Por José Higídio – Domingo, 15 de janeiro de 2023
A legislação brasileira de Propriedade Intelectual, concebida nos anos 1990, precisa ser atualizada para contemplar os avanços tecnológicos e culturais das últimas décadas. Existe no país um arcabouço mínimo para garantir o desenvolvimento, mas ainda são necessários ajustes.
Segundo ele, a queda no número de pedidos de registro de patente nos últimos anos está relacionada a uma descrença no sistema. Os inventores deixam de buscar proteção diante da insegurança jurídica causada pelo sentimento de demora nas análises do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
Embora trace esse panorama sobre patentes — que consistem na proteção de invenções —, Atab trabalha na banca principalmente com marcas (elementos que identificam um produto, serviço ou negócio) e direitos autorais (prerrogativas dos criadores de obras intelectuais) nas áreas judicial, administrativa e consultiva.
O advogado ressalta que, no caso da proteção das marcas, o INPI vem tomando medidas para diminuir sua demora e as análises já estão em patamares saudáveis. O desafio é obter os mesmos resultados com relação às patentes, para recuperar a crença na efetividade do sistema.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Atab falou sobre os limites territoriais da proteção de marcas e patentes, as funções de um agente de Propriedade Intelectual e os prejuízos causados pela pirataria no país.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — A validade das regras de Propriedade Intelectual varia conforme o país?
Rafael Atab — De um lado, a proteção da Propriedade Intelectual é territorial. Quando se obtém um direito sobre uma marca ou uma patente, o direito é válido naquele território específico. É o Estado quem garante a proteção. Está sendo implementada na União Europeia a patente unitária, que terá validade regional, nos países que aderiram à sua convenção.
Mas o mercado é global, com uma circulação de bens e serviços muito grande. Um dos grandes desafios das empresas transnacionais — sejam elas pequenas, médias ou grandes — é buscar proteção em diversos territórios, ou pelo menos nos territórios-chave, onde sua patente pode ser mais bem explorada.
Existe o método tradicional, baseado na Convenção de Paris de 1883, pelo qual se deposita a marca ou o pedido de patente em outro país dentro de um prazo específico e a data de depósito nesse país retroage à data de depósito no Brasil.
Em 2019, o Brasil aderiu ao Protocolo de Madri (de 1989), que possibilita, a partir de um registro ou pedido depositado no país, uma solicitação única, via Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), da extensão do direito para outros territórios signatários. O método difere do tradicional, pelo qual é preciso depositar separadamente em cada país. Em ambos os casos, cada país faz sua análise individual.
ConJur — O que faz um agente de Propriedade Intelectual?
Rafael Atab — Ele atua perante o escritório de Propriedade Intelectual do país — no caso do Brasil, o INPI — e orienta seu cliente em relação à obtenção da proteção relacionada ao direito de Propriedade Intelectual.
O agente conversa com o cliente, avalia o plano de negócios, identifica as classes econômicas nas quais a patente pode se enquadrar, elabora estratégias de proteção, redige o pedido de patente, acompanha o processo, pondera a melhor forma de internacionalizar a proteção etc.
É um profissional em princípio multidisciplinar, que pode ter diversas formações. Os profissionais normalmente têm uma formação relacionada a Engenharia, Farmácia ou Química, mas também formação jurídica.
ConJur — O Brasil tem registrado queda significativa no número de patentes nos últimos anos, ao contrário da tendência mundial de crescimento. Em 2013, foram feitos 34 mil pedidos de registro no INPI; em 2021, foram 26,9 mil. Qual a explicação para essa conjuntura?
Rafael Atab — Uma possibilidade é a diminuição do investimento interno — em inovação — e externo — no aumento de produção e na internalização de empresas estrangeiras.
Também há uma descrença no próprio sistema. Ainda existe o sentimento de que o INPI demora muito e de que a patente obtida não gera efeitos práticos no Judiciário. A insegurança jurídica desencoraja os inventores a usar o sistema.
É necessário evitar esse ciclo vicioso e lutar para se obter uma melhor satisfação e compreensão do sistema e suas melhoras. Hoje em dia, diversos estados contam com tribunais, turmas e juízos especializados, que até são bastante céleres.
Por outro lado, há um incremento muito grande dos depósitos de marcas, que, em 2022, chegaram a 400 mil pedidos de registros — um dado que, mesmo em âmbito internacional, é extremamente positivo.
Mais de 85% dos depositantes de marcas são nacionais. Nota-se que havia uma demanda reprimida no país, que se deu conta da importância de ter sua marca registrada. Espera-se que, em um segundo momento, surja também essa consciência no caso das patentes.
Entre meados dos anos 2000 e o início dos anos 2010, o prazo de análise de marcas chegava a quatro ou cinco anos. Hoje, está em 12 meses. É um prazo saudável, dentro do que se espera em âmbito internacional. Transpondo-se isso, eventualmente, para a área de patentes, deve haver um impacto favorável e uma maior crença na efetividade do sistema e no benefício de se obter uma proteção patentária para suas inovações.
ConJur — O Tribunal de Contas da União já calculou que a demora para análise e concessão das patentes (o chamado backlog) causou ao país um prejuízo superior a R$ 1 bilhão entre 2011 e 2021. A estimativa é de que o governo gaste mais R$ 3,8 bilhões até 2029 caso o problema não seja resolvido. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal derrubou a extensão automática do prazo de patentes em casos de demora excessiva no trâmite de aprovação. Qual foi a importância dessa decisão e qual o seu impacto sobre o problema da morosidade do INPI?
Rafael Atab — O Supremo reconheceu que a celeridade do INPI é fundamental e que era necessário o incremento da eficiência por meio de recursos humanos e monetários. Quanto mais rápido for o INPI, haverá menos discussões relacionadas à necessidade de se recompor por culpa da administração pública.
Tudo isso cai no conceito de segurança jurídica. A demora prejudica todos os envolvidos: não só o titular, que não pode exercer o direito em sua plenitude, mas também os concorrentes, que eventualmente poderiam utilizar a invenção uma vez que ela caísse em domínio público.
Os esforços que o INPI vem fazendo para endereçar o backlog são um incentivo ao próprio uso do sistema. A autarquia vem buscando soluções para torná-lo mais ágil, não só com o aprimoramento do exame local, mas também por meio de uma maior parceria com outros escritórios de Propriedade Intelectual no exterior. E tudo isso em um ambiente bastante adverso, de cortes constantes no orçamento.
ConJur — A judicialização é uma solução para agilizar esses entraves administrativos? É uma alternativa comumente usada pelos depositantes e titulares de patentes?
Rafael Atab — O Poder Judiciário deve ser o último recurso a se buscar — somente quando houver uma desarmonia no resto do sistema e o caso precisar de um caminho diferente, que a administração pública não esteja oferecendo com eficácia.
Há uma série de potencialidades de aceleração no exame de patentes. As patentes verdes, por exemplo, entram em uma fila preferencial. Existem também os acordos bilaterais de patent prosecution highway (PPH), em que se promove uma via expressa para o processamento de pedidos de patente originados de um escritório específico de outro país — um pedido já examinado na França pode ter um curso mais rápido no Brasil, por exemplo. Outra hipótese muito usada é a aceleração do exame quando há infração efetiva ou potencial da patente — uma parte notifica a outra e, para ingressar com a ação, a patente precisa estar decidida.
ConJur — O arcabouço legislativo da Propriedade Intelectual no Brasil data da década de 1990. Desde então, a economia mundial passou por grandes transformações, avanços científicos e digitalização. A legislação precisa de atualizações para acompanhar e regular essas novas relações?
Rafael Atab — Sim. Estão muito em discussão, por exemplo, as invenções e obras feitas a partir do uso de inteligência artificial; a responsabilidade dos marketplaces por infração à Propriedade Intelectual; a integração entre as legislações de Propriedade Intelectual, do consumidor e de proteção de dados; o aproveitamento de produtos naturais e o compartilhamento de benefícios historicamente usados por povos tradicionais; reivindicações de invenções com partes feitas em territórios diferentes; marcas sonoras; samples de músicas etc.
A vida digital passou a impor uma série de desafios aos titulares e à sociedade. Não estamos tão preparados para tudo isso. Quando nossa legislação foi feita, a internet comercial ainda engatinhava. Ela não previu esses desenvolvimentos tecnológicos e da nossa cultura.
