Elthon Costa – Segunda, 29 de janeiro de 2024
A assunção de risco é uma doutrina que se refere à incapacidade de um requerente de se recuperar pelas ações ilícitas de uma parte negligente em cenários em que o requerente aceitou voluntariamente o risco dessas ações. Às vezes, os possíveis autores assumem o risco de lesões e absolvem os possíveis réus de qualquer responsabilidade.
No esporte em geral, a teoria da assunção de risco é usada quando um autor (profissional ou amador) se envolve voluntariamente em uma atividade que incorre em riscos abertos e óbvios. Os lutadores que se envolvem voluntariamente nesses esportes de maneira recreativa, podem ter suas ações julgadas improcedentes com base nessa doutrina.
A teoria no âmbito do UFC
Porém, em relação à exploração profissional do promotor do evento de esporte de combate, a lei considera que este pode ser responsabilizado.
O Código Civil brasileiro, em seu artigo 927, parágrafo único, suscitou uma nova leitura no que tange à responsabilidade civil no âmbito laboral, à luz do artigo 7º, caput, da CF.
Assim, tratando-se de atividade empresarial, ou de dinâmica laborativa (independentemente da atividade da empresa), fixadoras de risco especialmente acentuado para os trabalhadores envolvidos, desponta a exceção ressaltada pelo dispositivo, tornando objetiva a responsabilidade empresarial por danos acidentários (responsabilidade em face do risco).
Ocorre que, em algumas promoções de esporte de combate, os contratos dos atletas, embora profissionais, incluem cláusulas nas quais os contratados abririam mãos de seus direitos de ressarcimento em caso de lesões, senão, vejamos uma cláusula nesse sentido em contrato de atleta do UFC que está disponível para consulta pública nos autos do processo 0634851-22.2019.8.04.0015, que corre na Justiça brasileira:
ARTIGO XIV
ASSUNÇÃO DO RISCO/RENÚNCIA DE TODAS AS REIVINDICAÇÕES
14.1 O Lutador entende e concorda plenamente que o esporte profissional de artes marciais mistas é uma atividade inerente e anormalmente perigosa que pode resultar em lesões físicas graves e permanentes, incluindo, mas não se limitando a, trauma neurológico irreversível, incapacidade ou morte. O Lutador declara que é um profissional experiente no esporte de artes marciais mistas e que avaliou conscientemente os riscos inerentes, previstos e imprevistos, neste esporte perigoso e representa e declara que o Lutador está física, mental, emocional e intelectualmente disposto e capaz de aceitar, e aceita de forma clara, inequívoca e explícita, todos os riscos, previstos e imprevistos, associados à preparação e participação no esporte e nos combates.
14.2 Em consideração à oportunidade de participar das lutas, e com pleno conhecimento e completa assunção de todos os riscos, o Lutador, por si mesmo, seus herdeiros, cessionários, executores e administradores (“Partes Liberadoras”), concorda irrevogavelmente que as Partes Liberadoras não processarão ou reclamarão contra a ZUFFA ou qualquer uma de suas controladoras, entidades subsidiárias, afiliadas, patrocinadores, sucessores e cessionários, e os respectivos diretores, executivos, membros, gerentes, funcionários, agentes, contratados, parceiros, acionistas e representantes, em suas capacidades individuais, pessoais e representativas de cada uma das entidades acima mencionadas (“Partes Exoneradas”) por qualquer lesão, doença, dano, perda ou prejuízo ao Lutador ou à propriedade do Lutador, ou morte ou invalidez do Lutador, seja qual for a causa, resultante ou decorrente de ou em conexão com a preparação, viagem, participação e aparição do Lutador em qualquer evento promocional do UFC, as lutas, os eventos pré-luta e os eventos pós-luta ou quaisquer atividades associadas a eles.
