‘Pacto Brutal’, na HBO Max, traz a versão do julgamento e explora trama de sangue, sexo, fama e suspeitas de magia negra
Na virada dos anos 2000, Gloria Perez se viu embalando a urna com os restos mortais da filha, a atriz Daniella Perez, como se estivesse diante de um bebê. O corpo tinha sido exumado do túmulo, no cemitério São João Batista, na zona sul do Rio de Janeiro, depois que a sepultura foi violada e pichada com a frase “a morte não é o fim”, não sem antes ter virado um ponto de peregrinação de gente que atribuía milagres à artista assassinada.
Ao abrir o caixão para a exumação, a roteirista diz que viu a moça intacta, exatamente como havia sido velada, aos 22 anos de idade, muito embora fossem evidentes, para todos ao redor, os sinais inquestionáveis da decomposição depois de sete anos da morte.
O evento, contado na minissérie “Pacto Brutal”, é um dos muitos que acrescentam camadas insólitas a um enredo que já é insólito pela própria natureza – o assassinato de uma das mocinhas da novela das oito, levado a cabo pelo ator que era seu parceiro de cena, e com o detalhe essencial de que a vítima era filha da própria autora da trama. Isso tudo no país que tem na teledramaturgia o carro-chefe de sua indústria cultural, ainda mais naquela época.
O seriado documental estreia nesta quinta-feira (21) na HBO, na esteira do aniversário de 30 anos do caso, em dezembro deste ano. Além dele, a editora Record lança em breve o livro “Daniella Perez: Biografia, Crime e Justiça”, em processo de finalização por Bernardo Braga Pasqualette, mesmo autor de “Me Esqueçam”, sobre o ex-presidente Figueiredo.
Os dois se debruçam sobre as nuances de um crime que talvez seja o mais ruidoso do mundo da cultura brasileira – uma espécie de variante local do caso Charles Manson, não só pela crueldade de seus pormenores, mas também por ter vítima e algoz orbitando o mesmo universo do showbiz.
Não à toa, ofuscou até a renúncia de Collor, no mesmo dia.
“Muita gente se lembra de onde estava quando ouviu a notícia. Marcou o Brasil”, diz Tatiana Issa, que divide a direção de “Pacto Brutal” com Guto Barra. Ela, no caso, era atriz e estava no ar na novela das sete “Deus nos Acuda”, que também tinha no elenco Raul Gazolla, marido de Daniella Perez – que por sua vez era a revelação de “De Corpo e Alma”, novela das oito escrita pela mãe dela, Gloria Perez.
A proximidade de Issa com o meio ajudou no acesso à roteirista e a globais e ex-globais, como Fábio Assunção, Claudia Raia e Alexandre Frota, que destilam suas lembranças. Além deles, a série traz ainda entrevistas de promotores, investigadores e parentes, que reconstituem a noite do crime e seus desdobramentos.
Para os brasileiros que talvez não tivessem nascido, a história é a seguinte – o corpo de Daniella Perez, atriz em ascensão na Globo, foi encontrado no matagal de uma então pouco adensada Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, na noite de 28 de dezembro de 1992, com 18 perfurações, a maioria concentradas na região do coração. O relato de uma testemunha levou a polícia a Guilherme de Pádua, colega de elenco da vítima, e à mulher dele, Paula Thomaz.
Cada um dos dois foi condenado por homicídio qualificado a uma pena de quase 20 anos de prisão, após o júri popular acatar a tese da acusação de que o casal premeditou o crime – ela, por ciúmes do marido; ele, por vingança contra a autora da novela, já que seu papel na trama vinha sendo reduzido. O ator não queria deixar o romance da trama acabar, é o que defende a tese do seriado.
Os dois têm versões diferentes. Paula Thomaz nega que tenha participado do crime. Guilherme de Pádua, que em depoimentos à polícia assumira a culpa pelo crime, depois passou a sustentar a tese de que a sua então mulher, tomada de ciúmes pela relação dos dois parceiros de cena, é quem teria se atracado com Daniella Perez no matagal.
“Pacto Brutal” opta por não reconstituir o assassinato em si, nem a versão da acusação nem as versões da defesa, poupando o espectador do que há de mais de mórbido em obras do gênero “true crime”, e prefere investir na força das descrições tiradas das entrevistas.
Gloria Perez relata a primeira visão que teve do corpo da filha, estirado e cercado de fotógrafos, e de como tentou fechar os olhos dela, em vão. Raul Gazolla, o viúvo, fala da “certeza de que temos alma”, conclusão a que chegou depois que disse não ter reconhecido no cadáver aquela que havia sido sua mulher, como se o fundamental dela não estivesse mais ali no mato. Mais tarde, no enterro, ele teve um ataque, gritou e caiu em posição fetal, segundo os seus colegas de televisão.
