Como alguns brasileiros relembram os dias do golpe

Brasil cultura

Lucas Fróes – Segunda, 1 de abril de 2024

O lamento de um capitão da guarda presidencial, o medo de uma jovem de celebrar o aniversário de 18 anos, a iniciativa de um aluno que saiu às ruas com uma mensagem: a memória de alguns que viveram o golpe há 60 anos.

Terezinha Batalha tem lembranças mais vivas e alegres de quando dançou valsa na festa do seu aniversário de 15 anos, em 1961, em Salvador, do que de quando completou 18 anos, em 1964.

É que o levante militar iniciado em 31 de março daquele ano ganhou força no dia primeiro e desfechou seu golpe, com a deposição do presidente João Goulart, em 2 de abril. No dia seguinte, aniversário de Terezinha, não havia motivo para comemorar. A ditadura era um péssimo presente para uma adolescente de esquerda que militava desde cedo na Juventude Estudantil Católica (JEC).

Em sua memória, não há lembrança de festa, apenas do golpe. “Todo mundo ficou em casa, não se saía. Os riscos eram grandes porque não se sabia como estavam os desdobramentos, a polícia militar toda na rua, canhão na rua. Era um cenário de guerra”, conta a assistente social, hoje aos quase 78 anos.

Segundo dados do último censo demográfico realizado pelo IBGE, em 2022, pouco menos de 16% dos brasileiros já eram nascidos em 1964.

Na época, Perly Cipriano tinha 20 anos e estava de cabelo raspado por ser calouro do curso de odontologia, quando participou de uma marcha carregando um quadro negro com a inscrição “Contra o golpe”, da sede da União Estadual dos Estudantes (UEE), em Vitória, até o palácio do então governador do Espírito Santo, Francisco Lacerda de Aguiar.

“Era um quadro negro que nós estávamos usando para fazer um curso de alfabetização de adultos usando o método Paulo Freire”, diz o ex-deputado estadual, hoje aos 80 anos.

Na entrada do palácio, ele tentou sensibilizar um policial com a sua causa. “Você tem razão, mas se mandarem atirar em vocês, a gente atira”, disse-lhe o homem. Depois que uma comissão de estudantes saiu da audiência com o governador, Perly mudou a frase no quadro para “O governador é contra o golpe”. Poucos metros adiante, policiais o obrigaram a apagá-la.

“Fomos para a UEE e passamos a noite fazendo uma vigília, ouvindo as notícias no rádio, mas algumas começaram a ser ocupadas por dobrados militares. Ficamos até o outro dia e retornamos para casa”, recorda. O governador aderiu ao golpe.

Menos de 16% dos brasileiros hoje vivos já eram nascidos no dia do golpe. Nesta foto, homem é preso em Belo Horizonte em 1º de abril de 1964Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Esperando as ordens de Jango

“Esses testemunhos são fundamentais, sobretudo dessa experiência no imediato pós-golpe no Brasil, pois revelam a violência da ditadura desde seu início”, diz a historiadora Maria Cláudia Badan, que já entrevistou mais de uma centena de pessoas que atuaram na resistência ao regime militar.

Ivan Proença era capitão do regimento presidencial Dragões da Independência, e acompanhava os deslocamentos de João Goulart, às vezes trocando algumas palavras com o presidente. “Jango era um pacifista e um homem de negociação”, define Proença, aos 93 anos, hoje escritor.

No início da manhã de 1º de abril, militares conspiradores chegaram ao Rio de Janeiro para saber qual era a posição do regimento de Ivan Proença, que se manteve legalista.

A notícia de que Jango deixara o Rio rumo a Brasília vazou, e Proença foi enviado ao Palácio das Laranjeiras, onde se hospedara o presidente, para saber se ele tinha deixado alguma ordem de ação, mas nada havia. “Não quero derramamento de sangue entre irmãos brasileiros”, comentou Jango com um oficial, antes de viajar.

“Nós tínhamos plenas condições de evitar o golpe”, garante Proença. No Palácio Guanabara, o governador Carlos Lacerda fazia agitação golpista com homens armados. “Na entrada do Laranjeiras, tínhamos dois morteiros apontados para o Palácio Guanabara”, revela Proença. “Faltou só a ordem, o comando”.

No mesmo dia, membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) atacavam estudantes na Faculdade Nacional de Direito. O capitão Proença e seus subordinados expulsaram os agressores e salvaram os estudantes, que estavam encurralados e sendo sufocados pelo gás lacrimogêneo. “Tinha gente já pronta pra pular lá de cima”, diz.

Na volta, Proença foi detido pelos militares e enviado para uma cela no Forte Imbuhy, em Niterói.

