As memórias de Gabriel Waldman, que viveu os horrores de dois regimes quando criança

cultura

Em uma parceria com a StandWithUs Brasil, Gabriel Waldman, sobrevivente do Holocausto, resgata as memórias do que viveu

Muitos de nós que vivemos no Brasil, terra de liberdade e da ausência de ódios raciais, de gêneros, de religiões, e das minorias em geral, achamos a rotina parte inerente da vida como respirar, dormir pela noite e acordar de manhã. Não é bem assim.

Nasci na Hungria em 1938, logo antes da 2ª Guerra Mundial, em uma família judaica. Comecei minha vida com três ameaças de morte simultâneas, rompendo definitivamente a rotina – qualquer rotina.  

A primeira era o ódio racial, com os nazistas alemães e suas asseclas húngaras procurando extinguir a raça judaica. A segunda, era a fisiológica, com fome, frio e sede, um castigo durante a guerra. E a terceira, as bombas e balas durante as batalhas pela cidade de Budapeste, onde eu morava, deflagradas entre os exércitos nazistas e soviéticos. 

Cada dia, cada minuto, era uma aventura. Eu me pergunto até hoje o motivo pelo qual justo nós fomos agraciados com o milagre de sobreviver. Lembro-me de amigos e parentes perguntarem a minha mãe o que ela iria fazer se esta ou aquela ameaça se concretizasse. Ela respondia: “Não sei. Posso enfrentar apenas um leão por minuto, mais que isto não alcanço”. E tinha que alcançar. Tantas lembranças que mais parecem pesadelos.

Ar poluído

Lembro-me do frio de -20 graus C, com ar poluído pelas batalhas de rua quando descobrimos piolhos no meu corpo e roupa. Picadas de piolho transmitiam tifo, sentença de morte sem o tratamento adequado, inexistente na época. Mamãe arrumou uma lata de conserva, encheu-a com água gelada, desnudou e lavou-me no abrigo onde estávamos refugiados. Tifo ou pneumonia eram as opções mais viáveis. Ela jogou a moedinha, cara ou coroa e vejam só, fez a escolha certa.

Lembro-me de outro instante: O exército soviético derrotou os nazistas em Budapeste, mas a guerra continuava. Não havia nada para comer. Sabia-se que no interior do país havia comestíveis para comprar a base de escambo. Dinheiro não valia mais nada, mas havia ainda peças de valor em casa que mamãe escondeu nas suas roupas íntimas e com nossa ex-empregada (demitida, pois, judeu não podia empregar ninguém), tomaram o trem, – ou melhor, o teto do trem, pois, no interior dos vagões viajavam as tropas russas indo e vindo do front -, para tentar a sorte nas aldeias da planície húngara. 

Inverno, expostos ao ar gelado e às “Stukas”  (bombardeiros de mergulho alemães) para nem falar da soldadesca soviética que estuprara até as postes de luz por onde passava. Novamente, ela jogou os dados e ganhou. Voltou para casa com ricota, salame, manteiga e pão. Nunca nos contou como foi a viagem e ninguém perguntou. Sobrevivemos, e isso basta!

O nazismo derrotado, o exército soviético firmemente em controle, o stalinismo se impôs e adotou a tática de salame para se apossar definitivamente do país. Fatia por fatia eles cortaram as liberdades cívicas e impuseram um regime cruel e vingativo. Parentes e amigos sumiam sem deixar rastros, bens e propriedades confiscados, segmentos da população reduzidos a mendicância. Na escola eu adorava e conhecia muito bem a história da Hungria e sempre recebia nota máxima.

De repente, lá por 1948 passei a receber apenas notas medianas. Minha mãe falou com o professor e ele confessou. “Recebemos ordens do Partido (comunista). Filho de burguês não pode receber nota superior a 5”. Meu pai, advogado antes de ser assassinado pelos nazistas, era considerado burguês. Adeus universidade. Em vez disto, adeus, Hungria. Em mais uma quebra de rotina, fugimos da Hungria.

Esperança

Solicitamos visto de entrada em vários países, pois a Europa tornou-se perigosa demais para ficarmos. Com a guerra da Coreia em plena vigência, esperava-se que os tanques russos logo arrasassem toda a Europa Ocidental.  E nos, fugitivos do comunismo, seríamos alvo primário dos invasores. Obtivemos visto de entrada no Brasil, único país a admitir refugiados sem arrimo de família masculino.  Mulher não contava. Era apenas apanágio dependente do macho. Desta vez, o Brasil se superou e somos gratos até hoje

No Brasil, mamãe casou de novo. Finalmente, com a situação financeira estabilizada, descobri o significado de rotina. Como é bom toda manhã ir para escola – sabendo com certeza que a instituição estaria me esperando sempre no mesmo lugar – e voltar para casa sabendo que o almoço me aguardava. E sabendo como será o dia seguinte. E o dia seguinte ao dia seguinte.

Ninguém para nos perseguir, nenhuma bomba caindo com meu nome, o destinatário, gravado na carcaça. Dispensa e geladeira cheias. Conseguia até escolher o que comer.  E a morte apenas uma distante e vaga certeza associada a velhice. Com 14 anos, aprendi o significado de rotina e do bendito conceito do cotidiano. Antes disto não havia um dia, um minuto sequer que fosse cotidiano na minha vida.


*O texto de Gabriel Waldman foi proporcionado pela StandWithUs Brasil, instituição que trabalha para lembrar e conscientizar sobre o antissemitismo e o Holocausto, de maneira a usar suas lições para gerar reflexões sobre questões atuais.

Fonte: Aventuras na História

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *