Bruno Lupion – Segunda, 1 de abril de 2024
Regime militar teve apoio do governo alemão e de importantes empresas, estimulados por Guerra Fria e oportunidades de negócio. Já os exilados brasileiros enfrentaram vida difícil no país europeu.
Em janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro executaram atos golpistas em Brasília, o governo alemão condenou enfaticamente a iniciativa. Há 60 anos, quando o Brasil sofreu um golpe militar, a reação foi diferente: a então Alemanha Ocidental prontamente reconheceu o novo regime militar como legítimo e aprofundou a parceria com o país ao longo da ditadura.
Geopolítica e economia explicam a diferença de comportamento. Em 1964, o mundo vivia a Guerra Fria e estava polarizado entre o modelo capitalista dos Estados Unidos e o regime comunista da então União Soviética. A Alemanha Ocidental era alinhada aos americanos e tinha uma particular aversão ao comunismo – que governava a então Alemanha Oriental e foi utilizado como pretexto para o golpe, apesar de o presidente derrubado, João Goulart, ter perfil conciliador segundo muitos historiadores.
Interesses econômicos também tiveram papel importante. A Alemanha Ocidental tinha filiais de diversas empresas no país e era o segundo maior parceiro comercial do Brasil. A aproximação com o regime militar contribuiu para que o investimento de empresas alemãs no Brasil crescesse 350% entre 1969 e 1974, segundo um relatório apresentado à Comissão Nacional da Verdade. Além disso, as políticas antissindicais da ditadura achataram salários e ajudaram a ampliar os lucros dessas companhias.
A relação amigável da Alemanha Ocidental com o regime militar tornou mais dura a vida dos exilados brasileiros que fugiram da ditadura e buscaram refúgio no país europeu. A concessão de vistos era dificultada, e muitos eram obrigados a comparecer regularmente a delegacias. Isso apesar de a chefia do governo federal alemão ter ficado sob o comando de chanceleres do Partido Social Democrata (SDP), de centro-esquerda, durante a maior parte da ditadura brasileira – Willy Brandt de 1969 a 1974, e Helmut Schmidt de 1974 a 1982.
No entanto, alguns movimentos sociais, organizações civis e universidades alemães deram respaldo decisivo a esses brasileiros, e participaram de protestos que criticaram a visita em 1970 do então ministro da Justiça Alfredo Buzaid a Bonn, então capital da Alemanha Ocidental, e a viagem oficial em 1978 do então presidente Ernesto Geisel, que visitou Bonn, Berlin Ocidental e outras cidades alemães.
Oposição a Jango
A aproximação de setores influentes da sociedade alemã com o futuro regime militar brasileiro começou já antes do golpe de 1964, por meio de canais políticos, religiosos e econômicos.
O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), relata que uma fundação da direita alemã promovia no Brasil a divulgação de materiais de propaganda contra as reformas de base do governo João Goulart, que durou de 1961 a 1964, associando-as ao comunismo da Alemanha Oriental. Além disso, conta, clérigos alemães apoiaram iniciativas conservadoras da Igreja Católica brasileira, como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
No âmbito econômico, representantes de importantes empresas alemães no Brasil participaram de articulações da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) para preparar e sustentar o golpe, relata Rodolfo Costa Machado, professor de história da PUC-SP que apresentou, junto com o pesquisador Vitor Sion, um relatório à Comissão Nacional da Verdade sobre as relações das empresas alemãs com a ditadura. Essas articulações eram “uma tentativa de mobilizar a indústria civil para fins bélicos para uma eventual guerra civil, que não veio”, diz.
O trabalho apresentado à Comissão concluiu que mais da metade das 16 empresas alemãs instaladas no Brasil em 1971 engajaram-se diretamente com a ditadura, incluindo Volkswagen, Siemens, Krupp e Telefunken.
Negócios em primeiro plano
Membro da diretoria da Associação dos Acionistas Críticos da Alemanha, uma rede de organizações que compram ações de empresas para cobrar delas respeito a temas como direitos humanos e meio ambiente, Christian Russau diz que a preservação dos investimentos empresariais alemães no Brasil e a perspectiva de ampliar sua lucratividade foi uma das forças-motrizes da política de cooperação entre a Alemanha Ocidental e o regime militar.
“A Alemanha fez muitos investimentos no Brasil, e o chamado milagre econômico brasileiro [período de alto crescimento de 1969 a 1974] ajudou muito as empresas alemães. O Brasil tornou-se um lugar onde elas podiam ter muitos ganhos, e por isso o governo alemão fechou de propósito os olhos diante do problema da falta de democracia”, diz Russau, lembrando que a política anticomunista da Guerra Fria também teve um papel.
