Como a peste bubônica reestruturou o sistema imunológico humano

saúde

Observada com o microscópio, a bactéria Yersinia pestis não parece ter nada de especial.

Seu formato está mais ou menos dentro dos padrões das bactérias – uma espécie de bastão curto com extremidades arredondadas. Ela também é relativamente imóvel.

Mas essa bactéria é a responsável por uma doença que chegou a varrer um terço da população da Europa e causou milhões de mortes em todo o mundo.

A simples menção da peste bubônica costuma provocar medo e fascinação até hoje. Atualmente, a doença é incrivelmente rara nos Estados Unidos e na Europa – em grande parte, graças às mudanças de estilo de vida que evitam sua transmissão das pulgas infectadas para os seres humanos com tanta facilidade.

Mesmo quando ocorre o contágio, a peste bubônica pode ser tratada com relativa facilidade, usando antibióticos para salvar a vida das pessoas. Mas ainda ocorrem casos da doença.

O caso mais recente é de um homem no Estado americano de Oregon que contraiu peste bubônica do seu gato de estimação. Esta notícia não é uma surpresa muito grande para o geneticista evolutivo Paul Norman, que estuda a peste bubônica na Universidade do Colorado Anschutz, nos Estados Unidos.

“Existem ainda pequenos bolsões da peste nos Estados Unidos”, segundo ele. Ela ainda circula em animais selvagens, como esquilos e cães da pradaria.

Em média, cerca de sete casos de peste em seres humanos são relatados nos Estados Unidos todos os anos. Mas as mortes são muito mais raras – houve apenas 14 entre 2000 e 2020.

A doença é mais comum em certas partes do mundo, como Madagascar. O Brasil não registra casos de peste em seres humanos desde 2005, segundo o site do Ministério da Saúde.

Embora seja relativamente rara em comparação com o passado, a peste bubônica deixou sua marca na espécie humana e pode ser encontrada no genoma das pessoas que vivem nos dias de hoje.

Acredita-se que a Yersinia pestis tenha infectado a espécie humana por milhares de anos. Evidências da bactéria foram encontradas no DNA de esqueletos datados de 4 mil anos atrás.

Mas, no início dos anos 1300, uma linhagem da bactéria explodiu na Europa, causando a chamada Peste Negra.

Acredita-se que ela tenha se originado nas aldeias do vale do Chuy, no atual Quirguistão. Ela pode ter sido transmitida pelas pulgas de marmotas infectadas para as pessoas, espalhando-se em seguida para a Europa através da Rota da Seda.

Estimativas baseadas em relatos e registros históricos calculam que a Peste Negra tenha causado a morte de cerca de 50 milhões de pessoas na Europa até meados dos anos 1300.

Pesquisas mais recentes sobre a atividade agrícola da época (que teria caído drasticamente, em meio a tantas mortes) indicam que os números podem não ser tão acentuados em todos os lugares. Algumas regiões podem ter sido devastadas pela doença, enquanto outras mal eram atingidas.

Ao longo dos séculos, estima-se que a peste tenha matado pelo menos 200 milhões de pessoas.

Com surtos da peste tão catastróficos, os pesquisadores se perguntam há muito tempo se eles teriam deixado alguma marca permanente no sistema imunológico humano.

Uma teoria específica indica que a peste pode ter se disseminado no século 14 a ponto de criar uma forma de seleção natural. A ideia é que alguns dos indivíduos que sobreviveram tenham conseguido transmitir alguma peculiaridade genética que teria ajudado as gerações seguintes.

“A Peste Negra exerceu imensa pressão sobre a população humana na Europa”, segundo Norman. “Ela foi persistente, desastrosa e qualquer pessoa com a menor vantagem genética naquela situação teria tido mais possibilidade de sobreviver.”

Mas, até um passado relativamente recente, era quase impossível coletar qualquer tipo de dados para responder a essa questão.

Sequenciar o DNA dos esqueletos das vítimas da peste encontradas em locais de sepultamento coletivo é particularmente difícil. Os cientistas normalmente precisam trabalhar com fragmentos de DNA minúsculos e muitos deles estão altamente contaminados.

“É muito comum descobrir que a maior parte do DNA, na verdade, é do solo ou de bactérias que invadiram o esqueleto depois da morte da pessoa”, explica o geneticista sueco Pontus Skoglund, chefe do laboratório de genômica antiga do Instituto Francis Crick, em Londres.

Mas os especialistas descobriram que existe um pedaço do esqueleto onde é possível encontrar DNA humano intacto de forma confiável. Trata-se do labirinto ósseo.

Localizado no ouvido interno, o labirinto é uma das partes mais densas do corpo humano. “É o local de onde é possível extrair DNA com mais sucesso”, afirma Norman.

