principalmente pessoas com formação, mas sem emprego, incluíam professores, trabalhadores desempregados [e] comerciantes falidos [que] não tinham mais condições de alugar uma casa nos bairros mais caros, devido à crise econômica da última década”, escreveu Papoli-Yazdi em um estudo de 2021 descrevendo seu trabalho.
Lixo comercial
Paralelamente a esses estudos acadêmicos, a garbologia tornou-se um instrumento atraente para as empresas.
Nos anos 1970, havia uma marca de iogurtes popular no Reino Unido chamada Ski, que enfrentava a concorrência das marcas rivais Prize e Cool Country. Stephen Logue, empresário que foi gerente de produtos da Ski, relembra como a empresa contratou um escritório chamado Auditores da Grã-Bretanha (AGB) para conduzir uma “auditoria de cestos de lixo” em milhares de residências.
As pessoas eram pagas para colocar embalagens de diversos produtos domésticos, incluindo iogurtes, em um cesto separado na hora de jogar fora. Analistas recolhiam regularmente os cestos e inspecionavam seu conteúdo, para ver quais marcas tinham maior consumo que outras.
“Tudo era feito às claras”, afirma Logue. Ele observa que o fato de que as pessoas sabiam que seu lixo seria examinado pode ter feito com que elas fossem mais seletivas sobre o que colocar no cesto separado, mas esse efeito talvez diminuísse ao longo do tempo.
De qualquer forma, Logue conseguiu os dados que queria. “Conseguimos ver que a Ski estava indo bem”, relembra ele.
Rastrear as compras das pessoas ficou muito mais fácil com o surgimento dos códigos de barras e cartões de fidelidade, que permitem que os varejistas registrem cada produto vendido.
As compras online oferecem dados ainda mais específicos. Mas, para quem trabalha em marketing, a garbologia também oferece uma interessante visão realista.
Datha Damron-Martinez, professora de marketing aposentada da Universidade Estadual Truman em Missouri, nos Estados Unidos, afirma que, no seu trabalho como consultora, ocasionalmente ela costumava propor o uso da garbologia como forma de pesquisa de observação para empresas que quisessem conhecer mais sobre as tendências de consumo de uma população alvo.
Ela e sua colega Katherine Jackson também usaram a garbologia como instrumento de ensino, em que os alunos traziam cestos de lixo dos seus quartos. Outros alunos, que não sabiam a quem pertencia o lixo, examinavam os cestos para tentar deduzir qual tipo de pessoa havia jogado fora aquelas coisas específicas.
Damron-Martinez conta que frequentemente ficava surpresa com a quantidade de revelações que o processo trazia. Ela relembra um caso em que a namorada de um aluno havia colocado seu próprio lixo ao cesto sem o conhecimento dele.
“Os alunos pegaram o lixo e disseram ‘isso tem que ser o lixo de duas pessoas, por este motivo'”, relembra Damron-Martinez.
Mas vasculhar o lixo tentando conseguir uma vantagem competitiva no mercado nem sempre é uma boa estratégia. Em 2001, a multinacional Procter & Gamble (P&G) suspendeu um projeto de “mergulho no lixo” que pretendia conseguir informações sobre a Unilever, sua concorrente no setor de produtos para os cabelos.
Embora a P&G insistisse em afirmar que não havia desrespeitado nenhuma lei, a empresa admitiu que a atividade estava “fora da nossa política rigorosa de obtenção de informações comerciais dos concorrentes”.
Lixo acumulado e tóxico
Pode haver um ponto perturbador sobre a garbologia, além do espectro de espionagem. Ela chama a atenção para a enorme quantidade de lixo disponível, esperando para ser escavado ou simplesmente retirado e analisado.
O antropólogo Eriksen argumenta que as gigantescas pilhas de lixo que hoje sujam o planeta são sintomas do que ele chama de “modernidade superaquecida”.
“Tudo vem se acelerando”, explica ele — do comércio até o lixo. “Existe algo sobre a forma em que a civilização global está sendo administrada — ou não está sendo administrada — que nos mostra que existem muitas coisas que estão fora de controle.”