Machado, da PUC-SP, diz que o período pré-golpe no Brasil foi marcado por uma “ascensão das classes trabalhadoras por meio da luta sindical”, interrompida em 1964. “Uma das primeiras medidas da ditadura é restringir os direitos sindicais. Isso aumenta a taxa de lucro das empresas e há um processo de militarização de locais de trabalho”, afirma.
O exemplo mais notório desse processo ocorreu na Volkswagen, que contratava egressos das Forças Armadas para suas equipes de segurança e contribuía com a delação e entrega de funcionários aos órgãos de repressão. Em 2020, a montadora alemã concordou em indenizar ex-funcionários de sua filial brasileira afetados pela colaboração da empresa com a ditadura, e um relatório apresentado em 2021 trouxe detalhes dessa cooperação com os militares.
Acordo nuclear contra vontade dos EUA
A proximidade entre o governo alemão e a ditadura brasileira atingiu seu ápice com a assinatura do acordo nuclear, em 1975. A parceria envolvia a construção no Brasil de oito usinas nucleares com tecnologia alemã, o desenvolvimento de uma indústria para a fabricação de componentes e combustível para os reatores e a transferência de tecnologia para enriquecimento de urânio.
A Alemanha Ocidental à época considerava a energia nuclear a chave para a produção de energia no futuro, e tinha interesse em expandir o uso da tecnologia desenvolvida por suas empresas, em especial do grupo Siemens. O governo alemão, comandado pelo social-democrata Helmut Schmidt, considerava o acordo com o Brasil estratégico, e firmou a parceria apesar da forte oposição dos Estados Unidos.
Havia suspeitas à época de que os militares brasileiros tinham interesse em aproveitar a transferência de tecnologia para desenvolver uma bomba atômica, o que foi oficialmente negado. Posteriormente, no entanto, revelou-se que a ditadura brasileira tinha elaborado planos para desenvolver a bomba e fazer testes na Serra do Cachimbo.
“O acordo nuclear envolveu diversos ministérios, setores de alta tecnologia e universidades alemães, foi muito orgânico”, afirma Silva, da UFRJ. Apesar disso, pouco saiu como planejado. Somente a usina Angra 2 foi construída com tecnologia alemã, e Angra 3 ainda está em obras.
Exílio alemão
Como o governo alemão prezava a colaboração com o regime militar, não ofereceu apoio significativo aos brasileiros exilados que buscaram refúgio na Alemanha. Pelo contrário, muitos recebiam apenas vistos curtos de três meses, que precisavam ser renovados com frequência, e tiveram pedidos de reunião familiar negados.
Um dos exilados brasileiros que viveram na Alemanha naquela época é Marijane Vieira Lisboa, professora de história da PUC-SP. Ela relata que a política alemã em relação a todas as ditaduras da América do Sul era de “simpatia ou indiferença”, contaminada pelo clima da Guerra Fria.
Presa pela ditadura brasileira por um ano e meio, Lisboa chegou à Alemanha em 1974, grávida de sua filha, por meio de contatos da Anistia Internacional, depois de ter passado por Chile e México, e morou no país europeu até o final de 1979.
“A Alemanha lidava com refugiados como nós como se fôssemos subversivos”, diz Lisboa. “Em 1974, quando teve Copa do Mundo na Alemanha, a polícia ordenou que comparecêssemos à delegacia várias vezes quando tinha jogo do Brasil. Se não íamos, podíamos ser expulsos.”
Ela recebeu uma bolsa de uma associação religiosa para estudar alemão por seis meses na região de Colônia e depois mudou-se para Berlim Ocidental, onde cursou sociologia na Universidade Livre de Berlim. E credita o período que passou na Alemanha ao apoio contínuo que recebeu de entidades da sociedade civil.
“Embora o governo alemão tenha dificultado ao máximo a vida dos exilados, uma parte da sociedade alemã – Anistia Internacional, associações religiosas, universidades – foi extremamente solidária. E, no fim da ditadura, quando o regime militar estava balançando, tivemos muito apoio desse setor”, afirma Lisboa.
Ela diz ter trazido da convivência com ativistas da sociedade civil em Berlim a inspiração para seu engajamento posterior em causas ambientais e antinucleares: Lisboa foi relatora do direito humano ao meio ambiente da Plataforma Dhesca de 2007 a 2012, e é membra da Articulação Antinuclear Brasileira.
Fonte: DW / Ernesto Geisel (de óculos), quarto presidente da ditadura militar, recebido pelo presidente alemão Walter Scheel, em Bonn, em 1978Foto: Brasilianische Präsidentschaft