14.3 Em consideração à oportunidade de participar dos combates e com pleno conhecimento e completa assunção de todos os riscos, as Partes Exoneradoras, por meio deste instrumento, liberam, eximem, renunciam e abdicam voluntariamente de todas e quaisquer reivindicações e causas de ação passadas, presentes e futuras, incluindo especificamente quaisquer reivindicações baseadas em negligência ou negligência grave, que possam ter contra as Partes Exoneradas, como resultado de qualquer lesão, doença, dano, perda ou prejuízo ao Lutador ou à propriedade do Lutador, ou morte ou invalidez do Lutador, seja qual for a causa, resultante ou decorrente de ou em conexão com a preparação, viagem, participação e aparição do Lutador em qualquer evento promocional do UFC, as lutas, os eventos pré-luta e os eventos pós-luta ou quaisquer atividades associadas a eles. Além disso, as Partes Exoneradoras, por meio deste instrumento, irrevogável e incondicionalmente consentem e concordam que qualquer produto de seguro e benefícios fornecidos pela ZUFFA nos termos deste instrumento serão os únicos benefícios que as Partes Exoneradoras poderão reivindicar ou receber das Partes Exoneradas por qualquer lesão, incluindo morte, relacionada a todo e qualquer serviço do Lutador nos termos deste Contrato[1]. (tradução nossa)
Os termos da cláusula
A cláusula isenta o evento de “qualquer lesão, doença, dano, perda ou prejuízo ao Lutador ou à propriedade do lutador, ou morte ou invalidez do lutador, seja qual for a causa, resultante ou decorrente de ou em conexão com a preparação, viagem, participação e aparição do lutador em qualquer evento promocional do UFC”, o que vai de encontro quanto ao que a doutrina reza sobre a questão da responsabilidade daquele que explora a atividade comercial nesses casos.
No que diz respeito aos acidentes de trabalho no Brasil, a responsabilidade pelo risco foi adotada para resolver o problema dos acidentes causados por descuidos dos empregados, sob o fundamento de que tais situações estariam contidas no risco da empresa. Por essa razão, não faz sentido afastar a responsabilidade quando o acidente decorrer de atividade comum do empregado, já que isso faz parte, como regra, do risco da empresa. Apenas em casos de dolo ou culpa grave do empregado, de forma a se criar uma situação que não pudesse ser compreendida no risco, é que se poderia cogitar de alguma excludente de responsabilidade.
Teoria e prática
Conforme leciona Frazão[2], em casos de dolo ou culpa grave do empregado, de forma a se criar uma situação que não pudesse ser compreendida no risco, se cogita excludente de responsabilidade.
Kenneth W. Simons, professor de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Boston, assim tratou a questão da assunção voluntária de risco:
(…) Por exemplo, a validade de uma liberação contratual levanta questões de política bastante diferentes do peso dado, em um regime de culpa comparativa, à escolha irracional de um ator de enfrentar um risco conhecido e criado por um ato ilícito[3]. (tradução nossa)
No caso dos lutadores profissionais, havendo sequelas de ordem física e emocional ao empregado, não cabe a este assumir o risco da atividade. Trata-se, então, de fortuito interno, assim considerado o acontecimento que, apesar de imprevisível e inevitável, está vinculado aos riscos da atividade e se insere na dinâmica empresarial, compreendido este como ação humana, mas incluído no risco habitual da atividade empresarial.
O fortuito externo, diferente do fortuito interno, distingue-se por ser estranho à organização do negócio, não guarda relação de causalidade com a atividade do fornecedor e é absolutamente estranho ao serviço[4]. Somente nesse caso, de fortuito externo, estará ausente o dever de indenizar. Essa é a firme jurisprudência do TST[5].
O que diz a Lei do Esporte?
Não se desconhece que os lutadores de esporte de combate, no Brasil e nos EUA, não são empregados. Porém, é importante destacar que o atleta de esportes de combate já pode ser considerado atleta profissional no Brasil por força da nova Lei Geral do Esporte, se não, vejamos:
LEI Nº 14.597, DE 14 DE JUNHO DE 2023
Institui a Lei Geral do Esporte.
(…)
Subseção II
Dos Atletas
Art. 72. A profissão de atleta é reconhecida e regulada por esta Lei, sem prejuízo das disposições não colidentes contidas na legislação vigente, no respectivo contrato de trabalho ou em acordos ou convenções coletivas.
Parágrafo único. Considera-se atleta profissional o praticante de esporte de alto nível que se dedica à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tem nessa atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como recebe sua remuneração.
De acordo com a lei, o atleta de esporte de combate estaria enquadrado como atleta profissional, uma vez que a grande maioria tem a luta como sua principal fonte de renda.
Analisando os contratos
Ademais, ao analisarmos os contratos de atletas de determinados eventos, parece que estamos diante da subordinação integrativa em relação à configuração de vínculo empregatício entre atleta e evento, devido ao foco nas atividades do atleta perante a empresa, estando ambos de acordo com as atividades-fim ou meios, e estas somadas às circunstâncias do atleta não ter salário próprio da organização da empresa (porque só recebe bolsas quando luta), não assumindo verdadeiramente riscos de perdas e ganhos, não sendo proprietário dos frutos do seu trabalho, que pertencem originalmente à organização produtiva para a qual presta a sua atividade, o que parece tratar-se então de um contrato de trabalho[6].
Dessarte, sendo reconhecido vínculo empregatício nesses casos, haveria o dever do evento de ressarcir o atleta pelos danos, como consignado em acórdão basilar da lavra de meu saudoso pai, ministro Walmir Oliveira da Costa, do TST:
“RECURSO DE REVISTA. ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. ACIDENTE DE TRABALHO. INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL
- O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, não obstante reconhecer que o acidente ocorreu enquanto o autor desenvolvia sua atividade profissional em benefício do clube réu, bem como que, em virtude do infortúnio, o atleta não teve condições de voltar a jogar futebol profissionalmente, concluiu que a entidade desportiva não teve culpa no acidente de trabalho, além de haver adotado todas as medidas possíveis para tentar devolver ao autor a capacidade para o desenvolvimento de suas atividades como atleta profissional, não sendo possível a sua recuperação porque a medicina ainda não tinha evoluído ao ponto de permitir a cura total. Razões pelas quais a Corte a quo rejeitou o pedido de indenização por dano material e dano moral.
- Ocorre, todavia, que, conforme o disposto nos arts. 34, III, e 45, da Lei nº 9.615/98, são deveres da entidade de prática desportiva empregadora, em especial, submeter os atletas profissionais aos exames médicos e clínicos necessários à prática desportiva, e contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, para os atletas profissionais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos.
- Em tal contexto, incide, à espécie, a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, segundo o qual, haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 4. Dessa orientação dissentiu o acórdão recorrido. Recurso de revista parcialmente conhecido e provido” (RR-393600-47.2007.5.12.0050, 1ª Turma, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, DEJT 07/03/2014).
Portanto, mesmo que tais cláusulas permaneçam sendo incluídas, as promoções profissionais ainda sim serão responsáveis pelas lesões dos atletas.
[1] Procedimento do Juizado Especial Cível 0634851-22.2019.8.04.0015, p. 74.
[2] FRAZÃO, Ana. Risco da empresa e caso fortuito externo. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 5, n. 1, 2016. Disponível em: http://civilistica.com/risco-da-empresa-e-caso-fortuito-externo. Acesso em 22 jan. 2024. p. 22
[3] SIMONS, Kenneth W. REFLECTIONS ON ASSUMPTION OF RISK. UCLA Law Review, [S. l.], p. 481 -529, 6 ago. 2002. DOI http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.323398. Disponível em: http://www.uclalawreview.org/wp-content/uploads/2019/09/32_50UCLALRev4812002-2003.pdf. Acesso em: 22 jan. 2024, p. 496
[4] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 15ª ed. Barueri: Atlas, 2022, p. 89, apud BRANDÃO, Cláudio. Acidente do trabalho e responsabilidade civil do empregador: a responsabilidade objetiva nas atividades de risco específico acentuado. 5ª. ed. Brasília: Venturoli, 2023, p. 351.
[5] Ibid., p. 351.
[6] PORTO, Lorena Vasconcelos. A subordinação no contrato de trabalho, apud TEIXEIRA, Marcelo Tolomei; GUSMÃO, Xerxes. A prova da relação de emprego à luz da teoria crítica. Campinas, SP: Lacier, 2023. p. 43.
- Elthon Costaé advogado trabalhista e desportivo e diretor jurídico do Conselho Nacional de Boxe (CNB), da Confederação Brasileira de Kickboxing (CBKB), da World Association of Kickboxing Organizations Región Panamericana (Wako Panam) e da Confederação Brasileira de MMA Desportivo (CBMMad) .
Fonte: Conjur