A unção do feminicídio e a igreja que ainda apedreja mulheres

Brasil

Não é novidade para ninguém que o número dos casos de feminicídio segue aumentando em no Brasil. Apenas até o mês de julho deste ano, já haviam sido registrados 1.153 casos, segundo levantamento feito pelo Laboratório de Estudos de Feminicídio (LESFEM), que apresenta dados de todo o país coletados pelo Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB). Também não é nenhuma novidade, que boa parte das mulheres vítimas desses crimes possuem alguma ligação com a igreja. Como no caso mais recente, envolvendo a pastora e cantora gospel Sara Mariano, que foi assassinada pelo marido, também evangélico, e que cuidava de sua agenda de shows.

Alguns dados despertam curiosidade no levantamento feito pelo MFB. O Mato Grosso do Sul, estado majoritariamente bolsonarista, é onde se registra a maioria dos novos casos registrados. A arma branca é o meio mais empregado para cometer violência contra as mulheres, ao passo que o Domingo, considerado o”dia do senhor” para os cristãos, e o mês de maio, mês consagrado pelos católicos à virgem Maria, e no qual também se comemora o dia das mães, é o que mais registra mortes de mulheres vítimas de feminicídio. A média diária é de 3,81 feminicídios consumados. Sem contar os casos não notificados. Um número que deveria suscitar muita indignação por parte da igreja e dos defensores da família tradicional brasileira. Até porque, a grande maioria dos assassinos dessas mulheres são ou foram seus maridos e companheiros.

É sabido que muitos pastores evangélicos recomendam que as mulheres de suas igrejas suportem, em nome de Jesus, comportamentos tóxicos e atitudes violentas praticadas por seus companheiros. Tudo em nome da fé na transformação que Deus irá promover na vida desses homens. Como se Deus fosse uma espécie de Supernanny educadora de homens adultos, irresponsáveis e potencialmente criminosos. Tal recomendação pode estar atrelada ao fato de que, boa parte desses pastores e líderes evangélicos, também apresentarem comportamentos agressivos com as suas esposas. Obviamente, o pacto de silêncio estabelecido entre o casal não permitirá que a verdadeira face daquele virtuoso e ungido líder venha a público. Ao menos que ele seja “possuído pelo diabo” e cometa uma violência doméstica incontestável. Um assassinato. Foi assim com um pastor chamado Wallace Sepulcro de Almeida Santos, de 36 anos, que matou a esposa, a pastora Maria Sônia, em 3 de maio deste ano, na cidade de Sooretama, no Espírito Santo. Segundo a polícia, o homem de Deus estava sob efeito de drogas. E nada de ouvirmos manifestações por parte dos escolhidos por Deus para ganhar almas para Jesus, como se pregar o evangelho fosse comprar ações para ganhar pontos no banco imobiliário.

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A igreja não costuma se manifestar duramente diante desses casos, como sempre faz com bastante rigor quando o assunto é com quem e como as pessoas estão fazendo sexo. Como, por exemplo, o caráter abominável e apocalíptico que ela atribui às relações homossexuais, ao ponto de a bancada evangélica promover uma verdadeira campanha contra o direito de homoafetivos formalizarem legalmente as suas uniões.  Como se a união entre duas pessoas do mesmo sexo atentasse mais contra a natureza de Deus, do que o assassinato cometido contra mulheres nos casamentos considerados “normais” e agradáveis ao senhor. Hipócritas fundamentalistas é o que eles são. Também podemos considerá-los cúmplices dessas mortes, devido ao silêncio ensurdecedor de seus posicionamentos. Isso, quando alguns deles não resolvem tornar público o que realmente pensam a respeito da violência contra a mulher. E é sempre bom lembrar que, quando a Bíblia faz referência à submissão da mulher ao homem, indiretamente ela legitima uma punição à mulher que descumprir tal ordem dada por Deus. Tudo vai depender daquilo que o fiel entender por insubmissão.

Em fevereiro deste ano, um pastor chamado Marcus Resener concedeu uma entrevista a uma emissora de TV de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro, na qual dizia ser contrário a Lei Maria da Penha, porque, segundo ele, a maioria das mulheres costumavam mentir nas denúncias feitas por agressão e que os maiores prejudicados acabam sendo os filhos. O tema do programa era “Homens sofrem mais violência doméstica do que as mulheres”, e Marcus participava como advogado especialista e defensor de homens acusados de agressão contra mulheres. No dia 5 de maio deste ano, o “servo de Deus”, que na verdade se apresentava falsamente como advogado e também policial, matou a ex-mulher, Aline Resener de Oliveira, com dois tiros na cabeça, na frente do filho de apenas 8 anos de idade. Mentiroso e destruidor, como o diabo gosta, o pastor, que contou com a ajuda da atual esposa para cometer o crime, disse que o fez para salvar o filho das mãos de um possível padrasto. E nada de ouvirmos manifestações por parte da legião de ungidos do Senhor, que vaga diuturna e perdidamente atrás de ânus alheio para tentar obstruir o seu uso indevido e salvá-los do fogo do inferno.

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As bênçãos e as permissões dadas pela igreja para a prática da violência contra a mulher, são feitas de forma sutil, machista e a pretexto de uma melhor harmonia no lar. Quem não se lembra de uma pregação onde Edir Macedo revela que proibiu as filhas de cursarem a universidade, para que elas não tivessem mais estudo do que os seus maridos e não ficassem em posição de igualdade ou em superioridade em relação a eles? Algo que ele justifica biblicamente, lembrando que o homem deve ser o “cabeça” do casamento, como manda o Senhor. Na mesma linha do dono do Templo de Salomão vai o padre Paulo Ricardo, que recomenda às mulheres para que não trabalhem fora e se reservem apenas à educação dos filhos. O sacerdote católico protagoniza um vídeo no youtube cujo título é: ”Feminilidade: o que está acontecendo com as mulheres? ”, onde ele aponta o ”feminismo abortista” como o grande inimigo das mulheres atuais, e o que as fazem desobedecer a principal função que Deus lhes deu: a de serem mães. Alguma dúvida de que essas narrativas contribuem para que muitos homens cristãos se sintam no direito de subjugar suas companheiras, e quando elas não acolhem tais orientações acabam se tornando alvos de uma violência subliminarmente legitimada pela igreja?

Estendo aqui a reflexão para o que acontece com as mulheres no oriente médio, quando elas deixam de cumprir obediência às leis religiosas vigentes em seus países. Em setembro do ano passado, uma jovem iraniana foi espancada pela polícia moral do Irã por não estar usando devidamente o hijab, uma vestimenta que protege a privacidade, a modéstia e a moral das mulheres muçulmanas. Mahsa Amini ficou sob custódia policial e veio a óbito. No dia 1º de outubro deste ano, uma adolescente de 16 anos também foi espancada pela polícia moral iraniana pelo mesmo motivo. Após semanas sem coma, Armita Geravand faleceu no último dia 28, gerando revolta dos ativistas locais pelo direito das mulheres. Curiosamente, as religiões que costumam ser demonizadas e atribuídas a um mal que se opõe a Deus, como as de matriz africana, por exemplo, não possuem restrições à liberdade individual das pessoas em suas doutrinas e nem os seus orixás e entidades costumam pedir a morte dos infiéis. Imaginem se Exu instruísse a um de seus escolhidos, recomendando a ele o apedrejamento de mulheres desobedientes como punição moral? Se ele já é acusado de ser o diabo, provavelmente os seus seguidores seriam mortos em praça pública.

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Por onde anda Michelle Bolsonaro, a mulher que os evangélicos brasileiros alçaram a condição de intercessora da nação junto a Deus, que não se manifesta a respeito de tantas mulheres que são assassinadas por seus companheiros, em grande parte bolsonaristas? Será que ela cansou de dobrar o joelho para orar pelo Brasil? Cadê o falastrão do Silas Malafaia, que costuma promover boicote a marcas que “desrespeitam os valores cristãos”, mas que nunca deu o tom de sua voz irritante para condenar o número alarmante de feminicídios no país? E os defensores da vida e da família tradicional? Nikolas Ferreira, Marco Feliciano, Carla Zambelli, e os outros 146 parlamentares que formam a atual bancada evangélica no congresso onde estão vocês. Estão dormindo ou estão fazendo às escondidas aquilo que condenam nos outros, para não enxergarem a barbárie feminicida que se abate sobre as mulheres? Padres, bispos, diáconos, apóstolos, missionários, levitas, varões e demais vendilhões do templo, onde estão vocês que não defendem as mulheres em nome de Jesus? Ou será que está escrito em algum lugar que as mulheres também não herdarão o reino dos céus?

Fonte: brasil 247

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