Por Guilherme Arruda
Em debate na Faculdade de Saúde Pública da USP, academia, governo e sociedade civil discutem estratégias contra indústrias do álcool, tabaco e alimentos ultraprocessados. O que fazer para enfrentar suas novas artimanhas?
Há tempos são conhecidas as práticas que a indústria do tabaco utilizou, por décadas, para vender seu produto ao maior número de pessoas, fazendo a sociedade acreditar que o cigarro não causava mal à saúde. Falseava pesquisas científicas, contratava médicos que afirmavam sua segurança, entre outras táticas astuciosas. Mas pouco se debate sobre como outras megacorporações utilizam-se de estratégias semelhantes para vender produtos que fazem mal individual ou socialmente – de remédios a alimentos.
No livro recém-publicado no Brasil O Triunfo da Dúvida, o epidemiologista David Michaels relata em detalhes como grandes corporações estadunidenses investem milhões para lavar sua própria imagem. Segundo demonstra o autor, que foi chefe da agência federal de saúde do trabalhador nos Estados Unidos, as empresas empregam técnicas diversas para vender seus produtos nocivos à saúde, desacreditando os cientistas – e as pesquisas – que os questionam. Por meio dessa manobra, buscam se livrar da responsabilização pelos danos que causam ao bem-estar da população. Outra Saúde publicou, com exclusividade, um capítulo da obra.
Há duas semanas, em São Paulo, a Editora Elefante, o portal O Joio e o Trigo e a organização ACT – Promoção de Saúde realizaram, na Faculdade de Saúde Pública da USP, (FSP-USP) o lançamento do livro, que contou com a presença virtual do autor. No debate, os convidados deixaram uma certeza: não só no Norte Global as gigantes de ramos como o tabaco, as bebidas alcoólicas e os alimentos jogam sujo para não pagar a conta de seus estragos. Em países como o nosso, sua atuação pode ser ainda mais agressiva.
Para Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) e professora da FSP-USP, “a estratégia de desacreditar a ciência está posta” também no Brasil. Ela relatou como o Nupens, responsável por propor a categoria dos alimentos ultraprocessados, tem sido cada vez mais atacado pelo empresariado por produzir evidências robustas dos riscos do consumo desses alimentos e defender sua taxação no contexto da reforma tributária.
Por sua vez, Vera Luiza da Costa e Silva, secretária-executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro (Conicq), e Maik Dünnbier, da Movendi International, apresentaram o cenário do enfrentamento com o lobby do tabaco e do álcool, respectivamente.
Mas como reverter a maré de negacionismo científico, irresponsabilidade empresarial e ataques contra a saúde dos brasileiros? Para os debatedores, uma série de medidas apresentadas nesta matéria por Outra Saúde, como a responsabilização judicial das corporações e o combate à sua influência na formação dos pesquisadores, podem ser o caminho. “Quem lucra com produtos danosos à saúde não pode controlar as pesquisas sobre os danos que esses produtos causam”, sintetizou Dünnbier.
Tabaco controlado na rédea curta
Em sua fala, Vera Luiza explicou como as condições de disputa com o “lobby da fumaça” já são mais favoráveis, devido a uma série de vitórias anteriores. Na luta contra seus efeitos danosos, ela avalia, foi possível pegar o setor empresarial “desprevenido” e emplacar no grande público a ideia de que não há uso saudável dos produtos de tabaco.
Nas COPs do Tabaco, principal espaço internacional de formulação de políticas de combate ao fumo, a influência da indústria é mínima: as próprias regras do evento proíbem seus representantes de participar. Devido a seu cargo, Vera foi a coordenadora da intervenção brasileira na última edição, há um mês – e, à diferença de Estados que tentam sorrateiramente incluir em sua delegação nomes ligados à indústria, a equipe do Brasil era composta basicamente por membros da Conicq, uma comissão de técnicos ligada ao Governo Federal.
Como cobriu Outra Saúde, o país se destacou na COP-10: propôs e aprovou que a Convenção-Quadro de Controle do Tabaco discuta de forma mais aprofundada os impactos do tabaco no meio ambiente e ofereceu um apoio decisivo à indicação de que se estudem medidas de responsabilização da indústria pelos danos causados.
É certo que essas necessárias decisões sofreriam muito mais resistência caso os produtores fossem autorizados a participar do evento, onde se serviriam de sua influência econômica para prejudicar os trabalhos. Por isso, para Vera, “onde tem indústria na mesa discutindo a agenda [de controle], não tem agenda”.
Sua fala foi esclarecedora sobre a influência destrutiva que as poderosas associações da indústria podem exercer sobre a discussão da regulamentação e taxação de seus produtos – e ela alerta que, em um cenário distinto do tabaco, os lobistas do álcool e dos alimentos ultraprocessados ainda possuem bastante margem de manobra.
“Houve um tempo em que cuidar bem de um menino era dar um Danoninho, ou seja, um ultraprocessado”, ela lembra, exatamente por conta do esforço milionário da indústria de distorcer informações para esconder os malefícios de suas mercadorias, como relata o livro de David Michaels.
Indústria das bebidas paga pesquisas fake
Em um sentido contrário, “o setor das bebidas alcoólicas ainda é bastante capaz de impedir os países de proteger seus cidadãos”, relatou Maik Dünnbier. Enquanto a ligação dos cigarros com o câncer é bastante conhecida, a maioria das pessoas não sabe do potencial cancerígeno do consumo de álcool – apesar de haver comprovação científica desse fato desde 1988, ele diz.
Membro de uma organização que acompanha a promoção de políticas de controle do álcool em mais de cinquenta países, Dünnbier compartilhou uma série de relatos sobre ações agressivas da indústria para acobertar seus males e promover seus supostos benefícios em todo o mundo.
Em 2017, ele conta, na região canadense do Yukon, o setor entrou na Justiça para suspender uma pesquisa sobre a efetividade de alertas sobre os riscos do álcool à saúde (incluindo seu caráter carcinogênico) nos rótulos das bebidas. Os resultados parciais já sugeriam maior conscientização da população. Contudo, depois do imbróglio, o governo regional recuou da implementação dos rótulos.
No ano seguinte, a AB InBev, grupo que controla a gigante brasileira das bebidas Ambev, chegou ao ponto de tentar pagar pesquisadores do National Institute of Health, órgão público de pesquisa em saúde dos Estados Unidos, para conduzir um estudo que demonstrasse os “efeitos positivos do consumo moderado de álcool para a saúde do coração”. Para piorar, a proposta era de que o estudo se chamasse “Cheers!” – o equivalente em inglês do “Saúde!” que dizemos ao compartilhar uma bebida com amigos. No entanto, uma reportagem do New York Times contribuiu para que a ideia fosse definitivamente descartada.
Na visão do representante da Movendi, é essencial que as bebidas alcoólicas sejam rotuladas da mesma forma que os produtos de tabaco, destacando seus malefícios sociais e de saúde. No mesmo sentido, ele crê que seria necessário regular mais firmemente a publicidade do setor. “Os efeitos negativos do álcool sobre as mulheres são conhecidos, mas ainda assim há propagandas que o associam à liberdade da mulher”, denuncia Maik.
O “trabalho sujo que os países ricos fazem para a indústria na Organização Mundial do Comércio (OMC) e em outras instituições” é um dos principais entraves para a criação de um tratado similar à Convenção-Quadro de Controle do Tabaco que enfrente de forma global os danos do álcool, avaliou Dünnbier.
Indústria traz suas próprias evidências
Particularmente esclarecedora sobre o enfrentamento dos interesses do dinheiro com os interesses da saúde pública foi a fala de Ana Paula Bortoletto, professora da FSP que conduz pesquisas científicas sobre a alimentação dos brasileiros.
Para a pesquisadora do Nupens, vivemos um momento especial devido à “quantidade e qualidade das evidências científicas que mostram os danos causados pelos ultraprocessados”. Contudo, por isso mesmo tem se tornado cada vez mais claros os “esforços da indústria para desacreditar as evidências”.