Por outro lado, a nossa lei prevê hoje uma estrutura mínima para um desenvolvimento maior da Propriedade Intelectual, embora os ajustes sejam sempre necessários.
ConJur — As empresas têm entrado cada vez mais no metaverso. As marcas, principalmente de roupas, já lançam seus produtos na forma de NFTs, skins e outros itens virtuais em jogos e mundos cibernéticos. Como é possível proteger a Propriedade Intelectual em ambientes virtuais? Os conceitos e a legislação voltados a esse ramo do Direito se aplicam ao metaverso?
Rafael Atab — A lei sempre se aplica de alguma forma, adaptando-se. O Direito sempre acha um caminho, pois espelha necessariamente o mundo dos fatos. Na minha opinião, é possível transpor as regras de marca para o mundo virtual com as ferramentas de hoje.
O segundo passo é identificar qual a legislação de regência a ser seguida quando as empresas têm sede em outros países e oferecem o metaverso para o Brasil. Isso ainda está em construção.
ConJur — Recentemente, uma artista brasileira acusou a série 1899, da Netflix, de plagiar uma obra em quadrinhos de sua autoria. Ela listou diversas semelhanças entre as ilustrações e cenas do seriado. Situações como essa, em que as obras possuem formatos diferentes, podem configurar plágio? É possível garantir os direitos autorais nesses casos?
Rafael Atab — Conforme nossa legislação, não se pode transformar ou adaptar uma obra preexistente sem autorização do autor. Se, em uma hipótese abstrata, a série fosse uma adaptação de uma história em quadrinhos e não houvesse autorização do autor, poderia haver um plágio. Em tese, se há a transposição de um tipo de obra para outro, pode haver, sim, a infração.
Mas, no direito autoral, pode haver, em tese, duas criações muito parecidas, porque provavelmente tiveram acesso às mesmas inspirações e a toda a criação artística que precedeu a ambas. Não é o que normalmente acontece, mas é possível identificar e comprovar as inspirações da obra e até experiências pessoais do autor.
Diferentemente do direito de patentes e marcas, o direito autoral depende da originalidade. Tanto é que existem filmes com nomes e histórias parecidos. A história da princesa que conhece o príncipe e no final todos ficam felizes não é nova, porque vem da humanidade, das contações.
ConJur — O Brasil perdeu, em 2020, cerca de R$ 287 bilhões para a pirataria, segundo um levantamento do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP). O valor representa a soma das perdas registradas por 15 setores industriais com a estimativa dos impostos que deixaram de ser arrecadados. Existe alguma forma de melhorar esse cenário da pirataria ou ao menos driblar os prejuízos?
Rafael Atab — Os titulares de direito de marca têm trabalhos bastante significativos no combate à pirataria, que congregam algumas frentes. Há a frente policial, mas também há a possibilidade, prevista em acordos internacionais, de parar produtos piratas nas próprias alfândegas. Há, além de tudo, o trabalho de inteligência estratégica, que é fundamental para tentar detectar a origem da pirataria. Tudo isso representa o enfrentamento jurídico e prático.
Por outro lado, é preciso também um enfrentamento cultural. É preciso saber que os produtos piratas podem causar danos. A pirataria na área farmacêutica pode afetar a saúde. Brinquedos não homologados pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) podem ser prejudiciais para crianças. Ao baixar um filme ou uma música, prejudica-se a sociedade como um todo, pois, além de ir contra o Direito, deixa-se de incentivar a criação, os artistas, os empregos que estão por trás e o recolhimento de tributos.
A pirataria é uma ponta de um problema muito maior: o crime organizado. Ela alimenta a corrupção. Não há como garantir que o produto pirata não usou trabalho infantil ou escravo, ou que não impactou o meio ambiente.
Hoje existe uma gama de instrumentos para se ter acesso a um produto, até por valores muito mais acessíveis — como os streamings. A criação de alternativas também é uma forma de combate à pirataria. Há uma questão cultural muito grande sobre ter acesso “de graça”, mas nada é de graça, a pirataria sempre prejudica alguém.
Fonte: Conjur