Particularmente, as comunidades mais remotas e tradicionais às vezes produzem muito menos lixo. Um estudo de Ann Marie Wolf, diretora-executiva do Instituto de Pesquisa Ambiental Sonora em Tucson, no Arizona (Estados Unidos), e suas colegas analisou em 2003 os resíduos descartados pelo povo nativo americano Tohono O’odham.
Os pesquisadores concluíram que eles representavam menos de um terço da média americana de lixo sólido diário de cada pessoa. E também continham muito menos material perigoso que o habitual em outras partes do país.
Quem também calculou a ubiquidade e a toxicidade do lixo à nossa volta foi o antropólogo de saúde Jeremiah Mock, da Universidade da Califórnia em São Francisco, nos Estados Unidos. Ele nem precisou vasculhar o cesto de lixo de alguém. Mock simplesmente andou pelos estacionamentos no lado externo das escolas, recolhendo pontas de cigarros e vaporizadores.
“Para minha surpresa, comecei a encontrar cápsulas e tampas de Juul (tipo de cigarro eletrônico) com muita rapidez e por toda parte”, relata ele. Um estudo de 2019 descreveu como esses produtos representam cerca de um quinto do lixo relacionado ao fumo que ele encontrou em 12 escolas de ensino médio da Califórnia.
Mock se lembra de levar para audiências públicas sacos do lixo que havia recolhido, de forma que os legisladores locais pudessem ver por si próprios. Enquanto eles observavam, o odor dos fluidos de vaporização emanava de dentro dos sacos: “Era literalmente tangível, eles olhavam as coisas e ficavam horrorizados”, relembra Mock.
Em 2019, muitas cidades da Califórnia proibiram a venda de Juul e de outros produtos de vaporização. A pesquisa de Mock continua e ele afirma que permanece preocupado com o volume de lixo relativo ao fumo que segue encontrando, especialmente considerando como ele pode ser perigoso. As pontas de cigarro podem conter substâncias químicas tóxicas, que incluem formaldeído, arsênio e chumbo.
“Quando você olha os milhares de itens que encontramos jogados no lixo, é algo realmente espantoso”, afirma ele. “Porque eles estão em toda parte.”
Lixo virtual
As pessoas agora enchem de lixo até os espaços virtuais. Jared Hansen, candidato ao grau de PhD em jornalismo e comunicação na Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, passou horas vagueando pelo jogo online Animal Crossing, procurando coisas que as pessoas jogaram fora — no ciberespaço.
Graças a uma função que permite explorar cidades virtuais visitadas por outros jogadores sem interferir concretamente no jogo, Hansen conseguiu documentar exemplos de itens do jogo que as pessoas aparentemente perderam ou descartaram.
“Havia evidências espalhadas entre as árvores de uma busca anterior para capturar uma abelha”, escreveu ele em um estudo publicado em 2021. Ele se referia às diminutas colmeias digitais descobertas por ele, entre outros itens descartados em um pomar no jogo.
De forma geral, suas descobertas refletem os longos esforços das pessoas que jogam Animal Crossing para adquirir objetos digitais e progredir no jogo. O lixo, escasso e associado a tarefas específicas, indica o comportamento parcimonioso de uma sociedade cuidadosa, argumenta ele, acrescentando que ele agora observa itens virtuais descartados em outros jogos multijogador online de outra forma.
“Fico atento aos itens descartados que ninguém quer”, afirma ele. “Por que isso está sendo desprezado?”
Prestar atenção é o que realmente importa atualmente com relação ao lixo, já que quase ninguém pensa duas vezes sobre ele. A garbologia é fascinante pelo que pode dizer sobre uma pessoa ou uma sociedade. Mas, em outro nível, mais fundamental, é uma das poucas formas que temos de combater o imenso volume e complexidade das montanhas de lixo que estamos construindo.
Os garbologistas estão entre as poucas pessoas que se preocupam em examinar essa massa descartada e esquecida. São eles que se ocupam de observar o quanto todos nós jogamos fora e perguntar: “O que significa tudo isso?”.
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site da BBC Future.
Fonte: BBC Brasil