No olho do furacão

“Continuamos lutando, corri muito de polícia”, conta Terezinha Batalha. Ela criou um grupo de bairro com mais de cem jovens, dos setores cultural, político, recreativo e litúrgico.

“Os orientadores da JEC eram os padres mais avançados, que tinham espírito revolucionário, estudavam marxismo e tinham a intenção de melhorar as condições sociais”, conta Terezinha, que segue com os mesmos ideais, mas tornou-se ateia.

Quando entrou na Universidade Católica, foi escolhida como uma das delegadas para o congresso clandestino da UNE, em Ibiúna, em 1968. “Já na chegada tinham helicópteros vendo o nosso movimento.”

O congresso foi debelado pela repressão e os estudantes foram presos. “Estavam armados até os dentes, com metralhadoras em cima da gente. A gente ia cantando: ‘Somos todos iguais, braços dados ou não’. Andamos um dia inteiro, na chuva e na lama, para chegar até os ônibus”, diz, referindo-se a Caminhando, música de Geraldo Vandré lançada naquele ano.

João Goulart (à dir.) em sua última aparição pública antes do golpe, na sede do Automóvel Clube no RioFoto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Em 1974, Terezinha foi selecionada para trabalhar como assistente social na retirada dos moradores para a construção da hidrelétrica de Sobradinho, uma das obras faraônicas da ditadura. “A reação das pessoas era muito sofrida. Muita gente ficou doente mental, muita gente se suicidou”, conta. “A pressão sobre nós era muito grande, tinham agentes lá dentro nos vigiando.” Sua história foi mostrada no documentário Sobradinho, em 2020.

Atuante no movimento estudantil, Perly Cipriano foi preso pela repressão. Solto, foi estudar na União Soviética e, quando retornou ao Brasil, ingressou na Ação Libertadora Nacional (ALN), a mais ativa organização da luta armada contra a ditadura.

Preso e torturado em 1970, foi um dos coordenadores da greve de fome dos presos políticos pela anistia, em 1979. “Teotônio Vilela foi lá, Ulysses Guimarães foi lá, Itamar Franco, Lula, Olívio Dutra, Jacó Bittar, Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro, Antônio Houaiss”, lista Perly, que na época apresentou-se a Lula e conversou com ele sobre a criação do PT.

“Eles vinham trazendo muitas esperanças pra gente, muito conforto”, diz Perly, que também recebeu a visita de artistas, religiosos e dos primeiros anistiados.

“Teotônio Vilela disse pra mim: ‘Apoiei o golpe militar por ideologia. Agora estou visitando os presídios pra purgar meus pecados, defender a democracia e a anistia'”. Perly não foi anistiado, mas saiu da cadeia em livramento condicional.

Golpe e ditadura ainda reverberam

Cassado e vigiado pelos militares, Ivan Proença se formou em Letras, tornando-se professor e escritor. Nos anos 90, trabalhou no governo Brizola, no Rio de Janeiro. No próximo dia 1º de abril, a convite do Grupo Tortura Nunca Mais, em evento sobre os 60 anos do golpe, voltará à mesma Faculdade de Direito onde salvou os estudantes em 1964.

No dia anterior, a Marcha Reversa, com Perly Cipriano dentre os organizadores, sairá de vários lugares do Brasil rumo a Juiz de Fora, cidade mineira onde Olímpio Mourão Filho, militar que se autointitulou de “vaca fardada”, iniciou a marcha do golpe militar em 1964.

Nos dois primeiros mandatos de Lula, quando era subsecretário de Direitos Humanos, Perly foi responsável por articular as revelações do ex-delegado Cláudio Guerra. “Eu percebi que o que ele falava tinha consistência”, explicou. Guerra depôs na Comissão Nacional da Verdade e contou detalhes de crimes da ditadura como o atentado ao Riocentro e a queima de corpos de opositores na Usina Cambahyba.

“Apesar do compromisso político que os governos progressistas tiveram com o tema, faltou uma verdadeira educação pública sobre o que foi a ditadura civil-militar no Brasil. Para isso colaborou muito o caráter reservado das Comissões da Verdade. A passagem da ditadura para a democracia foi fruto de uma conciliação pelo alto, refém da imposição das Forças Armadas, que se autoanistiaram e nunca fizeram sua mea culpa“, diz a historiadora Maria Cláudia Badan. “Há um ditado camponês do leste europeu que diz: se você poupar o lobo, estará sacrificando as ovelhas”, sintetiza Ivan Proença.

Fonte: DW / Dois jovens conversam com soldado durante o golpe militar, em 1º de abril de 1964Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

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