Por diversos caminhos, ela conta, as grandes empresas do ramo buscam dar uma cobertura científica às suas “críticas à classificação NOVA e à especificidade do conceito de ultraprocessados, bem como ao Guia Alimentar para a População Brasileira”, todos instrumentos essenciais de defesa de uma alimentação saudável para os brasileiros.
No governo Bolsonaro, elas receberam um apoio camarada do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), aparelhado pelos latifundiários. À época, uma nota técnica do Mapa criticou a classificação dos ultraprocessados e afirmou que os “estudos que demonstram os problemas que eles causam à saúde são meros estudos observacionais”. Neste ano, o maior estudo da história sobre o tema associou o consumo desses alimentos industrializados a 32 efeitos negativos para a saúde.
No recente debate sobre a nova rotulagem de alimentos, que põe em destaque o excesso de sal, açúcar adicionado e gordura saturada nos produtos, a indústria também encontrou um caminho para “apresentar suas próprias evidências”, conta Bortoletto.
A associação apareceu nas consultas públicas com um documento técnico próprio, que enfatizava o “impacto econômico” da rotulagem frontal de advertência, defendida pela sociedade civil e pela academia. A conhecida empresa de consultoria que assinou o documento alegava que, além de “causar medo nas pessoas”, o rótulo levaria a perdas econômicas de bilhões de reais. Para a professora da USP, tudo o que ela faria seria “no máximo, levar os brasileiros a fazer escolhas alimentares mais saudáveis”.
Com a pressão política reforçada pelo disfarce técnico dos argumentos, foi escolhido um modelo de rotulagem – o que está entrando em vigor agora – cujos resultados tendem a ser “aquém do que as evidências científicas sem conflito de interesses apresentavam para o modelo da rotulagem frontal”, lamenta a pesquisadora do Nupens.
O próprio Nupens, proeminente na conceituação dos ultraprocessados, tem se tornado alvo, com acusações de “ativismo”. Mas nesse cenário, em vez de recuar, Bortoletto avalia que “a produção de evidências precisa se intensificar, para dar respaldo às políticas que dificultam o acesso a ultraprocessados, que precisam avançar”.
Os efeitos toxicológicos dos aditivos alimentares podem ser a próxima frente das investigações científicas, ela opina. Isso porque, no caso dos ultraprocessados e do álcool, é indispensável aprofundar a “etapa de discussão sobre toxicologia e relação causal entre seu consumo e danos à saúde”, temas já consolidados na literatura sobre o tabaco.
Responsabilizar e afastar a indústria dos jovens pesquisadores
Apesar das diferenças entre os cenários apresentados, certas medidas podem ser aplicadas para conter as distorções e a influência de todas as três indústrias, consensuaram os participantes do debate.
Uma delas é o avanço na responsabilização da indústria. O Brasil já possui uma importante experiência na ação da Advocacia-Geral da União que exigiu das fabricantes de cigarro o ressarcimento dos gastos públicos em saúde causados por seus produtos. Mas para multiplicar os litígios e garantir seu êxito, será necessário costurar “massa crítica, literatura consolidada e apoio na opinião pública” eles lembram.
Além disso, disse Bortoletto, é preciso ser mais exigente nos critérios de separação entre as indústrias e os pesquisadores, para evitar abusos como os vistos no livro de David Michaels. O controle do financiamento de pesquisas e o reforço do estudo de Ética nas faculdades, para enfrentar a influência do poder econômico na formação dos alunos e pesquisadores, seriam medidas importantes. Já é um primeiro passo, ela considera, que várias sociedades profissionais da área da saúde na América Latina, como a Associação Brasileira de Nutrição, já não aceitem mais patrocínio da indústria em seus eventos científicos.
“Essas empresas estão explorando nosso povo e nossas comunidades, e sabem disso”, apontou Dünnbier, e não é justo que sigam impunes por seus crimes.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Reprodução