Depois das críticas, governo dá meia-volta na “neoindustrializacão”

Brasil

Fernando Haddad modifica a proposta de carro popular, incluindo o transporte coletivo e mirando o meio ambiente, mas o programa transitório traz pouco alívio e não resolve os problemas estruturais do setor

Menos de duas semanas após o presidente e o vice lançarem com pompa o programa de carro popular, o governo precisou mudar o plano para privilegiar o transporte público e acenar aos caminhoneiros. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atuou nos bastidores para consertar um projeto que atraiu críticas generalizadas ao carregar uma ideia anacrônica de reindustrialização e privilegiar as montadoras e os ricos. Ele detalhou as novas medidas na segunda-feira, 5, ao lado de Lula e de Geraldo Alckmin, com grandes mudanças.

Os carros continuam contemplados, mas o governo ampliou o programa para ônibus e caminhões.

Também ficou estabelecido que o plano vai durar no máximo quatro meses. Ao invés de abatimento dos impostos federais, o governo vai conceder bônus tributário às montadoras.

Para não contrariar a Lei de Responsabilidade Fiscal, desta vez foi incluída a fonte de receita: a reoneração do diesel. Os impostos federais sobre o combustível (de R$ 0,35 por litro), que estavam zerados, voltarão em duas etapas, em setembro (R$ 0,11 por litro) e janeiro de 2024 (o restante).

Uma das críticas ao plano se referia ao universo de beneficiados. Os carros mais baratos do mercado se situam na casa dos R$ 60 mil, e o governo prevê contemplar automóveis de até R$ 120 mil. São valores muito altos que não miram a grande maioria da população.

Os compradores poderão contar com descontos entre R$ 2 mil e R$ 8 mil, de acordo com critérios de eficiência energética, utilização de componentes nacionais e preço do automóvel. Já os caminhões e ônibus poderão ter redução de até R$ 99,4 mil.

O fato de ser temporário, e ter um teto de R$ 1,5 bilhão (um terço para os automóveis, R$ 700 milhões para caminhões e R$ 300 milhões para ônibus e vans), diminuiu o estrago para a estratégia de Haddad de zerar o déficit público reduzindo os gastos tributários (subsídios e benesses para setores ou empresas específicos).

Já a verdadeira estratégia de reindustrialização, segundo todos os especialistas, está longe do programa anunciado e só avançaria com o aumento de produtividade no segmento, algo que apenas a Reforma Tributária poderia proporcionar.

Mas essa tese passou longe da proposta de “neoindustrialização” lançada por Lula e Alckmin em maio, que teve um ar passadista: criar frisson entre os consumidores artificialmente e anabolizar as montadoras com subsídios.

Alckmin, que acumula o Ministério do Desenvolvimento, não passou recibo pelo plano mal elaborado, e ainda aproveitou para recalibrar o discurso na segunda-feira insinuando que o benefício era uma resposta aos juros altos e ocorreria até a queda da Selic. Afinal, é mais fácil culpar o Banco Central pelas mazelas na economia do que apontar soluções estruturais.

“O que o Haddad fez foi uma maneira delicada de furar o programa. Acho que a pessoa que assessorou o Alckmin não levou em consideração a Lei de Responsabilidade Fiscal”, criticou a ex-diretora do BNDES no governo FHC Elena Landau.

“Estão requentando os remédios que não deram certo”, diz o ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central Alexandre Schwartsman.

“Estamos de novo falando de crédito subsidiado como se não tivéssemos tentado isso à exaustão há cerca de uma década, com resultados pífios.”
Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central

Landau diz que o plano improvisado é “totalmente absurdo”. “Pobre não tem dinheiro para gastar em carro desse jeito, e o plano é promover conteúdo nacional e combustível fóssil. Vai contra a abertura comercial, a economia verde e a necessidade de dinheiro no Orçamento”, protesta.

Para o economista Roberto Giannetti da Fonseca, o governo deveria ter privilegiado a exportação, já que as montadoras estão com capacidade ociosa. “Existem fórmulas que poderiam ser mais criativas e imaginativas, que dariam resultado muito melhor para o governo”, diz.

Ele também defende que o governo deveria promover a transição energética, estimulando a produção do hidrogênio verde por meio de equipamentos de eletrólise fabricados no Brasil, por exemplo.

Componente político

Ainda que Alckmin tenha sido o “pai” oficial da ideia da “neoindustrialização”, o professor de economia da FGV EAESP Nelson Marconi considera que o vice-presidente e o titular da Fazenda, na verdade, seguem uma decisão do presidente. “A medida estimula a indústria automobilística. É de onde veio o Lula, ele tem apoio lá. Acho que existe um componente político muito forte nessa proposta”, afirma.

Ele concorda que do ponto de vista técnico o melhor seria priorizar uma política para o desenvolvimento de carros elétricos. Para Marconi, deveria ser estimulada a produção de baterias, que são os insumos mais importantes dos carros elétricos. “A MP vai apenas estimular um pouco a produção e jogar o problema para a frente”, acrescenta.

Presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite elogiou a abrangência do programa, por seu viés não só de aquecimento do mercado de veículos, mas também com um lado ambiental e de segurança viária, promovendo a renovação de frota de caminhões e ônibus. “Embora seja um programa de curta duração, traz um ânimo para todo o ecossistema automotivo e coloca um foco sobre um setor que tem potencial para gerar incontáveis benefícios à sociedade brasileira de forma geral”, afirmou.

A associação calcula que de 100 mil a 110 mil automóveis e comerciais leves deverão usufruir dos descontos de até R$ 8 mil, antes do esgotamento do teto de R$ 500 milhões em créditos tributários.

Pelos cálculos da entidade, isso deverá ocorrer em pouco mais de um mês, ou seja, bem antes dos quatro meses de prazo estipulado pelo governo.

Como todo o mercado, a Anfavea disse que a expectativa do anúncio dos descontos provocou o adiamento das compras por parte de muitos consumidores desde a metade de maio.

O resultado foi uma desaceleração das vendas, mesmo após uma primeira quinzena muito positiva. As 176,5 mil unidades emplacadas no último mês representaram crescimento de 9,8% sobre abril e recuo de 5,6% sobre o mesmo mês do ano passado, segundo a entidade.

“As concessionárias estão assustadas. Após o anúncio do governo em maio, houve um índice de cancelamento de compras muito grande. Em algumas lojas alcançou 80%”, diz Marcelo Giordano Panico, revendedor de carros novos e usados da X Car Multimarcas, na Mooca, em São Paulo.

Para ele, como o governo anunciou que o plano só dura quatro meses, a situação não vai se modificar. “Quando o mercado estiver acostumado, volta tudo de novo”, diz.

Desenrola é lançado

Num aceno de fato às pessoas de baixa renda, Haddad também anunciou finalmente o Desenrola, programa para renegociação de quem tem dívidas até R$ 5 mil e renda familiar de até dois salários mínimos.

Trata-se de uma promessa de campanha que foi adiada várias vezes. O governo vai fazer leilões de compra dos créditos dos credores que quiserem participar, estimulando o desconto em relação ao débito, até o limite de R$ 10 bilhões.

O governo diz que o programa deve entrar em funcionamento em julho e prevê alcançar 30 milhões de brasileiros. De novo, pode ser apenas mais uma promessa irreal.

Analistas consideram que esse cronograma dificilmente será cumprido. Desta vez, pelo menos, a proposta parece caminhar na direção certa.

Fonte: Isto é