Alexandre Frota e Claudia Raia estavam entre os que foram à delegacia logo em seguida ao crime. Ela diz que viu um arranhão no braço de Guilherme de Pádua, ainda antes de ele ser indiciado, e estranhou. “Guardei para mim”, conta.
Entre os capítulos igualmente insólitos dessa história, a série rememora como os atores da Globo fizeram um mutirão, interfonando a esmo em prédios da zona sul carioca à procura de um foragido Guilherme de Pádua, antes de ele se entregar finalmente. Ou de como Frota e Maurício Mattar é que tomaram a dianteira, subindo numa mureta para acalmar a multidão que se formou para acompanhar o enterro.
A ideia de um pacto é o que conduz a série, que tem por fio narrativo um longo depoimento de Gloria Perez. “Essa história ganhou várias versões na imprensa, mas a verdade nunca foi contada”, diz Tatiana Issa, uma das diretoras da obra. É o que explica por que, diz ela, nem os condenados nem seus advogados à época foram procurados pela produção.
“Foi uma decisão nossa, como documentaristas”, diz Guto Barra, que divide a direção com ela. “Eles tiveram bastante espaço na imprensa para contar versões do crime, que não foram comprovadas. E, ao contrário do jornalismo tradicional, a gente acha que no documentário não precisaríamos ir para esse outro lado.”
Não é o que pensa Paulo Ramalho, defensor de Guilherme de Pádua no julgamento, e que é retratado na série como um sujeito histriônico, disposto a causar tumulto. “Como arte, a série será um fracasso, mas como desabafo merece respeito”, diz ele, a este repórter.
“Só não quero ser rufião da desgraça alheia”, ele completa, evitando falar sobre o caso judicial que o projetou. A repercussão foi tanta que o levou a virar inspiração de personagem na “Escolinha do Professor Raimundo”, o advogado Pedro Pedreira, que contestava até as verdades mais evidentes.
O fato de a produção não ter procurado os condenados nem os seus defensores foi aventado pela imprensa como explicação para a série ter ido parar na HBO, e não na Globo, onde seria mais natural, já que a emissora carioca não teria topado essas condições.
Procurada ao longo de um dia, a Globo não respondeu ao questionamento deste repórter. Os diretores negam que coisa do tipo tenha acontecido.
“A gente já tinha feito vários projetos na HBO e a coisa andou rápido lá”, diz Issa. “E a Globo foi muito generosa em licenciar imagens de arquivo.”
“Contar a verdade” é o mantra que os diretores entoam, por mais que o caso seja um cipoal de versões e contradições. Tampouco ajuda que jornalistas à época tenham contribuído para confundir o que se dava nas telas e fora delas. “Há várias críticas que a gente traz na série, como a questão da culpabilização da vítima e o papel da imprensa”, diz Issa.
Como mostra a produção, de repente não era mais Guilherme de Pádua quem era acusado de matar Daniella Perez, mas Bira é quem matara Yasmin – o nome dos personagens cravados nas manchetes.
Relembre a trama da novela ‘De Corpo e Alma’
No enredo de “De Corpo e Alma”, Yasmin tinha um envolvimento com o explosivo motorista de ônibus Bira, embora o seu amor fosse Caio, vivido por Fábio Assunção, que deixava os papéis teen para encarar o galã. Ela era irmã da protagonista, Paloma, interpretada por Cristiana Oliveira.
Com a novela, que foi ao ar em agosto de 1992, Gloria Perez, discípula de Janete Clair, voltava à TV Globo e assumia a sua primeira trama das oito em voo solo. O enredo principal girava em torno de Paloma, que recebia o coração transplantado de outra mulher, Betina, grande amor de Diogo, papel de Tarcísio Meira. Os dois acabavam se apaixonando, numa narrativa que ainda tratava da ascensão dos góticos e do fenômeno dos clubes das mulheres, com strippers masculinos.
Daniella Perez, então com 22 anos, era filha da roteirista e uma jovem promessa que havia atuado em novelas como “Barriga de Aluguel” e “O Dono do Mundo” e, antes disso, em “Kananga do Japão”, na Manchete -este último enredo se aproveitava de seus dotes de dançarina, que tinha no balé a sua grande paixão, e se tornou não só seu passaporte para a TV como a fez conhecer o futuro marido, Raul Gazolla.
“Wishing on a Star”, na versão do grupo feminino Cover Girls, era a canção-tema de Yasmin na trama de “De Corpo e Alma” e ganhou uma onipresença mórbida nas rádios brasileiras após o crime.
Fonte: O Tempo