“É um osso muito, muito pequeno, que permanece protegido em amostras do crânio”, prossegue ele. “Sem querer parecer muito assustador, você precisa realmente perfurar o crânio para chegar àquele pedaço de osso, enquanto algo como o osso da perna é extremamente poroso e as bactérias penetram nele com muito mais facilidade.”

Nos últimos três anos, essa singularidade ajudou a trazer novos conhecimentos sobre as pessoas que sobreviveram aos surtos de peste e por quê.

Regulação da imunidade

O sistema de antígenos leucocitários humanos (HLA, na sigla em inglês) consiste de um grupo de genes que codificam proteínas encontradas sobre a superfície das nossas células. Eles desempenham um papel importante na coordenação da nossa reação imunológica.

Um estudo recente demonstrou que algumas pessoas assintomáticas para a covid-19 foram beneficiadas por uma loteria genética. Elas possuíam certas variantes de HLA que agiram como forma de proteção natural contra o vírus.

“O papel dos genes HLA é identificar invasões externas no corpo e orientar o sistema imunológico a procurar as células infectadas com proteínas do patógeno e destruí-las”, explica Norman.

“Variantes relativamente raras desses genes podem ajudar algumas pessoas a sobreviver a uma pandemia. Se as mortes por covid tivessem sido muito maiores, a população humana hoje teria uma frequência muito mais alta dessas variantes.”

Em 2021, Norman e seus colegas demonstraram que as variantes de HLA provavelmente colaboraram para determinar quem sobreviveu aos surtos de peste medievais.

Os pesquisadores investigaram um túmulo coletivo de vítimas da peste do século 16 na cidade alemã de Ellwangen. Eles sequenciaram genomas de 36 esqueletos.

Ao compará-los com o DNA de pessoas que moram em Ellwangen hoje em dia, eles descobriram que os habitantes do século 21 apresentam diferenças sutis em vários genes HLA, que provavelmente tornaram seus ancestrais mais capazes de combater a Yersinia pestis.

Dois anos atrás, um grupo internacional de pesquisadores tentou examinar quais podem ter sido os impactos da Peste Negra sobre a imunidade humana. Eles reuniram amostras genéticas de esqueletos de cerca de 500 pessoas em cemitérios de Londres e da Dinamarca que morreram antes, durante e depois da pandemia do século 14.

Eles observaram particularmente padrões relativos a um gene chamado ERAP2, que codifica uma proteína conhecida por ajudar as células imunológicas humanas a combater a Yersinia pestis e outros patógenos.

Mas uma variante de ERAP2 produz uma forma mais limitada da proteína, enquanto outra gera uma proteína de tamanho normal.

O estudo demonstrou que os londrinos e dinamarqueses da era medieval que carregavam esta última variante de ERAP2 tinham duas vezes mais probabilidade de sobreviver à peste. Os pesquisadores descobriram que, no final do século 14, 50% dos londrinos e 70% dos dinamarqueses pesquisados possuíam essa variante.

Mas ainda precisamos aprender mais.

Skoglund afirma que os pesquisadores precisam estudar milhares de outros genomas de indivíduos que viveram na Europa na época da Peste Negra e nos séculos seguintes, para observar se adaptações como a variante de ERAP2 realmente foram disseminadas e integradas ao nosso DNA.

“Qualquer gene que tivesse efeito protetor contra esse surto poderia ficar muito mais frequente depois do evento”, ele conta. “Mas pode ter durado apenas algumas gerações.”

Skoglund chega a imaginar se doenças como a varíola poderiam ter exercido impacto maior sobre a formação dos sistemas imunológicos humanos modernos. A varíola foi ainda mais persistente e virulenta do que a peste bubônica e matou muitas centenas de milhões de pessoas.

Mas a peste bubônica detém uma fascinação específica e podemos conseguir informações valiosas estudando seu impacto sobre nossos ancestrais distantes.

“Observar como a peste evoluiu e por que certas linhagens podem ter sido mais virulentas em termos de mortalidade é importante para compreender a evolução das linhagens que podem se tornar problemáticas”, explica o biólogo evolutivo Hendrik Poinar, da Universidade McMaster em Ontário, no Canadá.

Skoglund menciona seu estudo sobre vítimas da peste encontradas em Somerset e Cúmbria, no Reino Unido. Eles viveram cerca de 4 mil anos atrás, quando a Yersinia pestis ainda não tinha desenvolvido a capacidade de ser transmitida pelas pulgas.

“Podemos observar no DNA que a bactéria não tinha um fator genético que permitisse essa transmissão através das pulgas”, explica ele. “Mas a sua evolução causou profundo impacto sobre a saúde humana.”

“Mas também podemos aprender com a forma como a evolução lidou com os problemas do passado e como ela criou mecanismos biológicos para combater essas doenças, milhares de anos atrás. Isso é fundamental e podemos usar para nos ajudar a desenvolver medicamentos e vacinas hoje em dia.”

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.

Fonte: BBC Brasil / GETTY IMAGES

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *