Por Eloy Rizzo Neto e André Luis Leme
A Lei Anticorrupção (Lei Federal nº 12.846/2013) não somente inovou ao introduzir a responsabilidade objetiva das empresas por práticas de corrupção e fraude à licitação/contratos públicos, como também trouxe em seu rol taxativo alguns atos lesivos que, por uma rápida leitura, parecem não estar relacionados às práticas que a referida lei visa coibir, mas que visam responsabilizar condutas que, de alguma forma, contribuam para sua ocorrência, sendo esse o caso do ato lesivo de patrocinar ou financiar atos de corrupção previsto no inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção.
A mensagem da Presidência da República ao apresentar o PL nº 6.826/2010 [1], que deu origem à Lei Anticorrupção, aos membros do Congresso Nacional deixa bastante claro esse objetivo: “O anteprojeto tem por objetivo suprir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Administração Pública, em especial, por atos de corrupção e fraude em licitações e contratos administrativos“.
Sobre essa lacuna preenchida pela Lei Anticorrupção, um contexto importante é que o Brasil, a partir da ratificação das convenções internacionais de combate à corrupção, especificamente, as convenções da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ficou sujeito ao monitoramento periódico por essas organizações acerca da implementação dos compromissos assumidos. Dentre os apontamentos desse monitoramento periódico, um dos principais pontos foi a ausência de uma legislação no Brasil que punisse as empresas por práticas de corrupção.
Nesse sentido, durante a tramitação do PL nº 6.826/2010, foi apresentado parecer no 649 de 2013 do Senado Federal [2] contendo as razões para aprovação do então projeto de lei conforme seguinte trecho:
“A corrupção é hoje, como se sabe, um dos grandes males que afetam a administração pública de grande parte das nações, desde as subdesenvolvidas até aquelas em estado avançado de desenvolvimento econômico e social.
(…) O controle da corrupção passou a ter, portanto, fundamental importância no fortalecimento das instituições democráticas e na viabilização do crescimento econômico dos países, motivo pelo qual foram elaboradas a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção e a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, das quais o Brasil é signatário.
Com isso, nosso país obrigou-se a punir as pessoas jurídicas que cometem atos de corrupção, contra a administração pública nacional e, em especial, aqueles denominados de suborno transnacional, caracterizado pela corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros e de organizações internacionais.
Surgiu daí, portanto, a necessidade de elaboração de legislação específica que alcançasse, por meio da responsabilização administrativa e civil, as pessoas jurídicas responsáveis pelos atos de corrupção descritos nos acordos internacionais, posto que os atos de corrupção ativa e passiva estabelecidos como crime em nosso direito penal têm o poder de atingir apenas as pessoas naturais”.
Isso posto, há duas conclusões iniciais a se fazer: a primeira é que a Lei Anticorrupção foi promulgada especificamente para prevenir e responsabilizar as pessoas jurídicas por práticas de corrupção ou fraudes em licitações e contratos públicos; e a segunda é sobre quais são os bens jurídicos tutelados pela referida lei conforme previsto no caput de seu artigo 5º: (a) o patrimônio público nacional ou estrangeiro; (b) os princípios da administração pública; ou (c) os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de corrupção. Portanto, qualquer interpretação acerca dos atos lesivos previstos no artigo 5º da Lei Anticorrupção deve estar, obrigatoriamente, em conformidade com seu propósito e os bens jurídicos por ela tutelados.
Com base nessas conclusões, é possível analisar os atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção e verificar que os incisos I e IV seriam normas de aplicação autônoma sendo que, numa simples leitura, resta claro em sua redação que a conduta em questão se refere a, respectivamente, atos de corrupção e fraude à licitação/contratos públicos. Por outro lado, verifica-se que os atos lesivos previstos nos incisos II, III e V do artigo 5º da Lei Anticorrupção seriam normas que dependem da aplicação de outras normas (aquelas dos incisos I e IV), ou seja, dependem da ocorrência de práticas de corrupção ou fraude à licitação e contratos públicos para que a Lei Anticorrupção seja aplicável.
Esse entendimento decorre da própria redação do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção “comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei” ao mencionar, expressamente, que o patrocínio, financiamento, subvenção terá como finalidade “a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei“. Dessa forma, não se trata da conduta de financiar, patrocinar ou subvencionar quaisquer atos ilícitos, mas somente aqueles previstos na Lei Anticorrupção, sob pena de se ter uma interpretação extensiva e contra a finalidade da lei, o que seria inadmissível. Portanto, a própria redação do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção já informa que, para configuração desse ato lesivo, será necessária a prática de corrupção ou fraude à licitação e contratos públicos.
Aqui não se trata da responsabilização da pessoa jurídica que se utiliza de intermediários (pessoa física ou jurídica) para praticar a corrupção, visto que essa conduta já estaria coberta pelo inciso I da Lei Anticorrupção que proíbe oferecimento de vantagem indevida para agente público tanto de forma direta quanto indiretamente. Assim, o propósito do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção seria responsabilizar aquelas empresas que não tenham, direta ou indiretamente, praticado o ato de corrupção (inciso I da Lei Anticorrupção), mas tenham contribuído de forma relevante para esse ato, por exemplo, patrocinando ou financiando o ato de corrupção praticado por outrem.
A mencionada mensagem da Presidência da República ao apresentar o PL nº 6.826/2010 traz esse propósito, especificamente, no seguinte trecho: “(…) com relação à responsabilização na esfera administrativa, a presente proposta de legislação prevê meios para impedir que novas pessoas jurídicas constituídas no intuito de burlar sanções impostas administrativamente mantenham relações com a Administração Pública. Tal prática gera uma cadeia de empresas constituídas com o proposito único de fraudar e lesar a Administração Pública, o que deve ser impedido. Ademais o anteprojeto cria mecanismos para combater a utilização de terceiros para ocultar os reais interesses da pessoa jurídica ou os verdadeiros beneficiários de determinadas condutas ilícitas“.
Para exemplificar, a conduta do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção seria o caso hipotético em que a empresa A contrata os serviços da empresa B cujo objeto não seria uma prestação de serviços legítimos (contrato fictício), de forma apenas a mascarar o pagamento de valores (financiamento) que será utilizado pela empresa B para o pagamento de vantagem indevida a um agente público (corrupção). Nesse caso hipotético, a empresa A poderá ser responsabilizada pelo ato lesivo do inciso II (financiamento) e a empresa B pelo ato lesivo previsto no inciso I (corrupção) ambos do artigo 5º da Lei Anticorrupção. Conclui-se, portanto, que a conduta da empresa A contribuiu de forma relevante para a prática de corrupção, na medida em que financiou a empresa B e possibilitou que esta praticasse o ato lesivo do inciso I.
O Manual de Responsabilização de Entes Privados publicado pela Controladoria Geral da União [3] traz exatamente esse entendimento ao discorrer sobre o ato lesivo do inciso II artigo 5º da Lei Anticorrupção:
“Trata-se de hipótese legal em que a pessoa jurídica será responsabilizada por ter, pelas formas descritas no tipo (financiamento, custeio, patrocínio, subvenção) concorrido para a prática de ato lesivo diverso, por outra pessoa jurídica. Busca-se responsabilizar todo tipo de auxílio a práticas de corrupção.
Tal dispositivo encontra amparo no artigo 27 da Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, bem como no artigo 1º da Convenção da OCDE de combate à corrupção de Funcionários estrangeiros. Ambos os tratados encorajam os estados compromissários a adotarem medidas legislativas para tipificação de práticas consubstanciadas em cumplicidade, auxílio ou incitamento de condutas corruptas.”
Se não houvesse o ato lesivo do inciso II, uma empresa que tenha comprovadamente financiado, patrocinado ou subvencionado a prática de corrupção de uma outra pessoa jurídica, mas que não tenha praticado direta ou indiretamente a corrupção, ou seja, cuja conduta não fosse enquadrada no ato lesivo do inciso I, essa empresa não seria responsabilizada pela Lei Anticorrupção apesar de ter contribuído de forma relevante para o ato de corrupção.
Apesar de o ato lesivo de patrocinar, financiar ou subvencionar ser uma norma de aplicação combinada com outra norma (ato lesivo I ou IV da Lei Anticorrupção), não quer dizer que a mesma pessoa jurídica possa ser responsabilizada por ambos os atos lesivos em razão de uma única conduta. Uma única conduta de uma mesma pessoa jurídica não poderia configurar, concomitantemente, o ato lesivo do inciso I e o ato lesivo do inciso II do artigo 5º da Lei Anticorrupção, ou seja, não poderia uma pessoa jurídica ser responsabilizada pelo ato de corrupção e também por financiar este ato em razão de uma mesma conduta.
Portanto, é imprescindível que se tenha um ato lesivo da Lei Anticorrupção praticado por outra pessoa jurídica por meio de uma outra conduta que poderá ser responsabilizada pelo ato de corrupção. Do contrário, o concurso de atos lesivos seria a regra e, consequentemente, a aplicação dessa majorante da pena não seria um fator agravante aplicado apenas nos casos que a justificassem, mas seria sempre aplicada para os casos de responsabilização pelo inciso I.
[1] Mensagem da Presidência de República a respeito do Projeto de Lei nº 6.826/10, em 8/2/2010.Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01y0vif4dwwszh1wip9i19phki1 609320.node0?codteor=735505&filename=Tramitacao-PL+6826/2010, acesso em 16/2/2023
[2] Parecer nº 649/2013 publicado pelo Senado Federal, em 5/7/2013. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4003724&ts=1630411033410&disposition=inline, acesso em 16/2/2023.
[3] https://www.gov.br/corregedorias/pt-br/assuntos/painel-de-responsabilizacao/responsabilizacao-entes- privados/manual_de_responsabilizao_de_entes_privados-2022.pdf, acesso em 16/2/2023.
Fonte: Conjur